domingo, 22 de julho de 2012

ENCONTRO


Dedico esta história a todos aqueles que possuem a coragem de mergulhar num mundo diferente para se tornar um pouco mais que o costumeiro jeito de ser e viver




Encontro

                                                  

Vou lhes contar a história de Marceu e Ceumar para que você possa  conhecê-los um pouquinho, pois, por um momento ou outro de sua vida, pode ser que acabe se deparando com a experiência que eles vivenciaram.

Marceu e Ceumar viviam em mundos bem diferentes.  Um morava no céu e o outro morava no mar. Por força do destino, acabaram se encontrando. Desejavam mergulhar no mundo do outro, mas, receosos, se perguntavam:

—Terei fôlego? Desejavam, também, que o outro mergulhasse em seu mundo e, novamente, se indagavam: — “Ele terá fôlego?”

Pior do que o dilema do fôlego era o dilema de uma dúvida que pairava na cabeça de cada um:

 — E se eu amar? Terei que abandonar o meu mundo para habitar o dele? Ele abandonaria o seu próprio mundo para habitar o meu? Que responsabilidade! Pesada demais para mim. Quantos riscos!

Tudo foi ficando pesado e confuso, quase chegou ao fim antes de ter começado, até que o tão temido amor chegou ao coração de cada um fazendo a sua primeira e única pergunta:

—Você se ama?

—No meio disto tudo, com o desconhecido me rondando, não sei se quero amá-lo. Respondeu Ceumar.

—Eu perguntei se você se ama e, não se você o ama. Corrigiu o Amor.

—É claro que me amo! Respondeu Ceumar cheia de convicção.

—Não parece... Questionou o amor.

—Por que?

—Porque tem concedido mais espaço ao medo do que ao amor dentro de ti. Justificou o Amor.

—Medo de que? Perguntou Ceumar.

—De amar o que vai encontrar. Afirmou o amor.

—Engano seu! Tenho medo de me decepcionar, de não gostar daquilo que vou encontrar.

—Se decepcionar tudo será bem mais simples. Não gostando do mundo dele, retorne ao seu e tudo voltará ao normal.

—Normal...Enjoei-me do normal, aliás, nunca gostei de nada que fosse normal demais. Refletiu Ceumar em voz alta.

—Foi por isso que se interessou pelo mundo dele. É diferente de tudo que voce vive. Talvez, por isso, quase nunca se interessa por pessoas do seu próprio mundo. Explicou  o Amor tentando analisar a situação de Ceumar.

—E se eu não gostar do mar, mas amar Marceu? Perguntou Ceumar receosa buscando uma orientação .

—Marceu e o mar são unos. Não tem como amar um e odiar o outro. O máximo que poderá acontecer é não gostar de algumas coisas do mundo dele. Esclareceu o Amor.

—Acho que é isto que eu queria dizer... Me diga o que fazer quando nos deparamos com  coisas que não gostamos no mundo do outro. Solicitou Ceumar buscando um esclarecimento maior.

—Tem tantas coisas que você também não gosta no seu próprio mundo, nem por isso você deixa de vivê-lo. Coisas são coisas; controláveis e manipuláveis. Só não deverá deixar estas coisas controlar e manipular você. Advertiu o Amor.

—Não há nada que me controle! Afirmou Ceumar convicta.

—Só você, né. Questionou o Amor tentando conceder a Ceumar uma reflexão maior sobre si mesma.

—Ãhhhh!!! Sussurrou surpresa.

—Você vive se controlando e não percebe. Solte-se, flua! Deixe que as coisas que você não gosta possam fluir também. Muitas se resolvem sozinhas sem que a gente tenha que fazer alguma coisa. Orientou o Amor.

—Que coisas são essas? Perguntou Ceumar, cheia de curiosidade, achando que o amor pudesse lhe dar alguma resposta.

—Só mergulhando no Mar para ver. Sugeriu o Amor.

—Isso vai dar um trabalho...Refletiu Ceumar.

—Se tiveres energia para o trabalho, saberá que todo trabalho resulta numa produção e a produção em lucro.

—Sairei lucrando? Perguntou Ceumar.

—Se souberes investir...Desafiou o Amor.

—Tem investimento que dá prejuízo. Conjeturou Ceumar.

—Você está com medo do prejuízo. Indagou o Amor.

—Acho que sim. Você entraria como meu avalista? Perguntou Ceumar buscando algo que pudesse lhe fornecer mais segurança.

—Se você compreender porque lhe fiz a primeira pergunta desta nossa conversa, talvez eu possa avalizá-la. Propôs o Amor.

—Amor, na verdade não entendi onde quiseste chegar ao perguntar-me se me amo. Dá para explicar melhor?

—É claro! Se você se amar me terás naturalmente como teu fiador, pois estarei sempre depositado no banco do teu coração. Esclareceu o Amor.

Ceumar compreendeu tudo. Sabia que neste mergulho muitas mudanças poderiam acontecer, nem tanto em seu mundo, mas, sobretudo dentro dela mesma. Correu para o espelho, fitou-se e ficou se observando. Olhava-se fixamente tentando se enxergar melhor e pensava:

—O que eu quero mudar?

Do outro lado, em outro mundo, curiosamente, acontecia o mesmo diálogo do Amor com Marceu. Assim como Ceumar, ele também correu para o espelho. Diante dele, seu pensamento começou a mergulhar no mundo de Ceumar antes que seu corpo pudesse ir junto. Como Marceu nunca gostou de se dividir, se quer sempre inteiro, detesta rotinas entediantes, adora mudanças e aventuras, resolveu, finalmente, dar um mergulho no Céu de Ceumar. No primeiro mergulho, por precaução, não foi muito fundo e rapidamente voltou ao Mar. Passado algum tempo, sentiu saudade e deu o seu segundo mergulho no Céu. Desta vez foi mais fundo, mas voltou como da primeira vez. E assim, foi dando mergulhos sucessivos cada vez mais profundos. Foi amando o mundo de Ceumar e controlando as coisas que não gostava. Só não esquecia de mergulhar em seu próprio mundo assim que voltava.

Curiosamente, o mesmo acontecia com Ceumar lá do outro lado. E, com tanta coisa acontecendo conjuntamente, com tantos mergulhos compartilhados, eles passaram a ter muito um do outro. Somaram as diferenças e criaram juntos algumas igualdades. E, é por isso que quando a gente olha para o encontro do Céu com o Mar ou do Mar com o Céu, lá no infinito que demarca a linha do horizonte, a gente não sabe mais quem é um e outro. A beleza deste encontro chega a nos hipnotizar tomando conta de todos nós o desejo de lá chegar.

Depois de um final tão bonito, você deve estar se perguntando:

—Que lugar no infinito é este, onde eles se encontram?

Eu lhe respondo, com certeza, que é um lugar que não se chega nunca. E você, certamente, vai pensar:

—Que horror! Quem é que dá conta de não chegar nunca a lugar algum?

Eu lhe diria que os dois dão conta. Sabe por que? Porque depois de tantos mergulhos, descobriram que já estavam lá há muito tempo e não sabiam. Descobriram que a linha do horizonte sempre foi apenas uma referência para seguirem em frente; jamais um ponto de chegada e acomodação. Assim, seguiram. Seguiram certos de que jamais chegariam ao final, que tudo seria sempre um delicioso e surpreendente começo a ser experimentado e vivido. Destes começos um novo ser estaria sempre sendo parido. O constante nascimento de uma nova vida afastaria para sempre o medo da morte daquilo que ficou velho e não tem mais forças para sobreviver.




segunda-feira, 9 de julho de 2012

A MATEMÁTICA DOS SENTIMENTOS


A MATEMÁTICA DOS SENTIMENTOS



         Em algum lugar, na matriz da vida, viveu por nove meses, tempo relativamente curto, um ser formado graças à junção de outros dois que separados estariam fadados à morte e juntos ao crescimento. Unidos, tornaram-se um só revertendo a exata operação matemática 1+ 1 = 2  para 1+ 1 = 1. Nesta relatividade matemática e num movimento constante de expansão e evolução instaurou-se neste ser a consciência de conjunto. Ser um conjunto vazio, unitário, finito ou infinito? Eis a questão a ser vivida e compreendida pelo novo ser em desenvolvimento contínuo. Num primeiro momento, ao ser gestado,  preferiu não pensar nisto. O ventre acolhedor onde vivia lhe parecia perfeito, desta forma, qual a razão para quebrar a cabeça? A sensação de completude, a consciência de união e de expansão sempre presente gerava o combustível para continuar a sua jornada por uma trilha chamada Vida, cujo princípio se baseava inicialmente num nirvana total caracterizada por uma operação cuja adição de prazeres multiplicava o encanto de viver. No entanto, repentinamente, o mundo se transformou lhe impondo a dolorosa operação de subtração. Foi jogado num universo novo onde experimentou pela primeira vez o sofrimento e a dor. Sentiu-se dividido. A dor chegou lhe arrancando algo que ilusoriamente pensava fazer parte de si: o mundo acolhedor que vivia.

         A sensação de completude e plenitude dissipou-se. Teve um desejo enorme de resolver uma operação irreversível voltando ao tempo, no entanto, o tempo parecia determinado a seguir sempre em frente. Começou a perceber, lentamente, que era parte de um mundo e não o contrário, ou seja, que não era o mundo parte de si. O antigo sentimento de auto-suficiência se transformou em fragilidade. A suficiência deixou de ser um atributo seu, deveria agora busca-la em algum lugar deste novo mundo onde fora jogado sem a sua vontade. Percebeu que a sua vontade não era tudo, que as coisas aconteciam independente dela.

         Perdido, cheio de dor e fragilidade, foi caminhando por um bom tempo pela estrada chamada Vida onde se deparou, na primeira encruzilhada, com uma entidade nova e interessante. Perguntou o seu nome e ela respondeu:

— Eu me chamo Ilusão.

Surpreso com a beleza da mesma empreendeu, curioso, uma nova pergunta:

— Você está a serviço de quem?

— Estou a serviço de todos. Respondeu Ilusão.

— A meu serviço também?

— A serviço de todos que não aceitam esta estrada tortuosa chamada Vida tal qual ela é. Esclareceu Ilusão.

— Me explique melhor. Solicitou

— Aos seres inconformados poderei trazer de volta tudo que ficou perdido. Elucidou Ilusão.

         Ditas estas palavras, apareceu um outro ser em forma de luz com um semblante confortador que o pegou no colo e o embalou tranquilamente. Sem saber ao certo o que estava acontecendo, perguntou confuso:

— E você, quem é?

         Não obteve resposta alguma. Aquele ser se limitava, serenamente, a embalá-lo. A sensação de conforto experimentada naquele momento mágico lhe trouxe a lembrança do mundo perdido onde tudo parecia ser perfeito e completo. Ilusão, querendo lhe confortar ainda mais lhe disse:

— O ser que te embala se chama Esperança. Ela lhe confortará até você se encontrar com tudo que foi perdido e se sentir inteiro novamente.

— Quando eu resgatar o que perdi, ela me deixará? Perguntou receoso.

— Ela não o deixará. Você  não precisará mais dela, pois ao encontrar seu elo perdido será novamente auto-suficiente e não sentirá mais a dor da necessidade e do desejo. Garantiu-lhe  Ilusão.

— Seria maravilhoso, pois é muito difícil conviver com a Necessidade e com o Desejo. Eles estão sempre esfomeados me solicitando coisas que nem sempre tenho para lhes oferecer. Nesta cobrança incessante, acabei tendo que conhecer uma tal de Frustração. Não fui com a cara dela. Sinto-me mal perto dela, mas ela parece não se mancar e permanece presente mesmo quando me esforço ao máximo para afastá-la.

Ilusão, rapidamente, lhe propôs uma solução para este desconforto:

— Se me levares sempre contigo, jamais terá que suportar a chata da Frustração. Nós duas não combinamos. Ela jamais se aproximará de você ao perceber a minha presença.

         Diante deste convite irrecusável de não ter mais que suportar a inconveniente Frustração, o frágil ser deu as mãos para Ilusão e continuou a sua caminhada. Quanto mais apertava a sua mão mais protegido se sentia. A cada passo que dava, Ilusão lhe assegurava que, na próxima encruzilhada, encontraria tudo que fora perdido. Sem perceber, o tempo passou rapidamente, quando, inesperadamente, deparou-se com um ser bem parecido consigo. Foi um encontro emocionante! Os dois se entreolharam. Que estranha sensação! Eram parecidos e diferentes ao mesmo tempo. Conseguiram, com reciprocidade, ver no outro o saudoso mundo perdido.  Tudo aquilo que haviam perdido parecia estar no outro. Perplexos, se indagaram:

— Você tem o que preciso. Como posso resgatar tudo que vejo em você?

Satisfeita, Ilusão sussurrou-lhes ao ouvido:

— Lhes prometi o resgate de tudo que foi perdido. Aqui está o elo perdido, a parte que lhes falta.  Apropriem-se dela e estarão, definitivamente, completos e em condições de viverem com a plena e eterna Felicidade. Partirei, mas deixarei com vocês a minha mais perfeita obra. Enquanto estiveres acompanhados por ela jamais se sentirão frágeis ou tristes.

         Naquele momento, foi concebida a união e a fusão daqueles dois seres que pareciam se completar. Juntos, pareciam ser um só todo indivisível. Iniciou-se, neste momento, a gestação de um conjunto unitário e a intrigante operação matemática 1 + 1 = 1, possibilitando à Ilusão parir, orgulhosamente, a maravilhosa obra que serviria de companhia para os mesmos. Ficaram surpresos e alucinados com o nascimento de uma nova obra parida por Ilusão. Um novo ser foi sendo concebido e junto com ele uma deliciosa onda de calor que parecia um fogo a queimar todas as insatisfações cuja combustão se transformava em prazer. Querendo conhecê-lo melhor, investigaram a sua identidade:

— Meu nome verdadeiro é Paixão, mas as pessoas gostam mesmo de me chamar de Amor. Amor passou a ser o apelido que encarnei e chego a me esquecer de quem sou realmente.

         Aquecidos pelo calor da Paixão, sentiam-se cada vez mais unidos e completos. Sem saber ao certo como identificar e nomear aquele novo ser que os acolhiam, perguntaram:

— Como você gostaria de ser chamada?

— Depende apenas de vocês. Se me chamarem de Amor se sentirão mais seguros. Respondeu, com astúcia, a Paixão.

— Assim seja! Você é o amor que nos acompanhará para sempre. Juntos, seremos uma fortaleza. Encontraremos a Felicidade e nada neste mundo poderá nos entristecer. Queremos viver esta plenitude e nada mais. Encontramos a parte perdida, não há nada que possa nos separar. Somos perfeitos um para o outro. Anunciaram, entusiasmados, os dois seres entorpecidos pela paixão.

         Viveram assim por um bom tempo, viciados um no outro. Qualquer separação, mínima que fosse, gerava um desconforto semelhante à síndrome de abstinência experimentada por usuários viciados em drogas. Diante de qualquer desconforto, tratavam de se fundirem rapidamente e a dor desaparecia. Isto aumentava cada vez mais a dependência e a certeza de quanto um era necessário e a parte fundamental do outro. Eles se bastavam. O mundo ao redor já não era tão importante, pelo contrário, dependendo da situação chegava a atrapalhar. Não havia espaço para outros integrantes num conjunto unitário. Foi assim que começaram a viver os seus primeiros conflitos. Alienados um no outro, a dor desaparecia. “Dizem, inclusive, que os alienados sofrem menos, talvez por estarem fundidos numa coisa só, numa visão estreita da Vida”. Quando dirigiam atenção ao redor, a dor voltava. Quanto maior a atenção às coisas de fora, maior o sofrimento. Para evitar  turbulências que causavam dor, tornou-se necessário formar um pacto que pudesse evita-las. Combinaram:

— Olharemos apenas um para o outro e seremos a única coisa que realmente dá sentido à vida. Nada poderá ser mais importante ou mais interessante do que nós mesmos. Nos bastamos!

Apesar de todos os esforços, apareceu, subitamente,  um novo ser extremamente sedutor chamada Curiosidade que passou a ser uma verdadeira tentação. Curiosidade pronunciava, repetidamente,  uma palavra perigosa mas, tentadora. De tanto repeti-la foi criando um novo vício. Era um suplício renunciar aos apelos de Curiosidade que provocava incessantemente:

— Olhe!

         O desejo de olhar passou a ser bem maior que o pacto firmado. Assim, mesmo às escondidas, começaram a dirigir o olhar para outras coisas que não fossem eles mesmos. Começaram a comparar o mundo projetado e estabelecido por eles com aquele inusitado mundo novo. O sinal de igualdade se transformou em sinal de diferença. Tinha sempre um ser diferente para desencadear dentro deles uma desconfortável comparação. Diante da mesma, apareceu a Inferioridade que os atormentava dizendo:

— Ele é melhor; você vale menos!

Vivendo este drama e um desgastante complexo de inferioridade, surgiu, repentinamente, um casal que parecia se dar muito bem. O nome deles era Ciúme e Inveja.  Ciúme dizia com convicção que aqueles seres que se amavam seriam os únicos capazes de acolhê-lo em seu coração. Pregava também que seria sempre uma injustiça qualquer um deles ser feliz sem que o outro pudesse estar por perto para compartilhar esta felicidade. Diante disto, estabeleceram mais um pacto impedindo que a Felicidade pudesse visita-los sem que o outro também estivesse presente para recebê-la. E a Inveja, parceira do Ciúme, sempre colaborava com o mesmo tratando de depreciar e desejar o mal a todos aqueles que tinham tido a aparente sorte de estar mais feliz do que eles. Acompanhados por estes dois parceiros inseparáveis, começaram a sentir um novo prazer na vida –  “contemplar a infelicidade do outro”.  Diante deste novo prazer, surgiu um censor chamado Culpa que os advertia severamente:

— Cuidado com o inferno!

O mundo pareceu, repentinamente, ter virado de cabeça para baixo. Por mais esforços que fizessem, não conseguiam mais vivenciar a plenitude do passado e do tão sonhado paraíso. Acompanhados pela Culpa se sentiam mal e não sabiam como afasta-la. Ela se tornava cada vez mais forte, principalmente quando tentavam explorar terrenos proibidos, contrários ao pacto proposto. Seduzidos pela Curiosidade e conscientes de que estavam quebrando o pacto estabelecido, começaram a pensar na possibilidade do parceiro estar fazendo o mesmo. Numa tentativa de controlar a situação, resolveram firmar um outro acordo ainda mais rígido e forte:

— De hoje em diante não seremos apenas a parte que completa o outro, tornaremos também a sua mais valiosa propriedade privada.

Ter um dono e ser ao mesmo tempo dono de alguém trazia de volta a saudosa Ilusão que determinava enfaticamente:

— Aquilo que é nosso ninguém toma e ninguém tem direito de se apropriar!

         Ilusão era maravilhosa! Chegava sempre no momento certo com uma solução mágica que afastava as dores e inseguranças. Tinha sempre um discurso perfeito, sabia como ninguém transformar pau em pedra. Estavam salvos, não perderiam mais aquela parte perdida no passado e reencontrada com tanta dificuldade. O controle passou a ser a maior arma que possuíam. Queriam saber de tudo que se passava na vida do outro, não por interesse, mas por mera fiscalização. Dizer, obsessivamente, para si mesmo — “Ele é meu e eu sou dele” — ajudava a manter o controle da situação. No entanto, viver assim trouxe uma visita indesejável chamada Estresse. Não há ninguém que consiga se manter relaxado tendo que controlar o tempo todo uma situação que parece não ter controle. Inicialmente, até suportavam bem o tal do Estresse, pois no fundo era por uma boa causa. A maior demanda era o controle. Sem perceberem, o Estresse foi lhes minando todas as energias e lhes causando um novo problema. Já não sentiam tanto prazer em ficar junto ao outro. Nada parecia ter muita graça. O encanto foi substituído pelo enfado. Tornaram-se cansados de si, cansados do outro e da própria vida. Apesar do incômodo desta nova sensação, não deixavam de repisar para si mesmo:

— O Amor vai nos salvar novamente e repelir todas as nossas dores.

         No entanto, o amor parecia ter lhes abandonado.  Antes tivera a capacidade de abrandar todas as dores incutindo em cada um a sensação de plenitude; agora  já não fazia isto mais. Onde estaria o amor? Antes que pudessem pensar, definitivamente, que o mesmo os tivesse desamparado, Ilusão apareceu com um discurso novo que os confortou novamente:

— O Amor suporta tudo, até mesmo as piores dores. Continuem vivendo as dores do controle e se manterão unidos para sempre.

Seguiam os conselhos de Ilusão, mas chegava sempre o momento que este discurso parecia ficar vago e impreciso. Foi num momento destes que conheceram um novo ser chamado Dúvida. Dúvida não esclarecia nada, apenas fazia perguntas e mais perguntas. Quase enlouqueceram diante de tantas indagações. Eram perguntas sem respostas; respostas que geravam novas perguntas. Perderam-se no meio de tantas divagações. Queriam soluções e não a companhia de seres parecidos com a Dúvida que só traziam insatisfações. Um deles era a Incerteza que parecia um gramofone repetindo sempre:

— Será?

Com tanto “será” começaram a se perguntar:

— Será que conseguiremos viver assim para sempre?

         Chegaram à conclusão que seria insuportável levar uma vida assim. Deveriam criar soluções e novas estratégias de combate. A vida parecia uma guerra, não seria justo serem combatidos e perder tudo que haviam conquistado. Perder equivaleria a se tornar um conjunto vazio e incompleto. Precisavam adicionar à vida algo novo, mas não sabiam ainda o quê. O desejo ardente de encontrar, rapidamente, uma solução fez com que se deparassem com uma tal de Ansiedade que proferia sempre com muita pressa uma única palavra:

— Rápido!

         Ordenados por Ansiedade, iniciaram uma corrida em alta velocidade pelas estradas da Vida. Nesta correria não prestavam atenção em nada. Tudo passava como um flash e com a intocável superficialidade. Aprofundar era perda de tempo. Sabiam que não podiam perder nada, nem, tampouco, o precioso tempo. Queriam segurá-lo, mas o tempo não parava. Sentindo incapacitados para lidar com o tempo presente criaram uma ocupação nova com a ajuda de uma nova especialista chamada Preocupação. Ocupar-se apenas do futuro, talvez enganasse a chata Frustração que tentava lhes assolar no presente. Fixar no pensamento e deixar de agir tornou-se a mais nobre dedicação. De posse de bons pensamentos conseguiam criar um futuro razoável e a posse de pensamentos negativos gerava um futuro nocivo. Era difícil manter o controle dos pensamentos, mas já estavam acostumados a controlar. Apesar das dificuldades e com excessivo esforço conseguiam aprisionar os maus pensamentos no porão da mente. Frequentemente, tinham que enfrentar a rebelião dos mesmos, mas já estavam se acostumando com rebeliões e guerras, pois a vida tinha se tornado um grande combate. Sempre atentos a possíveis combates, adotaram uma postura defensiva permanente que gerou  uma paranoia mútua. Tudo começou a ser percebido como uma ameaça e, sem se darem conta, começaram a se sentir ameaçados um pelo outro. Diante de tantas fantasias ameaçadoras, iniciaram também maciços ataques contra aquele ser que era, anteriormente, o seu mais valioso tesouro. Encontraram através desta conduta bélica um aliado que dizia sempre ser a mais forte arma para vencer uma guerra. Este aliado se chamava Raiva e tinha uma força tão grande quanto o suposto Amor que julgavam ter conhecido um dia. Raiva enfatizava colérica:

— Se não quiseres perder é necessário vencer o outro com uma cara bem feia, ameaças, manipulações e punições constantes. As pessoas temem estas armas e recuam. Briguem por tudo que desejam!

         Para não perder a parte conquistada, passaram a adotar a estratégia da Raiva.  Perceberam que era um bom mecanismo de controle. Brigar passou a ser uma forma de comunhão. Aprenderam a comungar discórdias e desavenças. Conseguiam se manter juntos, mas começaram a ter uma sensação de estarem cada vez mais distantes. Viveram isto um bom tempo até que conheceram a Indiferença que, de certa forma, trouxe um certo alívio para tantos conflitos, pressões e controles. Indiferença falava com um ar desanimado:

— Não se ligue nisto! A grande solução na vida é não ligar para mais nada.

         Restava agora seguir os conselhos de Indiferença na esperança de afastar o sofrimento. De fato, deixaram de sofrer, mas se tornaram seres completamente embotados. Não sentiam mais nada, nem desejos e nem mesmo a tão temida e insuportável frustração. Diante deste novo contexto, a Ilusão reapareceu, os abraçou para o resto de seus dias emitindo um constante murmúrio:

— Agora, vocês encontraram finalmente o paraíso. Nesta total ausência de dor não há mais nada o que buscar. Eis a plenitude que tanto desejaram!

            O conjunto unitário se transformou em conjunto vazio dando fim à trágica história de duas vidas completamente diferentes que se julgavam uma só; de dois seres inteiros que se julgavam uma fração, principalmente, uma fração do outro.

             Em algum lugar, um conselho formado por seres muito sábios que não tiveram lugar nesta história, mas que tentaram  avaliar esta trágica opção de vida comentavam entre si:

— Por que será que eles não quiseram a minha companhia? Perguntou o Amor.

— Em corações partidos não há espaço para você que só cabe em corações que mesmo machucados e doloridos conseguem se manter inteiros. Respondeu a Felicidade.

— Com isso você também não pôde se manifestar na vida deles. O máximo que conseguiram foi confundir a alegria com você, assim como confundiram a astuciosa paixão comigo. Ponderou o Amor.

— Foram tantas as guerras e os combates para preservar o que na verdade nunca conquistaram que nunca consegui me aproximar deles. Lamentou a Paz

— Tudo isso porque se apegaram a tudo que não deveriam se apegar nesta vida. Continuou o Desapego.

— A quê? Perguntaram todos numa só voz.

Sabedoria como presidente deste conselho concluiu:

— Não devemos nos apegar a uma única ideia nesta vida, principalmente quando ela nos limita. Na matemática, 1 é igual a 1 (1=1), mas na relativa matemática da vida 1 será sempre diferente de 1. Não há nenhum ser igual ao outro. Esta mesma exata ciência nos diz que meio mais meio é igual a um (1/2 + ½ = 1). No entanto, a ciência inexata da Vida afirma que a união de duas metades sempre gera duas metades, ou seja, duas meias pessoas. Pensar que poderemos concluir alguma coisa ou nos completar é uma maneira limitada de enxergar a vida. Estamos completamente engajados no infinito. O máximo que conseguiremos é eternamente acrescentar algo ao nosso ser ilimitado. A parte que nos completa é o próprio universo. Se somos parte de alguma coisa, somos parte dele. Como ele é infinito, infinitas serão as nossas possibilidades. Acho que o maior dilema do ser humano é na verdade a maior benção que recebeu.

— Qual? Perguntaram novamente.

— Ter sido incluído no conjunto infinito cuja regra básica é o constante crescimento.

Terminada a reunião, cada um seguiu o seu caminho procurando uma alma que pudesse lhes acolher.