sexta-feira, 13 de outubro de 2023

A FESTA

Dedico esta história a todas as histórias soterradas por interesses velados e caladas pelo “faz de conta que isso não está acontecendo...”

 

 

 

 

Repentinamente, o céu ficou diferente; a noite foi inundada com fogos e muito barulho como se fossem as lindas comemorações de passagem de ano. Passagens...Tudo passa, mas algumas coisas parecem persistir. Tudo acaba, mas algumas coisas parecem não ter fim. O que deveria acabar, fica; o que deveria ficar, desaparece.

Recolhidas e encolhidas num canto sem luz, dois corações retumbavam amor, mas bombeavam medo. A mãe, como uma concha que protege sua mais valiosa pérola, acolhia e aninhava a filha em seu peito. Naquela escuridão, tudo parecia um pesadelo. Beijando a face da filha, a mãe suplicou com brandura:

- Abrace a mamãe bem forte, feche seus olhinhos e vamos e brincar de sonhar.

Abraçada à mãe, sentindo o calor e o pulsar de seu corpo, a menina constatou algo diferente naquele abraço.

- Mamãe, seu coração está batendo tão forte!

- É amor, querida! Respondeu a mãe, escondendo as lágrimas que corriam de seus olhos.

- Que barulhos são estes, mamãe? Tem alguma comemoração acontecendo?

Numa fração de segundos, a memória da mãe trouxe uma vida inteira regada pelo medo de viver o que estava vivendo, ali, naquele exato momento.  Sem querer fazer de conta que “a vida é bela”, a mãe optou por metaforizar a consciência do terror que sempre lhe rondou. Se serviu de ironia para aplacar sua dor e sua ira.

- Há uma grande festa comemorando tudo que não se deve comemorar, filhinha.  

- O que não se deve comemorar? Perguntou a filha.

- O poder de alguns e a falta dele para a grande maioria. Respondeu a mãe.

Antes que a menina procurasse entender o sentido deste "poder" que a mãe acabara de falar, um grande estrondo aconteceu bem próximo dali. Suspirando assustada, com os olhinhos arregalados e inundada por sentimentos estranhos que sua imaturidade infantil lhe impedia nomear, prosseguiu:

- Ai, que susto!!!! Que barulhão!!! Foi o barulho mais forte qua já ouvi na vida; Tô com medo, mamãe!

Mesmo sabendo que o barulho mais forte estava por vir, a mãe apertou, com mais força ainda, a filha ao peito, sussurrando baixinho no ouvido dela:

- Mamãe está aqui! Mamãe te protege!

- O que acontece quando este barulhão aparece, mamãe? Perguntou curiosa e ao mesmo tempo com o seu corpinho todo tensionado pelo medo. Só não sentia pavor, pois o profundo  acolhimento da mãe aplacava, de certa forma, o seu desespero. A mãe era a sua única armadura naquele momento. Toda segurança que aquela guerreira lhe proporcionou, em seus poucos aninhos de vida, era um poderoso ansiolítico naquele momento de terror acionado pela sadismo e pela  psicopatia dos poderosos.

- A cada barulho deste, os "sacri"...

Antes de completar a palavra "sacrificados" e dar prosseguimento à sua resposta , a mãe parou, pensou e preferiu trocar o termo "sacrificados" por convidados. Convidado tinha uma relação maior com a palavra comemoração, festa... De certa forma, dava também mais leveza ao convite para a morte que todos, ali, já estavam acostumados. 

- Veja só, minha filha!A cada barulho, alguns convidados são expulsos da festa.

- Como assim, mamãe? O que eles fizeram para os donos da festa expulsa-los?

Ser expulso da vida doía tanto, que a mãe quase foi tomada pelo impulso de responder:

- Se não existíssemos seria mais fácil para eles. Não precisariam nos expulsar  da festa. A nossa existência, por si só, incomoda. Ser expulso da vida dói, mas nos liberta. Lutamos pelo direito de existir, mas perdemos a luta. Fomos nocauteadas pela cobiça humana.

No entanto, resolveu ponderar. A sua mágoa não seria uma boa convidada naquele momento.  Prosseguiu...

- Os convidados não fizeram nada, querida! Nunca tiveram o que fazer.  São simplesmente convidados e expulsos pelos donos da festa que sempre ditam as regras das comemorações.

- Hum!! É isso que a senhora diz ser o tal "poder"?

-  Sim. Isso mesmo! Os donos do poder são os donos da festa. Eles podem tudo. Podem o que não deveriam, jamais, poder. E, o pior é que o mundo chancela e aplaude, porque acham a festa deles mais interessante.

-Nós seremos convidados para a festa, mamãe?

- Nós já estamos nela, querida!

- Nós chegamos atrasadas? Está tudo tão escuro e vazio...Parece que nenhum convidado está mais aqui. Nem o papai está aqui conosco. Cadê o papai?

- Seu pai foi expulso também, mas está nos esperando numa outra festa bem diferente desta. Na festa onde o papai está, o dono é um ótimo anfitrião.

- Então, eu quero ir para a festa do papai. Estou com muita sede e com muita fome. Aqui, ninguém nos serve nada!

- Aqui, nós é quem servimos, minha filha. Servimos para servi-los; fora isso, a gente não serve para mais nada.

- Mas, a gente serve para muita coisa! Contrapôs a criança.

- Não, aqui! Reafirmou a mãe.

Frente todo cenário de terror e risco iminente de morte,  a mãe desejava que a filha pudesse se desapegar, rapidamente, de qualquer desejo de viver ali. A vida estava por um fio. Este fio era frágil demais para sustenta-la. Queria despertar nela o desejo de viver, mas viver de verdade. Aquilo não era vida. Lutou tanto tempo em vão! Estava cansada desta vida sem esperança. Sabia que para viver de verdade seria necessário morrer.  Por isso, seu discurso tornou-se desencantador. Foi ficando mais aliviada quando a filha foi demonstrando, devagarinho, sinais de desapego.

- Esta festa está muito chata; só barulho e escuridão. Fica até difícil brincar de sonhar. A única coisa boa aqui é você, mamãe.

-  Você é também a única coisa boa que tenho aqui. Ficar aqui, não tem a menor graça mesmo.

-  Eu não quero ser expulsa. Quero sair antes. Vamos embora!! A gente pode sair daqui agora?

- Infelizmente não, filhinha? Todas as portas estão fechadas.

- Que portas? Está tudo tão escuro; eu não consigo ver nada. 

- As portas são invisíveis, querida! Não conseguiremos passar por elas.

- Somos prisioneiras de portas invisíveis? Eu não quero ficar trancada. Eu quero sair! Eu quero sair!!!! Berrou a menina em desespero, se agarrando ainda mais à mãe.

- Calma, minha filha! Nós vamos sair. Fique bem abraçadinha com mamãe. Eu tenho um plano. Se a gente ficar quietinha aqui, recusando fazer o que eles querem, eles vão nos expulsar, pois não teremos serventia para eles. As portas invisíveis vão se abrir e a gente vai passar por elas. Assim, não precisaremos ficar mais aqui e poderemos ir para festa do papai. Na hora certa, seremos expulsas e nos libertaremos.

-  Quando papai foi expulso, a porta invisível se abriu e ele se libertou?

- Isso mesmo! É por isso que ele pôde sair daqui, ir para outra festa de verdade, e ser servido com um lindo banquete.

-  Banquete? Nunca ouvi falar nisso.

- É porque os donos desta festa gozam com o banquete que nós oferecemos a eles. Eles roubaram nosso lugar à mesa e nos mataram de fome. Por mais que a gente dê, eles nunca ficarão satisfeitos e nós jamais poderemos desfrutar do banquete que a gente oferece e prepara. Se você não sabe o que é banquete, a mamãe vai lhe oferecer, agora, o mais apetitoso e nutritivo de todos. Ele vai alimentar a sua alma!

- Verdade? Pode me servir então, mamãe!

- Você pode me servir também, meu amor!

- Como assim? Eu não sei como preparar um banquete. Indagou a menina.

- Você é quem pensa; você sabe preparar como ninguém! Vou te lembrar como faz, pois deste banquete, a gente se esbanjou todos os dias. Vamos tornar o nosso abraço ainda mais apertado, deixar o nosso coração bater bem juntinho nos alimentando com muito amor e com a esperança de uma vida nova.

E assim fizeram...

Aquele abraço apertado, fez o coração bater tão forte, que abafou totalmente o  barulho de um grande estrondo que chegou destruindo tudo. Depois disso, o silêncio veio, chegou e ficou. Aquelas vozes se calaram e nunca mais foram ouvidas.