quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

CABINHA

Dedico esta história a todos aqueles que tomados pelo medo transformam o amor numa prisão
Era uma vez um pé de jabuticaba bebê, daqueles bem pequeninos que nascem ao lado da jabuticabeira mãe. Ele vivia cercado de outras árvores num lindo quintal de uma bela casa. Todos os pés de Jabuticaba que ali viviam amavam o bebê jabuticaba e tratavam de protegê-lo para que pudesse se tornar, um dia, uma grande árvore, assim como a sua mãe e tantos outros nascidos naquele quintal. De tão singelo e delicado que era, todos passaram a chamá-lo de Cabinha.
Mamãe Jabuticaba, com seus galhos enormes e abertos, protegia Cabinha de todas as maneiras com as melhores intenções possíveis. Debruçava-se sobre o mesmo protegendo-o do sol e da chuva forte. Todas as outras Jabuticabeiras tratavam de fazer o mesmo. Formavam ao redor de Cabinha uma grande alameda como se fosse um grande escudo para protegê-lo dos fortes ventos, que, vez ou outra, passavam por ali desgalhando e derrubando algumas árvores. Com tanta proteção, a pequena jabuticabeira começou a acreditar que o sol, a chuva e o vento fossem muito perigosos. Encolhia-se de medo todas as vezes que alguns raios de sol passavam entre os galhos protetores desua mãe. Chuva forte, ele nunca conheceu, pois a mãe cercava todo volume d’água deixando apenas que suaves gotas de água banhassem seu filhinho querido. Com a proteção das outras jabuticabeiras, só a brisa suave era capaz de alcança-lo e toca-lo. Ninguém queria que Cabinha, tão pequeno e frágil, pudesse sofrer qualquer acidente ou agressão. Com tanta proteção, todos nutriam a certeza de que aquela árvore bebê iria crescer rapidamente, forte e saudável. Mas, não foi o que aconteceu. Pelo contrário, a pequena árvore estava sempre doente, fraquinha, reclamando cansaço e falta de energia. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Quanto mais Cabinha se enfraquecia, mais proteção recebia de todas as jabuticabeiras do quintal. Quanto mais proteção recebia, mais fraco se sentia. Instaurou-se um ciclo vicioso que o deixou tão fraco a ponto de murchar e perder suasfolhinhas. O tempo foi passando e Cabinha se transformou num galhinho frágil, quase seco. Mamãe jabuticabeira chorava de tristeza ao ver o filho doente. Com tanta tristeza, foi se tornando frágil também, pois a tristeza duradoura é um sentimento ruim que rouba toda nossa energia. O mesmo aconteceu com as outras árvores ao redor; uma foi contaminando a outra com a sua tristeza até que aquele quintal outrora tão viçoso e bonito foi se transformando num lugar árido e sem vida. O verde das folhas foi se transformando num marrom opaco. Os passarinhos, as borboletas, as Joaninhas, enfim, todos os bichos que antes adoravam repousar sobre os galhos das jabuticabeiras e se nutrir com as deliciosas e docinhas jabuticabas tiveram que abandonar aquele lugar, pois não havia mais alimento e nem mesmo a protetora sombra do passado para refrescar os calorosos dias de verão. Até a família que morava na bela casa daquele quintal se mudou misteriosamente sem que ninguém soubesse para onde e porque. Todas as jabuticabeiras pensavam: Será que uma grande maldição caiu sobre todos nós?
A resposta para tanta indagação foi trazida por um anjo que se mudou para aquela casa.Você deve estar imaginando que este anjo veio do céu como tantos outros que costumamos conhecer nas mais intrigantes histórias. Engano seu! Este anjo veio da roça, de um lugar escondido no meio das matas. Ele conhecia tudo sobre árvores, borboletas, passarinhos, chuva, sol, vento, enfim, conhecia tudo que dissesse respeito à natureza. Era um anjo sábio e experiente. Com tanta sabedoria, você pode imaginar a idade dele. Talvez, aposte numa idade avançada. Mais uma vez, engano seu! Este anjo era uma criança. Isto mesmo, uma criança! Ângelo era o seu nome.
Ângelo aprendeu tudo que sabia sobre a vida com a escola natureza. E, de vida ele sabia bastante, pois a natureza de onde veio era viva, muito viva. Mudou-se com sua família para aquela casa e inicialmente achou muito estranho que um quintal tão grande pudesse ter se transformado em um espaço árido e sem vida. Antes de tirar qualquer conclusão sobre a suposta maldição que poderia ter caído sobre aquele lugar, preferiu sentar próximo de cada jabuticabeira, sentir a energia que cada uma emanava, observar profundamente a postura de todas elas e tecer uma gostosa conversa com todos os habitantes daquele quintal. Ângelo, criado na roça, era bem diferente de todas as pessoas da cidade. Tinha um comportamento que deixava muita gente intrigada – ele conversava com as árvores, com as flores, com os passarinhos e com todos os bichinhos. Muitos o consideravam um maluquinho, mas ele nem se importava. Ele compreendia a limitação e a dificuldade das pessoas para entender a linguagem da natureza. Nem todo mundo fala todas as línguas. E, a língua da natureza só pode ser falada por quem tem muita sensibilidade. Foi numa destas conversas, aliada a uma profunda observação que Ângelo descobriu a maldição que recaiu sobre o quintal. Uma velha e sábia borboleta que descansava sobre os galhos da mamãe de Cabinha comentou:
—Nunca vi uma mãe tão protetora quanto esta! Quis prender o filho num casulo... Olhe no que deu!
Mamãe jabuticabeira retrucou, já meio sem força:
—Casulo? Desde quando eu sou uma borboleta? Cabinha sempre foi livre, eu apenas o protegi com meus galhos das intempéries naturais.
Ângelo tocou graciosamente os galhinhos quase totalmente sequinhos de Cabinha, orientando-o com doçura:
—Cabinha, você precisa mudar de lugar. Você está muito agarrado à sua mãe. Olhe bem os galhos e as raízes dela circundando você. Aí, neste lugar, não há espaço para você crescer e nem para se alimentar como deve.
Mamãe árvore, irritada com Ângelo interveio:
—Como pode dizer um absurdo deste! Sempre protegi meu filhinho de todos os perigos e agora recebo uma acusação destas. Ele sempre foi frágil. Nunca se deu bem com o calor do sol, com a chuva forte e, com certeza, penderia frente um vento forte. Proteção é sinal de amor. Eu amo Cabinha mais do que tudo!
Ângelo abraçou os galhos de mamãe jabuticabeira, deu um beijo carinhoso em seu tronco procurando se explicar:
—Você está entendendo mal o que eu quis dizer. Sei que ama Cabinha e que sempre desejou protegê-lo. No entanto, ao invés de protegê-lo, você o superprotegeu. Como bem disse, proteção é sinal de amor; no entanto, superproteção é expressão de nosso medo. O seu medo adoeceu Cabinha e o impediu de crescer. Ele parece temer tudo aquilo que vai nutri-lo. Querendo protegê-lo, você o privou de experiências fundamentais ao seu desenvolvimento. Ao invés de ensiná-lo a lidar com os perigos e intempéries da vida, você se tornou um casulo que serviu apenas para tirar a sua resistência. Aliás, parece que todas as jabuticabeiras aqui fizeram o mesmo. Viveram em função de protegê-lo e esqueceram de ensina-lo o mais importante.
—O que é o mais importante? Perguntou a mãe curiosa.
—Viver é o mais importante!
Todas as árvores se curvaram perplexas, até que uma delas tomou coragem e perguntou:
—Mas, o que fizemos até agora senão viver?
—Vocês viveram apenas os seus medos e expectativas. Sobreviveram bem e viveram muito mal.
—Você teria como me ensinar a viver? Perguntou Cabinha se esverdeando de esperança.
—Eu teria todo prazer em fazer isto por você. Mas, algumas mudanças importantes deverão acontecer aqui para que não só você, mas todas as jabuticabeiras possam se renovar e viver plenamente.
—Estou de acordo com qualquer coisa que possa me libertar deste casulo que me adoeceu.
—Então, prepare-se ! Pode não ser fácil. No entanto, nada é mais difícil do que ser uma árvore doente. Advertiu, Ângelo.
—Estou pronto!Pode começar!Ordenou Cabinha firmando seu tronco ainda frágil, sem saber ao certo o que lhe aconteceria. Sabia, apenas, que nada poderia ser pior do que a vida que estava levando. Não estava feliz de viver doente num quintal triste e sem vida.
—Terei que tira-lo de perto da mamãe e replantá-lo logo ali, onde o sol, a chuva e o vento poderão tocá-lo e alimentá-lo como necessita.
Antes que Cabinha se pronunciasse, mamãe Jabuticabeira, apavorada, deu um estridente grito se remexendo toda como se uma grande ventania estivesse passando por ali :
—O que! Jamais deixarei você tirar Cabinha daqui. Minhas raízes estão bem entrelaçadas nele. Não o soltarei por nada neste mundo. Saia daqui, seu intruso!
—Eu não sou um intruso! Sou o novo guardião deste quintal. Só quero ajudá-los. Eu não vou tirar Cabinha de você e nem mesmo daqui. Só vou oferecer a ele uma separação saudável baseada numa distância mínima indispensável à vida de qualquer ser vivo. Justificou Ângelo com serenidade querendo apaziguar e conter a postura bélica manifestada pela mãe Jabuticabeira
—Que distância que nada! Se eu pudesse, eu plantava Cabinha em mim para protegê-lo ainda mais. Retrucou a mãe.
—Neste caso ele seria mais um galho seu, ou seja, um prolongamento de si mesma. Não teria vida própria. O que eu quero dar a Cabinha é vida própria. Ele merece, deseja e me pede isto. Mantê-lo atrelado a você não é um ato de amor, mas, um legítimo ato de egoísmo.
As outras árvores ouviam atentamente aquela conversa, até que a mais velha delas interveio:
—Talvez, ele tenha razão. Acho que sufocamos Cabinha com as melhores intenções. Agora que sabemos onde erramos, não faz sentido permanecermos no erro.
—Você fala assim, porque ele não é seu filho. Queria ver se estivesse na minha casca... Dificilmente continuaria com este mesmo discurso.
—Já vivi esta situação muitas vezes. Sou a mais velha daqui. Todas vocês são minhas descendentes. Tenho filhos, netos e bisnetos ao meu redor. Vocês cresceram saudáveis por eu ter permitido a vocês viverem a vida. Com esta educação moderna de hoje, as coisas parecem ter mudado para pior. Ao invés de oferecer a vida, os pais oferecem uma redoma. Antigamente, as coisas não eram assim. Como bem disse Ângelo, a proteção virou uma prisão. Aprisionado, ninguém se desenvolve. O excesso de proteção foi a maldição que caiu sobre todos nós.
—Abaixo a super-proteção! Abaixo a super-proteção! Protestaram enfaticamente todas as árvores do quintal.
No lugar da tristeza que adoeceu a todos foi brotando um certo clima de revolta. Cabinha, sentindo-se responsável pela confusão, começou a chorar. Aos soluços suplicou a Ângelo que fizesse o que havia sugerido.
—Me tire daqui! Me dê a distância necessária para que eu aprenda a viver. Preciso aprender a me virar sozinho.
—De jeito nenhum! Eu não vou permitir! Sempre busquei com as minhas raízes, no solo mais profundo, o alimento que te nutriu até hoje. Você não teria como fazer isto sozinho. As suas raízes são pequenas e frágeis. Se as outras árvores não desejam mais colaborar, eu hei de dar conta do recado sozinha. Sempre te protegi com minha frondosa copa. O seu corpo não agüentaria o calor do sol e a força da chuva e do vento. O seu lugar é aqui, do meu lado. Daqui você não sai! Pronunciou a mãe jabuticabeira com um tom arrogante e dominador, se sacudindo toda e espalhando algumas folhas secas sobre o chão como se estivesse querendo mostrar a sua força.
—Eu não sou mais nenhuma criança, apesar de me tratar como tal. O tempo passou. Apesar de não ter conseguido me desenvolver fisicamente, eu amadureci. O seu amor possessivo não quer me deixar crescer. Se não quiser me libertar, eu mesmo me libertarei de você. Te amo muito, mas não deixarei mais que este amor me adoeça. Retrucou Cabinha, enfrentando a mãe.
—Que ingratidão! Doei a minha vida a você e é isso que recebo em troca? Vitimizou-se a jabuticabeira mãe
—É justamente isto que não quero. Não quero que vivam por mim. Quero que vivam por vocês mesmos e por todos os seres que residem neste quintal. Mãos à obra , Ângelo! Ordenou Cabinha expressando pela primeira vez uma autoridade adulta.
Ângelo, com muito cuidado e carinho, começou a cavar a terra em volta de Cabinha para retirá-lo sem traumas e ferimentos. As raízes de sua mãe se entrelaçavam nas suas raízes tornando este trabalho muito difícil. Não queria ferir a mãe jabuticabeira e nem mesmo Cabinha puxando-o, bruscamente, de qualquer forma. Foi necessário desenvolver um complexo trabalho de desembolar as raízes, desatar os nós e separar as duas árvores. Depois de muita luta, conseguiu retirar Cabinha do solo e das presas de sua mãe. Dona jabuticabeira chorava e de suas folhas pingavam lágrimas como se fossem gotas de orvalho. Com o coração partido, Ângelo tentou acalmá-la, mesmo sabendo que só o tempo e a experiência poderia fazer isto por ela:
—Não fique triste! Cabinha continuará pertinho de você. Só precisa de um espaço só dele para desenvolver-se. Antes ele residia no seu espaço. Agora terá o seu próprio. Não seja egoísta! Espaço é o melhor presente que pode dar a seu filho.
A jabuticabeira não queria ouvir. Chorava compulsivamente sem acreditar na possibilidade dela e do filho serem felizes separados um do outro.
Ângelo plantou Cabinha a alguns metros da mãe, num espaço bem grande onde pudesse se expandir ao máximo. Ela poderia ver o filho quando quisesse, só não poderia mais atrapalhar o seu crescimento. A terra que o acolheu ofereceu as boas vindas prometendo fertilidade. Replantado em território próprio, Cabinha sentiu uma sensação que jamais sentira antes – liberdade. Sentiu, também, medo, ansiedade e insegurança - sentimentos estes, comuns no exercício inicial da liberdade. Mas, enfrentou estes sentimentos com outros ainda mais poderosos. Armou-se de coragem, otimismo e determinação para enfrentar todos os desafios que apareciam, dia após dia. Aprendeu a lidar com a doçura e com a fúria do sol, da chuva e do vento. Aprendeu a buscar sozinho o seu próprio alimento. Aprendeu a se relacionar com outros seres, pois a cada dia um bichinho diferente pousava em seus galhos querendo conhecê-lo melhor e iniciar uma nova amizade. Como Cabinha era muito simpático, fez centenas de amigos. Nunca estava sozinho. De onde estava, conversava com a mãe, pedia orientações quando necessário e demonstrava o prazer da nova vida. Dona Jabuticabeira, vendo toda transformação ocorrida com o filho, tornou-se capaz de enxergar o que a sua viseira do passado não permitia. Compreendeu o quanto estava errada cegada pelo medo de se separar e perder a sua jóia mais preciosa. Compreendeu que o seu amor doentio só poderia adoecer o outro e a si mesma. Amor doente de ciúme, medo e possessividade ao invés de alimentar , envenena. Cabinha foi envenenado no passado, mas agora estava curado.As outras jabuticabeiras acompanhavam a recuperação de Cabinha exalando felicidade e satisfação. A felicidade também contamina. No entanto, a contaminação da felicidade só traz saúde e bem estar. Foi assim que aquele quintal se transformou, novamente, num lugar saudável e gostoso de se viver.
Ângelo cuidava de seu quintal com amor e carinho. Sabia que seu zelo era também um grande alimento para todas as árvores, flores e bichos daquele lugar. Ângelo cresceu junto com Cabinha. Teve filhos e Cabinha também. Hoje, pode saborear as deliciosas jabuticabas que Cabinha fartamente lhe oferece todos os anos. Gosta sempre de levar crianças, adolescentes e adultos para sentar-se sobre sombra de Cabinha para ouvir uma história que termina sempre assim:
“Quem tem medo de viver, adoece, padece e não cresce

2 comentários:

  1. Quantos de nós super protegemos a nós mesmos na tentativa de não viver o novo, o desconhecido e a mudança necessária...Beijos,Aída Mara

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  2. Muito boa a sua colocação!Eu não tinha pensado nisto para esta história. Olhe como a troca de insights é importante! Obrigada! Que todos possam prestar atenção neste seu comentário.

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