Dedico esta história à imperfeição e ao nosso inquietante desejo de transcende-la
Vou lhes
contar a história de dois mundos bem diferentes um do outro. O primeiro era o
mundo de Xambu, um nobre guerreiro. Para Xambu , o seu mundo era perfeito e
instigante.
O segundo
era o mundo de Gumã, um cientista que se dedicava à pesquisa dos nobres
sentimentos . Para Gumã, o seu mundo era imperfeito e insuportável.
O mundo de
Xambu vivia em guerra e no mundo de Gumã reinava a paz e o amor. Xambu tinha
tudo que um guerreiro precisa para viver sua energia
bélica. As desigualdades, a miséria, as injustiças e a crueldade faziam do
mundo de Xambu o lugar perfeito para ele exercitar a sua missão de vida e sentir-se útil e valorizado por
aqueles pelos quais lutava. Xambu nunca questionava a ordem de seu mundo. Sabia, apenas, que
deveria lutar contra a desordem. Mesmo sem ter consciência, apreciava a
desordem que ordenava, de certa forma, a sua razão de viver.
Certo dia, Xambu foi convidado a
conhecer o mundo de Gumã. Passaria lá uma boa temporada para que pudesse
aprender algo novo e inusitado, capacitando-o a levar para o seu mundo as
lições de paz, justiça e igualdade de direitos que ali reinavam. Xambu achou
uma grande chatice aquele mundo tão organizado e sem problemas, sentia-se
ocioso e pouco valorizado, pois não tinha com quem e por quem guerrear.
Aproximando-se de Gumã, questionou-o de maneira tosca:
−Seu mundo é
muito chato!
−Concordo
plenamente – confirmou Gumã.
−Como é que você
consegue viver aqui? Não há o que fazer. Tudo que deve ser feito parece já
estar concluído.
−Estou em
busca de um sentimento que seja o mais elevado de todos. É necessário
ultrapassar a paz e o amor a fim de se conquistar um sentimento ainda mais
sublime e perfeito.
−Paz,
amor... Esta busca te alimenta? Perguntou Xambu confuso sem entender muito bem
o que Gumã realmente pretendia. A busca daquele cientista lhe parecia vaga e
sem sentido.
−Só me
sinto, a cada dia, mais frustrado. Dá vontade de desistir de tudo! Tem sido
muito difícil viver aqui. Eu preferiria estar lá.
−Lá? Onde?
Perguntou Xambu confuso sem saber que lugar Gumã se referia.
−Lá; um
lugar perfeito onde existe o que eu busco. É horrível ter que conviver aqui com
este problema tão grande.
−Mas, o que
eu vejo em seu mundo é justamente o contrário. Vejo falta de problemas. Aqui reina alguma
coisa que deixa seu mundo
muito parado, devagar. Se vocês tivessem os problemas de meu mundo, talvez,
estivessem mais satisfeitos.
−Mas, os
problemas geram insatisfação. Pontuou Gumã.
−Não! Os
problemas movem o nosso mundo. Se não existissem problemas, solucionada estaria
a vida e nada haveria por se fazer. E, eu sou um guerreiro, preciso lutar por
um ideal que jamais será alcançado.
−Como assim?
Não faz sentido lutar por algo se você sabe que não se alcançará nunca.
Retrucou Gumã.
−O grande
sentido é perseguir. Depois de alcançado perde a graça. Por isso, criamos
sempre novos problemas para, a partir daí, criarmos novos ideais a serem
perseguidos, justificando a nossa permanência nesta vida. Justificou Xambu.
−É muita
maluquice o que você esta falando! Preciso conhecer seu mundo e os seus
problemas para entender a lógica de seu raciocínio.
−Será um
grande prazer! O meu mundo não é muito longe daqui. Fica do outro lado do seu.
Se quiser, posso levar voce agora mesmo.
Xambu levou
Gumã ao seu mundo. Assim
que cruzaram a fronteira, entraram na zona de conflito mais perigosa de todo o
território. O silêncio do mundo de Gumã foi substituído pelo barulho de
explosivos e tiros que
ecoavam por todos os lados. A paisagem verdejante e serena foi substituída por
um cinza árido e sangrento.
O olhar tranquilo e brilhante de seu povo foi substituído por um olhar
colérico, opaco e desolador. Naquele mundo não havia espaços para a paz e o
amor. Onde estariam estes sentimentos num mundo atordoado pelo instinto de
morte e destruição? Por que, ao invés de investir na busca de sentimentos
nobres, já triviais em seu mundo, aquele povo se limitava a viver valores e
sentimentos tão destrutivos? A imperfeição que Gumã atribuía ao seu mundo era uma
perfeição jamais sonhada por aquele povo. A vivência da paz e do amor exigia
uma evolução que eles ainda não possuíam. Como esta evolução fazia falta para
aquele mundo em guerra! Se eles tivessem consciência dos ganhos que teriam com
esta evolução, talvez se comprometeriam mais com a mesma. No entanto, a
ignorância não permitia. Diante de tanta precariedade, Gumã passou a valorizar
mais a evolução de seu povo. O amor e a paz deixou de ser um sentimento que
precisava ser transcendido. Mesmo que houvesse, no cerne deste universo,
sentimentos e virtudes mais poderosas, a compreensão de que a paz e o amor não
perdem o seu valor e a sua importância por isto, deixou Gumã mais tranquilo.
Ele estava perdendo a paz por desejar tanto e por desejar algo maior do que
ela. Ele estava deixando de amar por desejar algo maior que o amor. A perda
gradativa destes dois sentimentos, gerou, concomitantemente, um conflito
interno e uma guerra consigo mesmo. O seu mundo interior já estava ficando bem
parecido com o mundo de Xambu. Só depois desta compreensão, Gumã pode alcançar
uma paz e um amor maior ainda do que a paz e o amor que ele conhecia .
Percebeu, finalmente, que mais importante que transcender estes dois
sentimentos, era transcender a si próprio. Que era, sobretudo, mais sábio aperfeiçoar-se
do que buscar a perfeição.