quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

CABINHA

Dedico esta história a todos aqueles que tomados pelo medo transformam o amor numa prisão
Era uma vez um pé de jabuticaba bebê, daqueles bem pequeninos que nascem ao lado da jabuticabeira mãe. Ele vivia cercado de outras árvores num lindo quintal de uma bela casa. Todos os pés de Jabuticaba que ali viviam amavam o bebê jabuticaba e tratavam de protegê-lo para que pudesse se tornar, um dia, uma grande árvore, assim como a sua mãe e tantos outros nascidos naquele quintal. De tão singelo e delicado que era, todos passaram a chamá-lo de Cabinha.
Mamãe Jabuticaba, com seus galhos enormes e abertos, protegia Cabinha de todas as maneiras com as melhores intenções possíveis. Debruçava-se sobre o mesmo protegendo-o do sol e da chuva forte. Todas as outras Jabuticabeiras tratavam de fazer o mesmo. Formavam ao redor de Cabinha uma grande alameda como se fosse um grande escudo para protegê-lo dos fortes ventos, que, vez ou outra, passavam por ali desgalhando e derrubando algumas árvores. Com tanta proteção, a pequena jabuticabeira começou a acreditar que o sol, a chuva e o vento fossem muito perigosos. Encolhia-se de medo todas as vezes que alguns raios de sol passavam entre os galhos protetores desua mãe. Chuva forte, ele nunca conheceu, pois a mãe cercava todo volume d’água deixando apenas que suaves gotas de água banhassem seu filhinho querido. Com a proteção das outras jabuticabeiras, só a brisa suave era capaz de alcança-lo e toca-lo. Ninguém queria que Cabinha, tão pequeno e frágil, pudesse sofrer qualquer acidente ou agressão. Com tanta proteção, todos nutriam a certeza de que aquela árvore bebê iria crescer rapidamente, forte e saudável. Mas, não foi o que aconteceu. Pelo contrário, a pequena árvore estava sempre doente, fraquinha, reclamando cansaço e falta de energia. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Quanto mais Cabinha se enfraquecia, mais proteção recebia de todas as jabuticabeiras do quintal. Quanto mais proteção recebia, mais fraco se sentia. Instaurou-se um ciclo vicioso que o deixou tão fraco a ponto de murchar e perder suasfolhinhas. O tempo foi passando e Cabinha se transformou num galhinho frágil, quase seco. Mamãe jabuticabeira chorava de tristeza ao ver o filho doente. Com tanta tristeza, foi se tornando frágil também, pois a tristeza duradoura é um sentimento ruim que rouba toda nossa energia. O mesmo aconteceu com as outras árvores ao redor; uma foi contaminando a outra com a sua tristeza até que aquele quintal outrora tão viçoso e bonito foi se transformando num lugar árido e sem vida. O verde das folhas foi se transformando num marrom opaco. Os passarinhos, as borboletas, as Joaninhas, enfim, todos os bichos que antes adoravam repousar sobre os galhos das jabuticabeiras e se nutrir com as deliciosas e docinhas jabuticabas tiveram que abandonar aquele lugar, pois não havia mais alimento e nem mesmo a protetora sombra do passado para refrescar os calorosos dias de verão. Até a família que morava na bela casa daquele quintal se mudou misteriosamente sem que ninguém soubesse para onde e porque. Todas as jabuticabeiras pensavam: Será que uma grande maldição caiu sobre todos nós?
A resposta para tanta indagação foi trazida por um anjo que se mudou para aquela casa.Você deve estar imaginando que este anjo veio do céu como tantos outros que costumamos conhecer nas mais intrigantes histórias. Engano seu! Este anjo veio da roça, de um lugar escondido no meio das matas. Ele conhecia tudo sobre árvores, borboletas, passarinhos, chuva, sol, vento, enfim, conhecia tudo que dissesse respeito à natureza. Era um anjo sábio e experiente. Com tanta sabedoria, você pode imaginar a idade dele. Talvez, aposte numa idade avançada. Mais uma vez, engano seu! Este anjo era uma criança. Isto mesmo, uma criança! Ângelo era o seu nome.
Ângelo aprendeu tudo que sabia sobre a vida com a escola natureza. E, de vida ele sabia bastante, pois a natureza de onde veio era viva, muito viva. Mudou-se com sua família para aquela casa e inicialmente achou muito estranho que um quintal tão grande pudesse ter se transformado em um espaço árido e sem vida. Antes de tirar qualquer conclusão sobre a suposta maldição que poderia ter caído sobre aquele lugar, preferiu sentar próximo de cada jabuticabeira, sentir a energia que cada uma emanava, observar profundamente a postura de todas elas e tecer uma gostosa conversa com todos os habitantes daquele quintal. Ângelo, criado na roça, era bem diferente de todas as pessoas da cidade. Tinha um comportamento que deixava muita gente intrigada – ele conversava com as árvores, com as flores, com os passarinhos e com todos os bichinhos. Muitos o consideravam um maluquinho, mas ele nem se importava. Ele compreendia a limitação e a dificuldade das pessoas para entender a linguagem da natureza. Nem todo mundo fala todas as línguas. E, a língua da natureza só pode ser falada por quem tem muita sensibilidade. Foi numa destas conversas, aliada a uma profunda observação que Ângelo descobriu a maldição que recaiu sobre o quintal. Uma velha e sábia borboleta que descansava sobre os galhos da mamãe de Cabinha comentou:
—Nunca vi uma mãe tão protetora quanto esta! Quis prender o filho num casulo... Olhe no que deu!
Mamãe jabuticabeira retrucou, já meio sem força:
—Casulo? Desde quando eu sou uma borboleta? Cabinha sempre foi livre, eu apenas o protegi com meus galhos das intempéries naturais.
Ângelo tocou graciosamente os galhinhos quase totalmente sequinhos de Cabinha, orientando-o com doçura:
—Cabinha, você precisa mudar de lugar. Você está muito agarrado à sua mãe. Olhe bem os galhos e as raízes dela circundando você. Aí, neste lugar, não há espaço para você crescer e nem para se alimentar como deve.
Mamãe árvore, irritada com Ângelo interveio:
—Como pode dizer um absurdo deste! Sempre protegi meu filhinho de todos os perigos e agora recebo uma acusação destas. Ele sempre foi frágil. Nunca se deu bem com o calor do sol, com a chuva forte e, com certeza, penderia frente um vento forte. Proteção é sinal de amor. Eu amo Cabinha mais do que tudo!
Ângelo abraçou os galhos de mamãe jabuticabeira, deu um beijo carinhoso em seu tronco procurando se explicar:
—Você está entendendo mal o que eu quis dizer. Sei que ama Cabinha e que sempre desejou protegê-lo. No entanto, ao invés de protegê-lo, você o superprotegeu. Como bem disse, proteção é sinal de amor; no entanto, superproteção é expressão de nosso medo. O seu medo adoeceu Cabinha e o impediu de crescer. Ele parece temer tudo aquilo que vai nutri-lo. Querendo protegê-lo, você o privou de experiências fundamentais ao seu desenvolvimento. Ao invés de ensiná-lo a lidar com os perigos e intempéries da vida, você se tornou um casulo que serviu apenas para tirar a sua resistência. Aliás, parece que todas as jabuticabeiras aqui fizeram o mesmo. Viveram em função de protegê-lo e esqueceram de ensina-lo o mais importante.
—O que é o mais importante? Perguntou a mãe curiosa.
—Viver é o mais importante!
Todas as árvores se curvaram perplexas, até que uma delas tomou coragem e perguntou:
—Mas, o que fizemos até agora senão viver?
—Vocês viveram apenas os seus medos e expectativas. Sobreviveram bem e viveram muito mal.
—Você teria como me ensinar a viver? Perguntou Cabinha se esverdeando de esperança.
—Eu teria todo prazer em fazer isto por você. Mas, algumas mudanças importantes deverão acontecer aqui para que não só você, mas todas as jabuticabeiras possam se renovar e viver plenamente.
—Estou de acordo com qualquer coisa que possa me libertar deste casulo que me adoeceu.
—Então, prepare-se ! Pode não ser fácil. No entanto, nada é mais difícil do que ser uma árvore doente. Advertiu, Ângelo.
—Estou pronto!Pode começar!Ordenou Cabinha firmando seu tronco ainda frágil, sem saber ao certo o que lhe aconteceria. Sabia, apenas, que nada poderia ser pior do que a vida que estava levando. Não estava feliz de viver doente num quintal triste e sem vida.
—Terei que tira-lo de perto da mamãe e replantá-lo logo ali, onde o sol, a chuva e o vento poderão tocá-lo e alimentá-lo como necessita.
Antes que Cabinha se pronunciasse, mamãe Jabuticabeira, apavorada, deu um estridente grito se remexendo toda como se uma grande ventania estivesse passando por ali :
—O que! Jamais deixarei você tirar Cabinha daqui. Minhas raízes estão bem entrelaçadas nele. Não o soltarei por nada neste mundo. Saia daqui, seu intruso!
—Eu não sou um intruso! Sou o novo guardião deste quintal. Só quero ajudá-los. Eu não vou tirar Cabinha de você e nem mesmo daqui. Só vou oferecer a ele uma separação saudável baseada numa distância mínima indispensável à vida de qualquer ser vivo. Justificou Ângelo com serenidade querendo apaziguar e conter a postura bélica manifestada pela mãe Jabuticabeira
—Que distância que nada! Se eu pudesse, eu plantava Cabinha em mim para protegê-lo ainda mais. Retrucou a mãe.
—Neste caso ele seria mais um galho seu, ou seja, um prolongamento de si mesma. Não teria vida própria. O que eu quero dar a Cabinha é vida própria. Ele merece, deseja e me pede isto. Mantê-lo atrelado a você não é um ato de amor, mas, um legítimo ato de egoísmo.
As outras árvores ouviam atentamente aquela conversa, até que a mais velha delas interveio:
—Talvez, ele tenha razão. Acho que sufocamos Cabinha com as melhores intenções. Agora que sabemos onde erramos, não faz sentido permanecermos no erro.
—Você fala assim, porque ele não é seu filho. Queria ver se estivesse na minha casca... Dificilmente continuaria com este mesmo discurso.
—Já vivi esta situação muitas vezes. Sou a mais velha daqui. Todas vocês são minhas descendentes. Tenho filhos, netos e bisnetos ao meu redor. Vocês cresceram saudáveis por eu ter permitido a vocês viverem a vida. Com esta educação moderna de hoje, as coisas parecem ter mudado para pior. Ao invés de oferecer a vida, os pais oferecem uma redoma. Antigamente, as coisas não eram assim. Como bem disse Ângelo, a proteção virou uma prisão. Aprisionado, ninguém se desenvolve. O excesso de proteção foi a maldição que caiu sobre todos nós.
—Abaixo a super-proteção! Abaixo a super-proteção! Protestaram enfaticamente todas as árvores do quintal.
No lugar da tristeza que adoeceu a todos foi brotando um certo clima de revolta. Cabinha, sentindo-se responsável pela confusão, começou a chorar. Aos soluços suplicou a Ângelo que fizesse o que havia sugerido.
—Me tire daqui! Me dê a distância necessária para que eu aprenda a viver. Preciso aprender a me virar sozinho.
—De jeito nenhum! Eu não vou permitir! Sempre busquei com as minhas raízes, no solo mais profundo, o alimento que te nutriu até hoje. Você não teria como fazer isto sozinho. As suas raízes são pequenas e frágeis. Se as outras árvores não desejam mais colaborar, eu hei de dar conta do recado sozinha. Sempre te protegi com minha frondosa copa. O seu corpo não agüentaria o calor do sol e a força da chuva e do vento. O seu lugar é aqui, do meu lado. Daqui você não sai! Pronunciou a mãe jabuticabeira com um tom arrogante e dominador, se sacudindo toda e espalhando algumas folhas secas sobre o chão como se estivesse querendo mostrar a sua força.
—Eu não sou mais nenhuma criança, apesar de me tratar como tal. O tempo passou. Apesar de não ter conseguido me desenvolver fisicamente, eu amadureci. O seu amor possessivo não quer me deixar crescer. Se não quiser me libertar, eu mesmo me libertarei de você. Te amo muito, mas não deixarei mais que este amor me adoeça. Retrucou Cabinha, enfrentando a mãe.
—Que ingratidão! Doei a minha vida a você e é isso que recebo em troca? Vitimizou-se a jabuticabeira mãe
—É justamente isto que não quero. Não quero que vivam por mim. Quero que vivam por vocês mesmos e por todos os seres que residem neste quintal. Mãos à obra , Ângelo! Ordenou Cabinha expressando pela primeira vez uma autoridade adulta.
Ângelo, com muito cuidado e carinho, começou a cavar a terra em volta de Cabinha para retirá-lo sem traumas e ferimentos. As raízes de sua mãe se entrelaçavam nas suas raízes tornando este trabalho muito difícil. Não queria ferir a mãe jabuticabeira e nem mesmo Cabinha puxando-o, bruscamente, de qualquer forma. Foi necessário desenvolver um complexo trabalho de desembolar as raízes, desatar os nós e separar as duas árvores. Depois de muita luta, conseguiu retirar Cabinha do solo e das presas de sua mãe. Dona jabuticabeira chorava e de suas folhas pingavam lágrimas como se fossem gotas de orvalho. Com o coração partido, Ângelo tentou acalmá-la, mesmo sabendo que só o tempo e a experiência poderia fazer isto por ela:
—Não fique triste! Cabinha continuará pertinho de você. Só precisa de um espaço só dele para desenvolver-se. Antes ele residia no seu espaço. Agora terá o seu próprio. Não seja egoísta! Espaço é o melhor presente que pode dar a seu filho.
A jabuticabeira não queria ouvir. Chorava compulsivamente sem acreditar na possibilidade dela e do filho serem felizes separados um do outro.
Ângelo plantou Cabinha a alguns metros da mãe, num espaço bem grande onde pudesse se expandir ao máximo. Ela poderia ver o filho quando quisesse, só não poderia mais atrapalhar o seu crescimento. A terra que o acolheu ofereceu as boas vindas prometendo fertilidade. Replantado em território próprio, Cabinha sentiu uma sensação que jamais sentira antes – liberdade. Sentiu, também, medo, ansiedade e insegurança - sentimentos estes, comuns no exercício inicial da liberdade. Mas, enfrentou estes sentimentos com outros ainda mais poderosos. Armou-se de coragem, otimismo e determinação para enfrentar todos os desafios que apareciam, dia após dia. Aprendeu a lidar com a doçura e com a fúria do sol, da chuva e do vento. Aprendeu a buscar sozinho o seu próprio alimento. Aprendeu a se relacionar com outros seres, pois a cada dia um bichinho diferente pousava em seus galhos querendo conhecê-lo melhor e iniciar uma nova amizade. Como Cabinha era muito simpático, fez centenas de amigos. Nunca estava sozinho. De onde estava, conversava com a mãe, pedia orientações quando necessário e demonstrava o prazer da nova vida. Dona Jabuticabeira, vendo toda transformação ocorrida com o filho, tornou-se capaz de enxergar o que a sua viseira do passado não permitia. Compreendeu o quanto estava errada cegada pelo medo de se separar e perder a sua jóia mais preciosa. Compreendeu que o seu amor doentio só poderia adoecer o outro e a si mesma. Amor doente de ciúme, medo e possessividade ao invés de alimentar , envenena. Cabinha foi envenenado no passado, mas agora estava curado.As outras jabuticabeiras acompanhavam a recuperação de Cabinha exalando felicidade e satisfação. A felicidade também contamina. No entanto, a contaminação da felicidade só traz saúde e bem estar. Foi assim que aquele quintal se transformou, novamente, num lugar saudável e gostoso de se viver.
Ângelo cuidava de seu quintal com amor e carinho. Sabia que seu zelo era também um grande alimento para todas as árvores, flores e bichos daquele lugar. Ângelo cresceu junto com Cabinha. Teve filhos e Cabinha também. Hoje, pode saborear as deliciosas jabuticabas que Cabinha fartamente lhe oferece todos os anos. Gosta sempre de levar crianças, adolescentes e adultos para sentar-se sobre sombra de Cabinha para ouvir uma história que termina sempre assim:
“Quem tem medo de viver, adoece, padece e não cresce

ESPAÇO DE LUZ

Dedico esta história ao brilho que cada um carrega dentro de si

        Admirando o céu estrelado, deitada na rede com caneta e folha na mão, tentei buscar em algum lugar do universo uma estória que pudesse falar do brilho que cada um carrega dentro de si. Observando o infinito que abriga estrelas de diferentes formas, tamanhos e brilhos pude associar o universo delas com o intrigante universo humano. E foi assim que encontrei diante de enormes estrelas um ponto de luz, minúsculo o suficiente, para iluminar as minhas idéias. De uma pequena luz nasceu uma grande estória.

Era uma vez um ponto luminoso que residia no infinito universo das estrelas. Escondido em meio a tanta luz trazia consigo o sonho de ser um dia chamado estrela. Era pequeno demais para ser designado assim, precisava crescer, mas não sabia como. Sonhava ser visto e admirado por todos que dirigissem o olhar para o céu, invejando as outras estrelas que brilhavam de felicidade ao receber olhares vindo de inúmeros lugares do universo.

O único desejo que o ponto luminoso possuía era ser como as outras estrelas e a única certeza que tinha era a de não querer ser ele mesmo. Comparava-se o tempo todo com as grandes estrelas e invejava o lugar delas. A inveja e a vaidade roubavam a sua vitalidade e o seu brilho. Cansado e opaco, já quase se apagando, recebeu finalmente a visita do guardião estrelar que aparecia toda vez que o universo corria o risco de perder uma estrela. Era como se ele fosse um salva-vidas tentando salvar com sabedoria qualquer estrela ameaçada de se afogar na escuridão.

        O guardião estrelar era considerado a maior estrela do universo. O seu brilho era como se fosse a junção de milhares de estrelas juntas. Ponto de luz surpreso com tanta luz se aproximando gritou temeroso:
— Pare, por favor! Eu não quero morrer consumido pela sua luz.
O guardião continuou se aproximando e despertando um pavor cada vez mais intenso naquele pontinho luminoso.
— Eu não quero morrer! Eu não quero morrer! Por favor, não roube a pouca luz que me resta.
Serenamente o guardião lhe tranqüilizou:
— Eu não vim roubar a sua luz. Eu vim ajudá-lo a intensificá-la.
— Como assim? Perguntou com indignação aquele ponto minúsculo.
— Se você não deseja morrer necessita romper com as trevas.
— Por que você me diz isto? Eu não sou parceiro das trevas.
— Mas está se afogando nelas. Talvez queira ajuda, é por isso que vim.
— Você me daria um pouco de sua luz para que eu possa me transformar numa estrela igual às outras? Perguntou o ponto de luz intensificando a sua esperança.
— Eu não posso lhe ceder a minha luz, ela só pertence a mim. E, não há como você se transformar numa estrela igual as outras. Cuidado com a inveja e com a vaidade que não lhe permite valorizar as diferenças.
— Como pode dizer que invejo?
— Não há como negar aquilo que está registrado em seu brilho e em seu olhar.
Incomodado e decepcionado, ponto de luz foi se afastando devagarzinho dirigindo-se cada vez mais para o interior das trevas. O seu brilho foi se ofuscando e a sua fragilidade desatou um desabafo agressivo:
— Se sou um invejoso, você é um grande egoísta. Não custava nada me oferecer um pouco desta farta luz que recebeu.
— Você está enganado. Eu não recebi minha luz de ninguém, eu a conquistei.
— Eu não acredito! Como posso ter algo sem que alguém me dê?
— Conquistando!
— Não acredito em conquistas. Eu acredito na sorte. Eu não tive a sorte que as outras estrelas tiveram de conseguir um lugar estratégico no universo.
— O que você chama de lugar estratégico?
— Um lugar onde possamos ser vistos e admirados por todos.
Percebendo a visão equivocada daquela minúscula luz, o guardião estrelar tentou firmar um pacto com a mesma.
— Provarei para você que não é o lugar que faz a estrela, mas o inverso, ou seja, a estrela faz o lugar. No entanto terás que firmar um acordo comigo.
— Que acordo?
— Caso eu consiga provar para você o que acabei de dizer, você terá que aceitar um desafio.
— Qual desafio?
— Deixar de olhar as outras estrelas por um instante para desenvolver a capacidade de enxergar a si próprio.
— Para onde deverei desviar o meu olhar para que eu possa me enxergar?
— Para o espelho das águas do mar.
Desesperado e colérico ponto luminoso se exaltou relutando cumprir o acordo a ser firmado.
— Você quer me enganar e me transformar numa estrela do mar. Dizem que todas as estrelas que perderam o brilho caíram para sempre no fundo abismo do mesmo. Eu não quero correr este risco.
— Por medo de se afogar no mar, você afogará nas trevas infinitas do universo. Boa sorte! Nunca diga que não teve uma opção de escolha. Lamento por ti.
O guardião estrelar foi se afastando lentamente. À medida que se afastava a sua luz continuava a mesma, forte e poderosa. A distância não diminuía a sua intensidade. Surpreso com o que viu, ponto de luz inflou o peito e deu um estridente grito de socorro:
— Volte, por favor! Não me abandone. Eu aceito o desafio.
Guardião estrelar retornou pacientemente. A insignificante luz fez ainda algumas conjeturas antes de aceitar definitivamente o desafio, parecia não acreditar muito na possibilidade do guardião conseguir provar um discurso que parecia mais uma utopia.
— Só terei que me olhar caso você prove que o lugar não faz a estrela, mas sim o inverso. Ponderou a luzinha num tom de exigência.
— Perfeitamente.
— Como você conseguirá me provar isto?
— Muito fácil! Apenas tirando você do lugar que ocupa hoje.
— Maravilha! Isto é tudo que desejei durante toda a minha vida. Para onde me levará? Perguntou a opaca luz num misto de ansiedade e exaltação.
— Você será levado para onde desejar. Escolha a estrela mais invejada por você que providenciarei todos os recursos para que ocupe o lugar dela.
        Padecendo em ânsia apontou rapidamente para a segunda maior estrela do universo, já que a primeira era o próprio guardião, sendo, portanto, inapropriado querer ocupar o lugar da estrela que o ajudaria.
— Quero ocupar o lugar da estrela Lúcy.
— Aguarde um momento que providenciarei as mudanças de posições. Preciso comunicar com Lúcy para que ela possa ceder-lhe este lugar que tanto deseja.
— Você acha que ela aceitaria ocupar este lugar horrível que ocupo? Acha que abriria mão do brilho que possui para passar a viver nestas trevas que vivo?
— A mudança de lugar não afetará o brilho de Lúcy, aliás, uma das coisas que mais intensifica a sua luz é a possibilidade de estar mudando sempre de lugar. Ela adorará esta nova aventura. Vou provar que as trevas que você enxerga fora existe apenas dentro de si mesmo.
        Ponto de luz expressou desprezo, mas limitou-se se manter calado aguardando o momento tão esperado. Guardião estrelar aproximou-se de Lúcy fazendo os ajustes necessários e retornou exultante.
— Preparado? Tudo acontecerá como um flash.
        Repentinamente raios de luz cruzaram o universo. Ponto de luz se viu lançado para um espaço totalmente novo no extremo oposto espaço sideral. Ainda tonto tentando administrar sua euforia e seu medo, ouviu as palavras finais do atencioso guardião estrelar:
— Cumpri a minha parte. Agora me diga o que vê e o que sente.
Decepcionado, ponto de luz pôs-se a chorar lamentando a ilusão que alimentou durante toda a sua vida.
— Mudamos de lugar, no entanto Lúcy continua linda. Seu brilho aumentou ainda mais no espaço que para mim era só de trevas. Neste momento ele se transformou num espaço de luz e eu o perdi. Não consegui roubar a luz de Lúcy ocupando seu lugar. Sinto-me cada vez mais opaco e frágil e o espaço de luz que pertencia a Lúcy já não ilumina nada ao ser ocupado por mim. Você tem razão, o espaço não faz a estrela. Talvez seja mesmo a estrela responsável por construir o seu espaço, no entanto, eu não aprendi ainda construir o meu por ter passado uma vida inteira cobiçando um lugar que não me pertencia.
— Lamento muito, porém, quero que perceba que a tomada de consciência sobre a ignorância que o dominou até então se transformou em luz dentro de ti. Cumpri a minha missão, espero que consiga concluir a sua. Não tenho mais o que fazer aqui.
       O guardião estrelar partiu, mas continuou visível mesmo distante. Uma luz daquela jamais se apaga, se presentifica eternamente. Quanto ao ponto de luz, desiludido pôs-se a chorar por tempo indeterminado. Ninguém soube explicar até hoje por quanto tempo chorou. Dizem apenas que suas lágrimas se transformaram num mar de água salgada e cristalina de onde emergiu uma linda estrela brilhante que mergulhou no universo com o propósito de ocupar continuamente um novo lugar no infinito.
    Hoje, quando olho para o céu eu a vejo muito grande sorrindo para mim. Parece apreciar-se e amar-se muito. Ela me contou que lá de cima a terra parece mais um mar de estrelas de diferentes tamanhos, formas e brilhos. Foi a partir disto que descobri ser muito importante tentarmos resgatar aqueles pontos de luz que não conseguiram ainda se enxergar como estrela. Se você for uma estrela talvez possa me ajudar. Desde já lhe agradeço, pois o nosso planeta precisa de muita luz. Você estará fazendo por mim, por você, por nós. Abençoada seja a sua luz!

NEM QUE SEJA NA CADUQUISSE

 Dedico esta história ao nosso direito e ao nosso dever de divertir

Lá estava ele, na dita terceira idade, olhando seu neto brincar e lembrando-se da sua infância:
— Vovô, por que o senhor me olha tanto?
— Estou recordando minha infância.
— Você brincou muito? Perguntou o neto repleto de curiosidade pelas experiências lúdicas do avô.
Desiludido o avô respondeu:
— Não brinquei não. Quando eu quis brincar, meus pais me disseram que havia muito tempo pela frente incumbindo-me de outras tarefas. O tempo passou e as brincadeiras ficaram perdidas no tempo.
Numa outra ocasião, já bem mais velho, observando o namoro do neto agora adolescente, fitou-o com saudade.
— Por que me olha assim, vovô?
— Estou recordando minha adolescência.
— Você namorou muito? Perguntou o neto curioso pelas paqueras do avô.
Novamente desiludido o avô respondeu:
— Quando desejei namorar meus pais me disseram que naquele momento eu deveria estudar. Estudando, eu não aprendi a escolher uma mulher que eu realmente amasse. Meus pais acabaram fazendo a escolha por mim e eu perdi a mulher de meus sonhos. Estudando eu aprendi a ser um médico, mas não aprendi a ser um homem.
Lá na frente, já bem velhinho, ouviu atentamente o neto já com 40 anos contar as histórias de uma linda viagem de férias. As lágrimas que rolaram de seus olhos desencadearam no neto uma melancólica curiosidade:
— Por que choras, vovô?
Exalando desilusão por todos os seus poros, respondeu:
— Choro as férias que não gozei. Na sua idade, mesmo não sendo mais cobrado por ninguém, aprendi a me cobrar a responsabilidade de trabalhar e nada mais. Uma censura interior me dizia que o lazer deveria ficar para a aposentadoria. Esta voz censora alegava-me que o trabalho me daria a garantia de uma aposentadoria tranqüila. Aposentei com tranqüilidade financeira, mas paguei um alto preço por isso. Poupei usufruir a vida. Esta poupança me rendeu apenas a doença que hoje me habita. Mesmo sendo um médico nunca consegui me tratar. O que um velho que não aprendeu a se divertir pode fazer? Eu não quero mais que a doença seja a minha única diversão.
O neto olhou o avô com pesar aconselhando-o com otimismo:
— O senhor aprendeu a tratar da doença e se esqueceu de tratar de sua saúde. Soube tratar da enfermidade de todos e não soube tratar de si mesmo. Pois trate agora de descobrir o que lhe dá prazer. Não sou eu quem vai cometer mais um erro dizendo-lhe o que fazer. Pode parecer tarde demais, mas ainda há tempo para a diversão.
O velho ouviu atentamente os conselhos do neto, mas nada fez. Seu comodismo parecia ser maior do que sua força de vontade. No entanto, sua doença, sua maior aliada, encarregou-se de ajuda-lo trazendo a esclerose de presente. A esclerose lhe presenteava ora com a infância, ora com a adolescência. Com atitudes aparentemente insanas, próprias de uma criança ou de um adolescente, já não se importava e nem mesmo ouvia o comentário das pessoas dizendo:
— O velho caducou mesmo!
Da sua caduquice ele não abriu mão. Viveu feliz para o resto de seus dias usufruindo todos os direitos que cabem a uma criança e a um adolescente na idade senil.

UMA VIAGEM POR DIVERSOS SABORES

Dedico esta história à coragem e ao medo que dela precisa para se transformar


Vou contar para você a estória de um peixe um pouco diferente dos demais. Todos nós sabemos que peixes vivem em água doce ou salgada, no entanto, este vivia num pequeno lago de águas amargas. Num passado remoto o lago que vivia fora lindo e cristalino, porém, a instalação de uma indústria de produtos químicos em seus arredores começou lentamente a poluí-lo, amargando definitivamente as águas do mesmo.Todos os seres que ali viviam foram ficando amargos como as águas do lago. Possuíam muita raiva de viver ali, mas não conseguiam sair daquele local por acreditarem que aquele era o único lugar do mundo capaz de abrigá-los. Mas, como toda regra tem uma exceção, havia ali o tal peixinho que pensava diferente e por pensar diferente ele acreditava em coisas totalmente diferentes de todos os habitantes do lago. O sabor amargo daquele lago nunca agradou o seu paladar e o seu maior desejo era poder sair daquele lugar.
O sonho do peixinho era cantar, sonho este bem incomum para um peixe. Os outros peixes olhavam para ele com pena e descrédito. Alguns teciam comentários numa tentativa de desestimulá-lo:
— Peixes não cantam e se cantassem você jamais seria capaz de cantar. És pequeno demais. Se acomode e faça como todos nós, sacuda seus sonhos no canal ribeirinho para que eles possam ir embora para sempre e não lhe perturbar mais.
Outros diziam:
— Fique caladinho que é melhor! Aprenda a gostar daqui, pois este é o seu lugar. Somos tão miseráveis! Seja caridoso e pense numa forma de aliviar a nossa dor. O canto jamais poderá trazer benefícios e enriquecimento a você e ao nosso mundo.
A única coisa que aquele peixinho não conseguia era ficar calado. Carregava consigo o dom de acreditar mais em seus sonhos do que no conformismo daqueles seres. Falava sempre com muita firmeza naquilo que acreditava:
— Eu não amo este lugar! Eu não me sinto seguro aqui! Quando eu conseguir amar e sentir-me seguro e feliz estarei definitivamente livre da amargura que vocês sentem
Alguns o ironizavam dizendo:
— Até parece que você não é amargo também. Você vive aqui e não há como ser diferente. Esta é a nossa característica.
O peixinho argumentava:
— Vocês estão enganados. Eu vivo nos meus sonhos e não sou amargo. Posso estar amargo, mas estar é diferente de ser. Serei aquilo que sonho! De agora em diante irei à busca da liberdade de vivê-los intensamente. Ao contrário de vocês, meus sonhos não me incomodam, eles me entusiasmam. Eu não tenho medo de ser feliz.
— Se você procura a segurança, saiba que a liberdade não oferece segurança para ninguém. Ela apenas impõe riscos que nenhum ser aqui teve a coragem de assumir. O nosso lago é seguro, pois nos protege dos riscos. Para se libertar do lago amargo terás de passar pelo canal ribeirinho onde todos nós despejamos os nossos sonhos assim que eles começam a nos incomodar. O canal é estreito demais e com certeza você não resistiria. Haja coragem para enfrentá-lo!
— Prefiro a morte a me amarrar a esta falsa segurança que vocês pregam. É preciso arriscar para conquistar a felicidade.
Com muita raiva de tudo, porém determinado, o peixinho partiu sem querer ouvir mais nada. Sentiu que ensurdecer diante do pessimismo era a melhor maneira de seguir em frente. Partiu com sua raiva, fruto de sua amargura, acreditando poder deixá-la ao longo do caminho. Mas partiu também com sua coragem acreditando aumenta-la cada vez mais durante sua trajetória. Aceitando os desafios, embrenhou-se no tão falado estreito canal que realmente o fez sentir-se apertado e comprimido. Teve medo, chorou muito, viveu a dor, menos o conformismo. Quanto mais doído se sentia, mais vontade ele tinha de sair dali. Apesar de sentir-se enfraquecido pela dor, carregava dentro de si a força de seu sonho e um possante otimismo. Esta força lhe impulsionava à frente. Precisava lutar, jamais se render. E foi assim, nadando e lutando incessantemente, confiando apenas em si e em Deus que conseguiu finalmente desaguar-se num belo rio de águas cristalinas. Neste momento foi como se tivesse acontecido uma explosão dentro dele mesmo. Era como se tivesse sendo parido para uma nova vida. Passado o aperto, pôde experimentar um sabor diferente que muito agradou o seu paladar. Sentiu-se grande, bem maior do que o peixinho do lago amargo. Pensou que havia encontrado o seu lugar definitivo, que finalmente deparara com a concretização de seu sonho.
Viveu ali por algum tempo revolucionando as águas daquele rio, ensinando para muitos peixes o que na verdade nunca fizera antes — cantar. Ficava confuso por saber algo que na verdade nunca lhe fora ensinado. Era como se aquela habilidade para cantar fosse inata. Descobriu que qualquer peixe poderia cantar, cantando. Certificou-se que seu sonho não era uma ilusão, mas uma realidade que poderia ser vivida por todos os peixes que partilhassem deste mesmo sonho e que tivesse antes de tudo muita confiança em si mesmo.
E assim ele foi descendo rio abaixo ensinando aos peixes que se pode morrer pela boca, mas se pode também viver plenamente através dela. Teve que ser muito esperto para não ser fisgado por anzóis ou preso a redes e outras armadilhas. Viver experiências novas e desafiadoras lhe fazia sentir-se mais forte e seguro.
O tempo foi passando e à medida que nadava rio abaixo foi percebendo que num determinado lugar e momento as águas do rio foram ficando turvas e poluídas. O cenário foi mudando gradativamente, já não tinha diante de si um caminho cristalino, tudo parecia opaco. Ficou confuso com esta mudança repentina, pois pensara já ter conquistado uma condição segura, confortável e garantida de vida. Não sabia mais se esta nova característica do rio estava presente apenas naquele lugar ou se havia acontecido uma transformação repentina semelhante ao acontecido no antigo lago que vivera. Foi crescendo o desejo de se libertar daquele novo e incômodo acontecimento. Olhava para frente, olhava para trás e empacado não conseguia definir qual o melhor caminho. Apesar de não saber ainda o que fazer, sabia apenas que aquele já não era mais um lugar agradável para se viver. Como todos os peixes gostavam muito de seus ensinamentos e do seu jeito de ser diziam:
— Fique com a gente, você nos ensina tanto! Precisamos de você para ficarmos do tamanho de nossos sonhos. Olhe como as águas a sua frente estão turvas. Você não sabe o que vai encontrar. É mais seguro ficar aqui. Se nadar de volta contra a correnteza poderá encontrar o rio límpido outra vez.
Algumas vezes, receoso com aquela significativa alteração das águas, resistiu seguir em frente e nadou contra a correnteza numa tentativa de encontrar as águas límpidas anteriormente vividas. No entanto, foi ficando muito cansado, cada vez mais cansado e sem esperanças de encontrar as águas cristalinas que buscava trilhando aquela direção. Não sabia porque, mas parecia que todo rio tinha se transformado num rio de águas poluídas. Teve medo de ficar amargo novamente, pois o seu cansaço ora se transformava em raiva. Teve saudade da paz dos tempos cristalinos que limpara toda a amargura que carregara no seu íntimo.Entretanto, foi percebendo que não dava para voltar. Tinha conquistado a sabedoria de que seguir em frente era sempre o melhor caminho. Num ímpeto de coragem decidiu arriscar mais uma vez. Chegara à conclusão de que ali não era mais o seu lugar. Gritou finalmente para si mesmo e para todos seus companheiros:
— Eu não quero ficar parado aqui e nem mesmo voltar atrás. A ida é sempre mais interessante do que a volta, pois guarda com ela o mistério de tudo que se pode encontrar. A ida em busca dos meus sonhos me aguarda e me entusiasma. Este já foi o meu lugar, no entanto, já não é mais. Vocês não precisam de mim para ficarem do tamanho de seus sonhos, vocês precisam apenas da coragem de vivê-los.
Lançou-se nas águas turvas deixando que a correnteza lhe levasse por algum tempo. Deixando-se levar sentiu-se mais leve e tranqüilo mesmo sem enxergar com clareza o que estava à sua frente. Sentiu-se sozinho e com freqüência se assustava ao confrontar-se com obstáculos que só eram percebidos ao se chegar bem próximo deles. Mesmo um pouco inseguro continuava convicto de que não dava para voltar atrás. Entregou-se à correnteza da vida sem, no entanto render-se a ela.
O tempo passou como sempre e finalmente chegou o dia de novas e inesperadas mudanças. Repentinamente começou a sentir um sabor estranho diferente de todos já experimentados; não era amargo e não era doce, era salgado. Sem conseguir definir os limites de um ou de outro foi lançado num mundo novo e cristalino onde parecia estar usando lentes azuis de aumento. Imerso numa imensidão azul que lhe proporcionou uma sensação de leveza e relaxamento foi possuído por um agradável e misterioso encantamento.Tudo era grande, até mesmo os obstáculos. Mas, as possibilidades eram enormes também. Montanhas e seres enormes habitavam aquele local. Sua morada ali poderia e deveria ser bem maior, pois já não era mais um peixinho pequeno e amargo. Transformou-se num ser abissal e confuso ficava a pensar consigo:
— Será que não conseguia enxergar-me por ter vivido em ambientes turvos ou será que os grandes espaços é que são capazes de nos transformar em grandes seres?
Sem obter respostas para as suas indagações continuava nadando. Tudo era novidade. Vendo diante de si inúmeras conchas, aproximou-se da maior delas perguntando:
— Quem são vocês?
— Somos ouvidos. Respondeu a concha com uma voz que parecia mais um eco.
— Para que servem os ouvidos?
— Para ouvir o canto dos golfinhos, das baleias e de todos os seres que sabem cantar e nos alegrar.
Com um sorriso imenso nos lábios e certo de que a canção naquele mundo era bem vinda, o pequeno e grande peixinho pôs-se a cantar uma canção que expressava uma grande indagação:

SOU GRANDE
POR QUE?
ESPAÇO
PRA QUE?
DIGAM-ME POR QUE
ENSINEM-ME PRA QUE
E ASSIM...
SEREI

Quando terminou de cantar a grande concha lhe disse:
— Linda música! Acho que o mar adorou e acabou lhe dando rapidamente uma resposta para a mesma.
— Qual? Perguntou o peixinho
— Você não ouviu? Perguntou a concha surpresa.
— Não, talvez ele tenha falado muito baixo.
— Ou talvez você não tenha ainda aprendido a escutar o mar. Continuou a concha.
— Pode ser, afinal sou muito novo por aqui. Tenho muito que aprender. Mas estou curioso, o que o mar respondeu?
— Ele disse que você é grande porque cresceu e cresceu porque foi corajoso o suficiente para abrigar a felicidade e a prosperidade que moram agora dentro do seu ser. Basta exerce-las, elas só habitam e são habitadas pelos grandes.
E assim termina a estória de um peixinho que experimentou sabores bem diferentes de vida, todos eles importantes para apurar o seu paladar. Ao decidir correr o risco de ser ele mesmo, deixou de lado o rejeitado sabor amargo que passou a ser também um registro presente, porém, apenas como lembrança de tudo que não se deveria ser. Hoje, quando olho para aquários, lagos, represas, rios e mares, fico a pensar onde mora o peixinho que habita o nosso coração.

DONA SEPARAÇÃO

    Dedico esta história aos finais e recomeços


        O grande desejo que prevalece entre duas pessoas que se amam é estarem sempre juntas. Imaginam tudo que podem fazer juntinhas uma da outra, só não imaginam o que podem fazer distanciadas. Quando se unem imaginam que poderão ser “felizes para sempre”, pois desde criança escutaram isto nos finais dos contos de fada. Na verdade parece que o final de um conto de fada é sempre o começo. Do final de um conto ninguém nunca falou, pois o final é um lugar desconhecido. Tem uma dona atrevida que não habita os contos de fada. Ela é real demais para estar lá. O nome dela é Dona Separação.
      Dona Separação não tem casa própria, vive fazendo visitas. Cada dia ela escolhe um lugar novo para habitar. Chega batendo na porta, entra sem pedir licença e sempre impõe que um saia para que ela possa entrar. É uma visita inesperada e inoportuna. Ninguém gosta dela, mas ela ama todos e nunca se esquece de ninguém. Parece espaçosa, pois não respeita o espaço do outro. Se o espaço que ela decidir ocupar for o seu, você tem que sair mesmo. A gente nunca sabe ao certo para onde vai a pessoa que ela escolhe, mas sabemos muito bem como ficamos sem esta pessoa.
Vou lhes contar como fiquei no dia que Dona Separação bateu na minha porta. Fiquei perdida e atordoada sem saber ao que me agarrar. Sempre me agarrei naquilo que ela me roubou. Furtada de minha segurança, me vi repentinamente sem apoio e pronta para desabar. Dei uma bronca em Dona Separação, mas ela nem parecia se comover com meu sofrimento. Em momento algum ela pensou em amenizar a minha dor trazendo de volta o que havia me roubado. O vazio que ficou dentro do meu ser provocou um eco que acabou me ensinando algumas coisas. Muito brava e revoltada tentei travar com a mesma um diálogo que na verdade se tornou um monólogo:
— Você é terrível, serve apenas para arruinar o que com tanto esforço construí. Falei.
— Você é terrível, serve apenas para arruinar o que com tanto esforço construí. Repetiu o eco.
— Não estou lhe pedindo para repetir o que falo ou faço. Retruquei.
— Não estou lhe pedindo para repetir o que falo ou faço. Repetiu novamente aquele misterioso eco.
— Pare com isso! Gritei irritada.
— Pare com isso! Repetiu.
— Você deveria ocupar seu tempo com uniões. Solicitei.
— Você deveria ocupar seu tempo com uniões. Repetiu aquele eco.
— Por que não faz isto? Perguntei.
— Por que não faz isto? Repetiu.
— Você não sabe ouvir, sabe apenas repetir. Censurei.
— Você não sabe ouvir, sabe apenas repetir. Repetiu aquele som enigmático.
— Você não pode se sentir dona da vida impondo apenas o que tem vontade. Falei.
— Você não pode se sentir dona da vida impondo apenas o que tem vontade. Repetiu.
— O que você pretende? Perguntei.
— O que você pretende? Repetiu aquele fenômeno acústico que parecia insistir no desejo de me ensinar alguma coisa.
Neste momento parei por um instante e ouvi a pergunta que o eco me fizera a partir de minha própria indagação. Percebi o quanto precisava me ouvir ao invés de buscar respostas e o quanto precisava dizer a mim cada pergunta ou solicitação que fizera à Dona Separação. Foi aí que travei um diálogo comigo.
— O que pretendo?
— Será que pretendo ser a dona da vida impondo a ela apenas o que tenho vontade?
— Será que não estou sendo terrível comigo mesma construindo revolta e tristeza depois de ter me esforçado tanto para construir a paz e a felicidade que eu já julgava ter conquistado?
— Será que ao invés de perder meu tempo lamentando o que perdi, eu não deveria ocupá-lo com as conquistas que me aguardam?
— Será que preciso me unificar novamente juntando meus cacos para lentamente me sentir uma pessoa inteira?
— Por que não faço isto?
— Não posso continuar repetindo este comportamento de falar e fazer apenas o que é destrutivo.
— Pare com isso!
Parei com tudo isso, não sei bem como, só sei que parei. Parei quando rompi meu relacionamento com Dona Separação e me uni à Dona Vida que tudo oferece na medida certa e no momento certo. Descobri que Dona Separação nos tira apenas o que não é nosso. Aquilo que é nosso se eterniza dentro da gente. O amor, a paz, a felicidade e a sabedoria continuaram vivos dentro de mim. Da muda Dona Separação nunca obtive respostas, mas estou sempre ouvindo Dona Vida me dizer uma única palavra:
"VIVA!"

A ÁRVORE E O BEIJA-FLOR

Dedico esta história a todo e qualquer crescimento


No alpendre de uma fazenda vivia uma bela árvore que apesar de exuberante andava se sentindo triste e insatisfeita. Sempre carregada de flores, atraía diariamente a presença de um gracioso beija-flor que acabou por se tornar o seu melhor amigo. Nos últimos tempos estava exalando tanta tristeza que seus galhos e folhas perderam o viço assumindo uma expressão deprimida que passou a preocupar o dócil beija-flor. Perplexo com a mudança repentina de sua melhor companheira, resolveu interrogá-la para descobrir o motivo de tamanha melancolia:
— O que está acontecendo com você, amiga? Você que era tão alegre e viçosa vem assumindo nos últimos tempos uma notável tristeza e desânimo.
— De fato estou triste. Tenho tido dificuldades de reconhecer-me. Confirmou a árvore.
— Qual o motivo de sua tristeza? Perguntou novamente o beija-flor com clara intenção de ajudá-la.
— Preciso mostrar a minha verdadeira face e não consigo. Ando desanimada. Preciso crescer mais e mais, tornar-me frondosa como tantas árvores que vejo diante de mim.
— Não queira ser como as outras árvores. Cada um é o que é. Você será mais feliz se contentar com seu tamanho. Aconselhou o amigo beija-flor tentando consolá-la.
— Talvez eu tenha me expressado mal. Na verdade eu não quero ser como as outras árvores, eu quero ser eu mesma como você mesmo disse. E... Antes que pudesse prosseguir com suas explicações foi interrompida pelo beija-flor que a indagou surpreso:
— Então qual o problema! Se você busca ser o que é realmente não deveria estar triste. Deveria estar alegre de ser como é. Aliás, perfeita para mim.
— Perfeita para você, mas imperfeita demais para mim. Meu grande problema é que de uns tempos para cá passei a ser o que não sou.
O beija-flor adotou uma expressão de reprovação perguntando novamente:
Como assim? Não estou entendendo mais nada! Dá para explicar melhor?
— Me vejo pequena e sinto que posso ser muito maior do que estou sendo. Sinto que posso ser uma grande árvore, frondosa, capaz de abrigar não só você nos meus galhos, mas todos os pássaros que desejarem o meu acolhimento.
— Eu estou muito feliz com você deste tamanho. Afirmou o beija-flor.
— O fato de estar bom para você não significa que está também para mim. Eu quero ser muito mais, inclusive muito mais do que aquilo que parece ser bom para você. Pronunciou a árvore.
Incomodado com o pronunciamento de sua amiga, o gracioso beija-flor a censurou com aspereza:
— Você está sendo muito ambiciosa e invejosa!
— E você não está me entendendo. Eu não ambiciono e nem invejo o jeito de ser das outras árvores. Pelo contrário, eu até as admiro. Eu apenas quero ser melhor do que fui ontem. Quero ser melhor do que eu mesma e não melhor do que as outras árvores. Procuro sempre me comparar comigo mesma e tenho percebido que já faz algum tempo que não mudo. Caí na mesmice e isto tem me cansado. Mudar é o meu grande desafio. Mudar para melhor! Exclamou com mais entusiasmo a árvore tristonha.
— Então você já conseguiu realizar o seu desafio. Lembro-me de você ainda brotinho. Hoje, além de ter crescido, você se transformou também em meu descanso predileto. Seus galhos, mesmo pequenos, me acolhem e suas flores me sustentam. Acalentou o beija-flor tentando conformá-la.
— Ser tudo que fui e tudo que consegui ser até agora me deixa realmente feliz. Confirmou a árvore.
— Então se agarre nesta felicidade e se desapegue desta tristeza. Recomendou o amigo.
— Mas, se eu me desapegar desta tristeza que sinto agora eu estaria me desapegando de mim mesma.
— Você vai me enlouquecer! Não estou entendendo mais nada! Que benefício você pode ver na tristeza? Perguntou cheio de perplexidade o amigo beija-flor.
— A tristeza me trouxe um importante aviso de alerta. Se eu não ouvi-la agora, corro o risco de me transformar daqui para frente numa boba alegre. Advertiu a árvore com sensatez.
— Boba alegre?
— Sim. Boba alegre finge alegria. Eu não quero fingi-la; quero vivê-la plenamente. Se a alegria que sempre me habitou com toda a sua algazarra deixou a tristeza falar, é porque o recado que ela traz, com certeza, é importante.
— Qual o recado que a tristeza lhe traz? Perguntou o beija-flor.
— A tristeza me diz que eu posso ser mais do que estou sendo. Diz-me também que ando parada, estagnada. Ela tenta me mostrar, com esta dura verdade, a alegria que me aguarda mais à frente caso eu não me acomode. Sendo assim, eu preciso me expandir. Afirmou a árvore.
— E como você vai fazer isto?
— Eu não sei. Tenho me esforçado para conquistar esta expansão, mas não tenho conseguido o que realmente desejo. Não consigo entender o que me falta.
— Talvez não lhe falte nada. Talvez você ande querendo ter mais do que pode ter realmente. Finalizou o beija-flor voando em direção a árvore mais próxima que parecia não ter tantos conflitos existenciais.
A árvore permaneceu ali, sozinha e irritada com seu melhor amigo, que parecia não compreender seus anseios. Sabia que dificilmente qualquer ser compreenderia o que se passava no seu interior. Além de seu desejo de crescer, manifestava dentro de si um desejo pouco comum para uma árvore. Tinha também desejos de sair daquele lugar que vivia, mesmo consciente de que uma árvore não poderia sair andando por aí. Era como se estivesse plantada num lugar que não era o seu. Era como se suas raízes estivessem fincadas em um falso chão. Precisava encontrar o seu solo, mas a própria vida a havia colocado ali. Possuía uma energia que a movia para o crescimento, no entanto, não conseguia observar nenhum movimento de expansão acontecendo consigo já há algum tempo. Passou uma boa temporada vivendo este conflito e lamentando chorosa a sua condição de ser. Do choro somou-se a revolta consigo mesma, bombardeando-se com ataques depreciativos. Chegou a pensar que talvez fosse pequena de fato e que tudo que sentia e almejava não passasse de uma bela fantasia. Quando, sem perspectivas, começou finalmente a se preparar para aceitar uma condição que inicialmente julgava não ser a sua, passou por aquela região um violento tornado que tornou tudo muito diferente.
A fúria da natureza parecia querer mudar tudo de lugar. Assistiu um drama que tornou-se seu também. Em meio ao arrastão meteorológico, viu-se também sendo levada sem destino para algum lugar que não sabia onde. Consciente de que havia sido deslocada de seu local de origem, não entendia o fato de sentir suas raízes ainda presas ao chão. Era como se tivesse carregado seu solo consigo. Sem resistência para enfrentar a força avassaladora, permitiu-se ser conduzida acreditando nos desígnios da natureza. Cessado o furor de uma natureza que desconhecia, chocou-se repentinamente na encosta de um grande rio. O choque produziu um barulho estranho de algo rachando em torno de si. Crac!!!!!!!!!! Lembrou-se de uma história contada pelo seu grande amigo beija-flor ao retratar a mágica de seu nascimento:
— “Quando aquele ovo que me continha se rachou, eu pude me alongar e me sentir livre”.
Podia ouvi-lo apesar da sua ausência. Aquele choque sobre a encosta lhe provocava a mesma sensação que o seu amigo sentira no momento do nascimento. Era como se estivesse saindo de um ovo. A terra que outrora apertava suas raízes pareceu relaxar.
Suas raízes iniciaram um movimento de alongamento buscando, concomitantemente, fixar-se em um mundo novo aparentemente sem limites. Podia agora adentrar-se num universo completamente diferente de tudo que vivera. Desgalhada e desfolhada foi cumprimentada pelo belo rio que corria majestosamente à sua frente:
— Seja bem vinda à sua nova morada!
— Obrigada! Acho que estou meio tonta. Não consegui ainda entender o que se passou comigo. Agradeceu estressada.
— Ao invés de entender, procure sentir as diferenças. Aconselhou o rio com sabedoria.
Apesar de todo o estresse, sentia-se mais relaxada como se tivesse libertado de algo que aprisionara. Limitou-se a seguir os conselhos do rio sentindo cada diferença que a sua nova morada lhe proporcionava. Uma sensação de bonança apoderou-se de si. A cada dia suas raízes se fixavam cada vez mais naquele novo chão. Novas estações vieram e com elas novos galhos, ramos, folhas e flores foram brotando de seu corpo que pareceu ter passado por um processo de renascimento.
A tristeza e a insatisfação se dissiparam com a força do tornado que a tornou, dia após dia, cada vez mais forte, frondosa e alegre. Transformou-se, finalmente, naquilo que sempre julgou ser. Grandiosa, acolhia em seus galhos pássaros de inúmeras espécies. Estava feliz, pois não se sentia mais como no passado, limitada a algo inexplicável que a impedia de crescer. No entanto, a saudade de seu amigo beija-flor lhe impedia sentir-se totalmente realizada. O terrível tornado que acabou se tornando uma bênção em sua vida lhe separou da melhor companhia que possuía. Sentia falta de suas histórias e até mesmo da dificuldade que seu estimado amigo possuía para compreendê-la. Nenhum pássaro seria capaz de substituí-lo. Vivendo este sentimento, compreendeu o quanto é insubstituível cada ser que nos cativa.
Entorpecida pela nostalgia dos velhos tempos foi despertada pela chegada estranha de um velho beija-flor que, já cansado, soava um canto triste que tocou profundamente o seu coração. Ofereceu ao mesmo as boas vindas e o farto alimento que poderia extrair de suas flores que magicamente tornava a vida mais doce:
— Seja bem vindo a esta nova morada e fique nela quanto tempo desejar.
— Quanta hospitalidade! Exclamou o beija flor.
— A minha hospitalidade é fruto da grandeza que me foi concedida. Completou a árvore hospitaleira.
— Você me faz lembrar de uma grande amiga do passado que ainda se faz presente dentro de mim. Falou cheio de saudade aquele velho e cansado beija-flor.
— Ela era assim, grande como eu? Perguntou a árvore cheia de curiosidade.
— Ela tinha uma alma grandiosa, mas não conseguia crescer. Sofria com isto, pois não conseguia entender a paradoxal condição de seu ser - "Ser pequena sentindo-se tão grande". Eu era um dos poucos pássaros que buscava refúgio em seus galhos.
— Onde ela vive? Perguntou a árvore.
— Não sei se ela vive, só sei que viveu por um bom tempo dentro de um lindo vaso de cerâmica enfeitando a minha vida e o alpendre de uma suntuosa fazenda. Respondeu o beija-flor com pesar.
— Mas o que aconteceu com ela? Ela não vive mais lá?
Com os olhos lacrimejando, o velho beija-flor contou o suposto trágico fim de sua melhor amiga:
— Algum tempo atrás, um grande tornado passou por lá e levou a minha querida companheira. Ela levantou vôo como se fosse um pássaro. A mercê de um vaso de cerâmica, incapaz de se sustentar com a força do vento, foi levada para algum lugar que não se sabe onde. Se tivesse suas raízes presas ao chão, com certeza teria se salvado, pois era forte demais.
Naquele exato momento, uma emoção grandiosa tomou conta daquela árvore. Finalmente, além de poder compreender a razão de seu nanismo no passado, mediante as informações repassadas pelo novo inquilino, pôde também ter certeza de que aquele velho beija-flor era o seu jovem companheiro. Tomada de emoção, indagou o seu discurso fatídico:
— Como pode ter certeza de que ela não se salvou?
— A ausência dela me diz isto. Respondeu o velho amigo.
— Às vezes, a ausência nos provoca um vazio tão grande que a gente se perde dentro dele e não consegue perceber a presença daquilo que nos é mais valioso. Advertiu a árvore.
— Pode ser, mas o meu sonho é poder voltar naquela fazenda e encontrar, naquele alpendre, a minha querida amiga. Ah, se essa mágica acontecesse! Eu ficaria muito feliz! Exclamou o beija-flor fantasiando um reencontro.
— Esta mágica traria, ilusoriamente, a sua felicidade e, realisticamente, a ruína de sua amiga. Censurou a árvore com firmeza.
— Como assim? Perguntou o beija-flor surpreso com a intervenção daquela árvore que falava com segurança de uma vida que mal conhecia.
— Agora eu entendo porque sua amiga não crescia e entendo ainda mais o sofrimento dela. Assegurou-lhe a árvore.
— Como você pode entender se nem mesmo ela entendia? Retrucou o amigo.
— Ela sabia que vivia contida, mas não sabia que vivia dentro de um vaso. Replicou a árvore tentando explicar a sua passada condição.
— Como ela poderia não perceber o vaso que vivia?
— O vaso era seu mundo. Não tinha consciência de que existia um vasto mundo lá fora. Tinha consciência apenas do grandioso universo que existia dentro de si e da dificuldade de expandir-se conforme o potencial que possuía. Jamais conseguiria se tornar uma árvore como sou hoje restrita a um vaso que lhe demarcava um território tão limitado. Conjeturou a sábia árvore.
— Na verdade aquele vaso não era tão pequeno assim. Era apropriado para o seu tamanho. Uma árvore pequena não precisa de um grande vaso.
Percebeu que o amigo beija-flor continuava o mesmo. Parecia não conseguir enxergar o que para ela era óbvio. Irritada com a sua ignorância, repreendeu rispidamente:
— Como pode dizer que ela era pequena? Será que não consegue perceber que o vaso lhe impedia crescer conforme o seu verdadeiro potencial? Ela se libertou daquele vaso e acho que você precisa se libertar do seu.
— Eu não estou plantado em vaso algum. Sou um pássaro, sou livre e posso voar.
— Você é um pássaro que semeou a sua forma de pensar num vaso bem pequeno. Talvez um tornado possa um dia chegar, agitar sua cabeça e quebrar este vaso que limita a possibilidade de você enxergar.
— Eu não tenho problemas de visão. Eu enxergo muito bem. Certificou-se o pássaro.
— Então me diga, como você me vê? Quem acha que sou? Perguntou, ansiosamente, a árvore amiga.
— Na verdade eu te vejo como o sonho de minha velha amiga. Por eu estar muito preso a ela, talvez eu tenha mesmo um pouco de dificuldade para lhe perceber tal como você é. Mas, no fundo te acho bem convencida ao tentar explicar fatos que não lhe pertencem.
Impaciente, a bela árvore lhe ofereceu uma apresentação formal e se preparou para um grande abraço:
— Meu velho amigo, como pode dizer que esta história não me pertence. Eu a construí à custa de muito sofrimento. Olhe para o chão e verá ainda próximo às minhas raízes os fósseis da minha prisão.
O beija-flor dirigiu seu olhar para o chão e verificou que, ainda próximo à raiz daquela árvore, repousava pedaços de cerâmica idênticos à cerâmica do conhecido vaso que habitou por tanto tempo sua querida amiga. Emocionado e envergonhado soluçou algumas palavras tentando um reconhecimento:
— Eu não posso acreditar que você é você!
— Você nunca acreditou em quem eu era realmente. Só acreditava naquilo que podia ver. Não acreditava na minha essência, nos meus sonhos e nos meus sentimentos. Relembrou a árvore.
Decepcionado consigo mesmo, o beija-flor clamou ao divino:
— Oh, Deus! Qual o tamanho do vaso que me limita? Eu que pensava ser livre... O tornado passou e não rompeu o meu vaso. Talvez a realização do meu maior sonho possa romper a cerâmica da óbvia certeza que me habitou até este exato momento mantendo rígidos os meus pensamentos.
A árvore repleta de afeto e sabedoria aproveitou-se de uma brisa para abraçá-lo com seus galhos e felizes viveram o reencontro de tudo aquilo que pareceu um dia ter ficado perdido. Para que nunca mais se esquecessem da lição do tornado, o presságio de uma tempestade passou a ser sempre marcado pelo importante aviso do vento:
— Nunca se esqueçam de avaliar o tamanho do vaso ou do espaço onde foi semeado seus pensamentos, suas emoções, seus sonhos, enfim sua vida. Há um espaço infinito para tudo e para todos, mas nem sempre reconhecido e vivido