O CAMINHO
Dizem
que Deus traça um caminho para cada criatura viva neste universo. Sabe-se lá porque ele faz isto; talvez seja
uma das suas brincadeiras favoritas. Faz parte do jogo divino torcer para que
cada criatura siga o caminho designado para a sua alma. Dizem que no final do jogo há sempre uma boa
recompensa para quem consegue percorrer
o caminho seguindo corretamente o traçado divino. Tem uma história que ilustra bem tudo isto.
Pois bem, vou conta-la para vocês.
Dizem
que Deus fez as tartarugas bem lentas para que elas pudessem apreciar bem cada
centímetro do caminho que ele designou para elas. Ao criar as tartarugas, Deus
gostou tanto delas, que resolveu além da lentidão dar muitos anos de vida a
elas também. Andando devagar e por muitos anos, elas teriam, sem dúvida, muita
coisa boa para ver, apreciar e sentir.
Leca
e Zuca eram duas tartaruguinhas criadas por Deus à sua
imagem e semelhança. Epa! Deve ter um equívoco aí, pois não foi o homem
a criatura criada à imagem e semelhança do mesmo? Também. Para entender, basta
tomar consciência de que ninguém cria nada que não seja uma expressão de si
mesmo. Assim, cada criatura neste
universo infinito é uma expressão de Deus; a sua constante onipresença registrando uma imagem que apesar de una se
multiplica. É mais ao menos parecido com a visão que tenho de mim. Quando me
olho no espelho, não vejo uma cara só. Quantas vezes fico surpresa com as caras
que vejo; todas elas tão diferentes e minhas. Muitas caras e ao mesmo tempo uma
só. Com Deus também não é diferente. Ele
registra suas caras em tudo que cria; por isso, tudo é imagem e semelhança dele, inclusive as
tartaruguinhas desta história.
Deus
é tempo, é espaço, enfim, Deus é tudo. Ele experimenta a vida através dos seres
que cria e cada ser experimenta a vida através dele. E nesta troca recíproca, a vida se
expressa. Foi assim que a vida de Leca e
Zuca se expressou. O jogo divino deu às duas um trajeto muito importante a
percorrer ao longo da vida. Teriam que chegar ao cume da montanha mais alta dos
arredores de sua terra natal. Ao chegar
ao cume da montanha, receberiam a sua recompensa.
Dada
a partida, cada uma iniciou seu trajeto com seu estilo próprio. Todas as duas com o mesmo projeto de vida
traçado por Deus, mas com perfis muito diferentes. Dizem que um mesmo caminho
pode se tornar muito diferente frente à percepção de seres com visões díspares
.
Zuca
era uma tartaruga ansiosa e ambiciosa; queria chegar rápido ao seu destino
final. Não suportava a sua natureza lenta e tratava de criar estratégias para
acelerar seus passos. Chegando primeiro
ao cume da montanha, seria a primeira a receber a recompensa tão desejada. Para
ela, os primeiros são sempre os vencedores no jogo da vida criado pela sua
mente ansiosa. Leca, por outro lado, adorava ser uma tartaruga; apreciava bem a
sua natureza e se respeitava muito principalmente por ser dotada de grande amor
por si mesma. Dizem que quando a gente se ama de verdade, a gente se respeita
muito também; não fazemos nada que
prejudique o nosso corpo e a nossa alma. Pois bem; as duas partiram, cada qual a seu
jeito, com as habilidades e recursos próprios. Com a inteligência artesã que
tinha, Zuca preparou quatro rodinhas com algumas pedras roladas que garimpou ao
longo caminho. Pegou uma tala de madeira e fixou as rodinhas sobre as mesmas
formando um belo skate que lhe daria
mais velocidade para correr pelos
caminhos da vida e chegar mais rápido ao
seu trajeto final. Leca, ao contrário de
Zuca, andava com seus próprios pés e passos de tartaruga. Sem pressa alguma,
apreciava cada paisagem que se descortinava a
ao longo de seu percurso. Parecia não estar nem um pouco preocupada em
chegar à frente de ninguém. Para Leca, chegar à reta final não era o mais
importante, pois se sentia chegando a todo momento a algum lugar. Assim, cada
lugar novo era uma chegada carregada de novidades a serem vividas e
saboreadas. Além de apreciar,
experimenta cada contexto, cada paisagem. Dizem que todo contexto tem um sabor
diferente. Deus fez tudo com um sabor inédito.
Dizem que a culinária divina é isto; os sabores que Deus coloca em cada
experiência de vida. Leca adorava cada sabor e alguns eram tão agradáveis que
ela relutava seguir; ficava mais tempo ali, se empanturrando daquela
experiência. Sabia, entretanto, que não dá para parar por definitivo em lugar algum, por mais agradável que seja a
experiência vivenciada ali. As paradas são necessárias, porém transitórias; é
preciso seguir em frente. Quem fica definitivamente, fica esquecido de tudo que
pode vir a ser. Dizem que a gente não se esquece apenas daquilo que a gente fez
ou foi um dia; dizem que é possível se esquecer também daquilo que a gente
faz, é ou pode vir a fazer e ser um dia;
e este esquecimento é muito perigoso. O esquecimento habita todos os tempos. Há coisas que valem à pena serem esquecidas;
coisas que não acrescentam; que só nos consomem; que consomem, sobretudo, a
nossa energia para seguir em frente.
Zuca,
não tinha tempo para refletir sobre estas filosofias de Leca. Filosofia é coisa
de gente que tem tempo para pensar; Zuca não tinha. Zuca só tinha tempo para
agir. Agia sem pensar, pois tinha que chegar. Dizem que estas ações são também
muito perigosas. Dizem, inclusive, que só se deve agir sem pensar quando a
gente já sabe. A sabedoria não precisa de muito pensamento, precisa só de alma.
Zuca prendeu a alma dela na masmorra de sua mente; uma mente que mentia o tempo
todo para ela. Mas, dizem que tem gente que gosta das mentiras que a mente cria
por não suportar a verdade de ser ela mesma. E, como já mencionei antes, Zuca
não gostava muito de ser uma tartaruga; preferia ter nascido um falcão – o
animal mais rápido do mundo. As paisagens passavam por ela rapidamente. Engolia
as experiências sem sentir o sabor delas, assim como a gente faz quando come
apresado só para encher a barriga; só porque precisa comer para se manter vivo.
Zuca procurava, sobretudo, procurar o
caminho mais curto. Criava estratégias mirabolantes para cortar caminhos,
principalmente aqueles que pareciam mais difíceis de trilhar, trechos mais
íngremes, tortuosos ou repletos de pedregulhos. Leca, ao contrário, aceitava cada desafio. Se sentia cansada
frente os trechos mais difíceis de serem trilhados, mas não desistia de seu
caminho, queria percorre-lo integralmente.
Aprendeu com isto, que só se conhece bem o sabor do prazer quem teve a
coragem e a resiliência suficiente para provar o sabor das dificuldades também.
Conhecia a lei da interdependência; a
direita só existe em relação à esquerda,
o alto em relação ao baixo e por aí vai.
Assim, sabia que o prazer só
existe em relação ao desprazer e se disponibilizou a conhecer bem o sabor dos dois. Zuca, por
outro lado, engolia sem sentir o sabor
de nada. Precisava, apenas, manter a barriga cheia para ter energia para chegar
ao final da trajetória. E, foi nesta correria que Zuca chegou anos à frente de
Leca no alto da montanha. Inicialmente, sentiu-se vitoriosa. No momento de
receber o troféu pela sua conquista, deparou-se com um silêncio atormentador e
não com os aplausos que esperava. Cadê o público? Ficou ao longo do caminho. Na
reta final só tinha lugar para ela. E, o pior é que não tinha mais para onde ir – fim de linha. Não tinha também como voltar. Quando se chega
na reta final, não nos é mais dado a oportunidade de voltar. Podemos fazer como
Leca - ficar um tempo maior numa certa
experiência de vida - mas nunca podemos voltar atrás. Só nos é permitido seguir
em frente. E agora, para onde Zuca iria?
Precisava ficar e ainda tinha
muitos e muitos anos de vida pela frente. Não tinha lembranças para passar o
tempo. Tempo era o que não lhe faltava agora. Como relembrar das coisas boas se
não teve ao longo do caminho tempo para construir lembranças? Dizem que Deus
nos deu a lembrança de presente como única alternativa para voltarmos naquilo
que foi bom. Mas, como Zuca engolia as experiências sem sentir o sabor, acabou
corrompendo o seu paladar. As lembranças só são fixadas na nossa mente se o
sabor delas tiver sido marcante e significativo. Para quem perdeu o paladar,
não há sabor significativo. E agora, o que fazer com esta falta de
lembrança? A falta de lembrança causa
uma doença que nos protege da dor de não poder ser mais. Zuca se transformou
numa tartaruga caduca.
Leca,
continuou caminhando, caminhando e experimentando profundamente o sabor de cada
experiência, apurando seu paladar até
chegar finalmente no alto da
montanha. Lá do alto pôde avistar todo o trajeto percorrido e muitas lembranças
boas vieram acalentar a sua alma antes
que pudesse partir para uma outra experiência nova. Leca se transformou, ao
longo destes anos todos, numa tartaruga
muito sábia. Dizem que a sabedoria é o nosso troféu e ela só pode ser
conquistada quando a gente se prontifica não só a conhecer, mas também a
degustar o sabor de cada experiência
vivida. A palavra sabedoria vem de saber
ou de sabor? Vem do latim Sapere – saber , sentir o gosto de... Só sabe quem saboreia. Leca compreendeu que a
maior conquista não está no final da caminhada , mas ao longo de todo o
percurso da vida. Tomada por esta compreensão, pode finalmente, juntamente com
Zuca caduca partir para um outro jogo divino que ninguém sabe bem as regras,
mas que todo mundo tenta inventar. Eu diria que elas foram viver aquilo que não
viveram ainda. Para Leca, um novo lugar; para Zuca o mesmo novamente. Que possa ser não só novamente,
mas com uma nova mente.