terça-feira, 29 de maio de 2012

O PATINHO OBCECADO


Dedico esta história àqueles que esqueceram seu SER no calabouço do TER



O PATINHO OBCECADO



Era uma vez um patinho chamado Fofo que tinha um tio muito ganancioso que só pensava em dinheiro. Patito era o nome de seu tio que era, inclusive, muito rico. Tinhas muitas casas, muitos carros, muitas fazendas, muitas empresas e muitos empregados. Vivia numa mansão com piscina, sauna, móveis chiques e caros, muitas televisões, DVDs, aparelhos de som e computadores dos mais sofisticados, enfim, tudo de inovador que saía no mercado o seu tio possuía, pois o que não faltava era dinheiro para adquirir o que quisesse.  No entanto, tio Patito não tinha algumas coisas, dentre elas, tempo para se divertir, mas nem pensava nisto, pois a única coisa que cabia na sua cachola eram os pensamentos vinculados ao poder e ao dinheiro.

Fofo achava que o mundo de seu tio Patito é que era bom, pois ele tinha um monte de coisas que ele não possuía. Tio Patito tinha o carro do ano e Fofo não tinha nem mesmo um carrinho decente de brinquedo. Se quisesse brincar, tinha que inventar junto com seus coleguinhas, carrinhos feitos de caixinha de fósforo ou com as latinhas de cerveja que catava nas lixeiras da vizinhança. Adorava os carrinhos que construía, mas pensava – Com certeza, os carros do Tio Patito devem ser bem melhores. Quando eu crescer, quero ser como ele e ter um carro bem bonito e tudo que ele tem e eu não.

Com estes pensamentos, o tempo foi passando e fofo foi crescendo, crescendo, crescendo...E, à medida que crescia, não parava de pensar nem um minuto nesta idéia de ser como o tio. Esta ideia virou uma obsessão. Voce sabe o que é obsessão? Obsessão é uma ideia que não sai da nossa cabeça e não nos deixa em paz. Obcecado, resolveu imita-lo. Pensava – Agir como ele deve ser uma forma de me tornar uma pessoa bem parecida com ele.

Pensando assim, Fofo parou de brincar e só pensava em ganhar dinheiro, assim como seu tio. Tudo que fazia tinha um preço, até os menores favores, que qualquer pessoa faz gentilmente  e gratuitamente por alguém, tinha um preço para Fofo. Nunca mais construiu um carrinho de brinquedo com os coleguinhas. Achava esta brincadeira perda de tempo. Como sabia fazer carrinhos muito bem, sempre fora requisitado pelos colegas para esta missão. Antes, presenteava-os com carrinhos de todos os tipos.  Agora, só construía seus carrinhos se pudesse vende-los bem caro e jamais ensinava aos colegas o ofício de sua construção. Aos poucos, foi ficando ganancioso como o tio. Só queria receber e desaprendeu a doar. Quando um coleguinha não podia pagar o preço que cobrava pelos carrinhos que construía, não sentia nem um pouco de misericórdia pelo mesmo. Voce sabe o que é misericórdia? Misericórdia é voce ser cordial e bondoso frente a miséria ou dificuldade do outro. Fofo perdeu esta capacidade e diante das dificuldades do outro pensava; -“ Eu tenho e voce não!” E, dava aquela risada maldosa...

Fofo cresceu e deixou de ser Fofo. Seu apelido passou a ser “Pão Duro”. Deixou de ter amigos, pois não tinha tempo e nem vontade de brincar com eles. Quando brincava, queria sempre vender alguma coisa. Com isto, os coleguinhas foram achando muito chata este tipo de brincadeira e se afastando dele, pois ele não era mais uma pessoa amiga e agradável para se conviver. Fofo foi ficando sem amigos e crescendo solitário. Com o passar do tempo, ficou rico como o tio Patito, pois só pensava em trabalhar, trabalhar, trabalhar e ganhar mais e mais dinheiro.  Finalmente, passou a poder comprar de tudo. Passou a ter todas as coisas que sonhou na infância, só não tinha tempo para usufrui-las. Tinha a melhor TV, mas não tinha tempo para assistir. Tinha uma piscina enorme, mas não tinha tempo para nadar. O mais engraçado é que ele foi ficando com medo de se afogar nela. Pato com medo de se afogar... Era só o que faltava! Aliás, ele foi ficando com cada medo mais esquisito que o outro. Foi ficando com medo de voar. Lembrava de seus voos maravilhosos quando criança; agora não conseguia tirar os pés do chão. Tinha asas que não serviam mais para nada. Para se consolar, dizia: - Pelo menos, eu tenho os meus pés no chão!

Suas asas foram ficando encardidas e com cheiro de mofo, igual aquelas roupas antigas que a gente não se desapega e esquece dentro de uma gaveta anos a fio. Tinha medo do sol, preferia a luminosidade das lâmpadas da sala de sua mega empresa. Tinha também receio do vento ou até mesmo de uma brisa leve. Temia ficar resfriado. Preferia o ar condicionado. O engraçado é que não conseguia compreender porque vivia gripado e cheio de catarro no peito.

No meio de tantos medos que foram tomando conta de Fofo, foi crescendo também um vazio dentro dele, parecido com um buraco muito grande. Talvez, voce não saiba o que é ter um buraco dentro da gente. Só se voce se parecer com Fofo é que vai perceber isto. Eu só sei que cada vez que Fofo se deparava com este buraco, ele procurava ganhar mais dinheiro e comprar mais coisas. Mas, este monte de coisas não preenchia este buraco. Parecia que faltava alguma coisa em sua vida, só que ele não se dava conta do que. Ficava pensando: - Se eu tenho tudo que o tio Patito tem e tudo que os outros não tem, o que será que me falta?

Fofo não estava satisfeito e ficava cada vez mais confuso, pois olhava para seus amigos felizes; amigos que possuíam muito menos coisas do que ele. E, novamente, ele pensava: - Como eles podem estar mais felizes do que eu se eles não possuem as coisas que tenho?

Eram tantos pensamentos que Fofo foi ficando com a mente confusa e cansada. Foi ficando doente, deprimido e estressado. Sentia que havia perdido algo e não sabia o que. Mesmo tendo passado a vida inteira competindo, lutando para chegar na frente, para ser o melhor; sentia, agora, a sensação de ter ficado para trás e de ser a pior das criaturas. Sem energia para continuar nesta luta sem sentido, resolveu, finalmente, procurar o amigo mais feliz que possuía. Pensou que ele, talvez, pudesse lhe vender a receita da felicidade. Ao chegar na casa do mesmo ficou surpreso. Seu amigo não tinha nem mesmo uma TV em casa. Piscina, nem pensar. Seu amigo nadava nos lagos e rios que a natureza, gratuitamente, lhe oferecia. Com tão poucas coisas, ele só tinha uma coisa que Fofo não tinha:  Felicidade.  Como Fofo só pensava em dinheiro, propôs com palavras duras e arrogantes:

- Voce é um pobretão! Passou a vida toda nesta miséria. Se quiser, poderá ter algumas coisas que eu tenho e voce não. Estou disposto a pagar o preço justo pela sua felicidade.

- Voce quer comprar a minha felicidade? Perguntou indignado o amigo.

- Pago o preço justo! Reforçou Fofo cheio de pompa.

-Voce não tem como comprar a minha felicidade. Ela não tem preço. O máximo que poderei fazer é compartilha-la com voce. Completou o amigo externando piedade e demonstrando com ternura que nem tudo o dinheiro compra.

Fofo já se esquecera como era este negócio chamado compartilhamento. Lembrava vagamente de sua infância quando compartilhava brinquedos e momentos de prazer com os amigos.

- Eu não sei compartilhar. Gaguejou Fofo.

Ele que se julgava dono da verdade e o “sabe tudo”, de repente se viu sabendo tão pouco de coisas que sabia tanto quando criança. Sentiu-se envergonhado de ter descoberto que havia coisas da vida que desconhecia ou esquecera.

- Voce quer reaprender a compartilhar? Perguntou o amigo carinhosamente.

- Reaprender? Como assim?

- Me lembro bem de voce na nossa infância. Voce sabia compartilhar muito bem tudo que possuía.

- E, o que eu possuía? Não me lembro de ter possuído nada. Lembro-me apenas que o Tio Patito possuía muitas coisas que eu sempre tive vontade de ter.

- Parece que voce perdeu tudo que o Fofo tinha quando optou por ter as coisas que o seu tio Patito possuía.

- Pode ser, mas não me lembro mesmo das coisas que o Fofo tinha. Se teve realmente alguma coisa preciso checa-las e conferi-las. Voce pode lista-las para mim? Perguntou como um empresário diante da aferição de uma nota fiscal.

Lamentando as perdas de Fofo e querendo ajuda-lo a reconquistar o perdido, o amigo, num tom bem humorado, começou a listar tudo aquilo que se lembrava:

- Voce tinha tempo para brincar e hoje voce não tem. Tinha sempre um sorriso no rosto e agora só vejo rugas de preocupação. Tinha humor e agora só seriedade. Tinha amizades e agora só tem a solidão como sua maior parceira. Tinha alegria e agora só vejo tristeza no seu olhar. Tinha coragem e agora sinto a presença do medo em voce. Tinha a liberdade e agora te vejo sempre preso ao desejo de ter mais. Enfim, agora voce só tem a imagem idealizada do seu tio Patito.

Antes que o amigo continuasse, Fofo disparou a chorar:

- Agora é tarde! Perdi muito tempo acumulando coisas que nem mesmo usufrui. Estou perdido!

- Perdidão! Confirmou o amigo batendo as asas em suas costas fraternalmente.

- Não sei o que fazer e por onde começar a mudar a minha vida. Estive todo este tempo equivocado. Se eu pudesse voltar, faria tudo diferente. Daria todo o dinheiro que tenho para retornar à minha infância e corrigir meus erros.

- Pare de pensar em dinheiro! É um bom começo. Vá viver aquilo que a sua ideia obsessiva por dinheiro lhe roubou viver. Repreendeu o amigo, olhando-o com seriedade.

- Fui furtado do meu maior bem. Me sinto um miserável pedindo de esmola um pouco mais de vida. O que vivi não é vida. Voce tem razão, é pura obsessão.

- Espero que faça um bom proveito desta descoberta. Agora, voce me dê licença, pois tenho que ir. Hoje é dia de flutuar nas correntezas  do rio Guari.

- Posso ir com voce? Perguntou Fofo, receoso temendo uma rejeição do amigo.

- É claro! Desde que leve o Fofo e não pense no seu Tio Patito.

Fofo e seu amigo seguiram rumo a rio Guari. Uma nova vida cheia de aventuras e prazeres o aguardava de braços abertos. Afogando suas ambições naquele rio e flutuando sobre sua humildade, reaprendeu a nadar, voar e brincar. Suas penas voltaram a ficar brancas e fofas como algodão e hoje, depois de muitos anos, virou lenda na região. Dizem que quem tiver a graça de encontrar uma pena bem fofa e branca flutuando pelo rio Guari conquistará a verdadeira felicidade.




segunda-feira, 21 de maio de 2012

Os dois lados da moeda

Dedico esta história a todos os casais que mesmo se debatendo com as imperfeições de um relacionamento continuam comprometidos com a construção de uma verdadeira história de amor



OS DOIS LADOS DA MOEDA


A história que se segue além de ser verídica é inédita, ou seja, acontece uma vez só para nunca mais. Diferente das outras, ela não começa assim – “Era uma vez”... Ela está acontecendo agora e o final depende, exclusivamente, da decisão e da postura dos protagonistas da mesma. É uma dialética do relacionamento humano e como tal, apesar de ser apenas uma história, parece na verdade ser duas. Sendo duas, qual delas você prefere ouvir primeiro? Cara ou coroa? Talvez seja melhor começarmos pelo melhor que cada um possui dentro de si para construir uma verdadeira história de amor.
Lira e Caio vivem felizes. Se conheceram a 6 anos atrás quando ambos viviam a angústia da separação de um grande amor . Caio, portador de um humor contagiante, trouxe em 2 dias de convivência o brilho da alegria que faltava aos olhos de Lira. Esta enxergou na alma de Caio, sensibilidade e grandeza e, ele vice versa. O desejo de união brotou ali, naquele exato momento, onde um se viu refletido na alma do outro. Só que a vida lhes pediu, na ocasião,  um tempo,  prometendo mais tarde um reencontro. Deu a Lira e a Caio a oportunidade de viverem outras experiências importantes que serviriam de alicerce para uma união futura. Hoje eles estão juntos há um ano e cheios de projetos de vida. Lira vem encontrando pela frente um importante desafio – mudar, radicalmente, a sua vida para viver com Caio e com uma nova mulher que anseia renascer dentro dela mesma. O amor por Caio e por ela é um grande incentivo neste processo. Caio, apesar de não ser bom na arte de expressar seu amor por meio de palavras, o expressa através de gestos significativos que muito emociona sua parceira. Lira entende a sua dificuldade e aceita a sua forma de expressão, aliás, para ela, muito mais significativa do que palavras. “Palavras dificilmente conseguem ser tão verdadeiras quanto os gestos de amor”. Caio e Lira, apesar de serem muito parecidos, são ao mesmo tempo muito diferentes. A igualdade na forma de ser e pensar favorece uma crescente identificação de ambos. As diferenças atuam como um importante instrumento de aprendizagem. Um oferta ao outro aquilo que lhe falta preenchendo-o de recursos. Este casal tem algo em comum; adoram coisas diferentes. Sendo assim, sabiam que relacionar-se com uma pessoa igual a eles seria, por demais,  entediante. As diferenças, por algumas vezes, geraram conflitos, mas eles estão sendo suficientemente maduros para enfrentá-los. Cientes de que toda crise é um chamado de transformação e não necessariamente de rompimento, comprometeram-se a enfrentá-las juntos, tirando delas todos os ingredientes capazes de favorecer o desenvolvimento mútuo. As crises começaram já nos primeiros dias de namoro, incitando cada um a mudar o que já estava por demais cristalizado e velho. Uma renovação em todos os níveis do ser tornou-se, primordialmente, necessária para manter não só o relacionamento vivo como também cada um deles, pois tanto Caio quanto Lira  ansiavam, internamente, pelo nascimento de uma nova pessoa, por  estarem enjoados de uma identidade já antiga que solicitava reformas. Um relacionamento que não exigisse uma postura nova jamais poderia ajudá-los a se transformar na pessoa nova e saudável que buscavam com tanto afinco. Neste processo foram se  encontrando dia após dia. Com profissões bem diferentes, tornaram-se, simultaneamente, aprendizes e mestres um do outro. O mais interessante é que, mesmo tecnicamente despreparados profissionalmente para oferecer ajuda , eles se utilizam da intuição para acrescentar algo inusitado e colaborar positivamente para com a prática profissional do parceiro. No plano físico se incentivam, mutuamente, a não fazer mais aquilo que o comodismo vinha ditando. Utilizam-se de humor e brincadeiras para não parecer cobrança o que, na verdade, é um incentivo. Estão desenvolvendo um corpo cada vez mais saudável e menos encouraçado. No plano sexual, Lira achava que sabia tudo e de repente tornou-se uma aprendiz muito comprometida com formas de amar até então desconhecidas para ela. Goza com imensa satisfação esta nova experiência de prazer. Caio, por outro lado, tem sido instigado a viver mais intensamente o que parecia viver pela metade. O desejo passou a ser um desafio que ambos se comprometeram enfrentar. O gostinho da vitória vem sendo alcançado devagarinho, dia após dia, na vivência a dois. Isto traz um pouco de ansiedade para ambos, mas vencer a ansiedade tornou-se mais um desafio para encontrar a paz. Eles sabem que a vida sempre escolhe o nosso ponto fraco para testar o nosso comprometimento. Sabem que com o tempo este ponto fraco será, na verdade, o ponto mais forte deles, por isso, não desistem. Outra dinâmica interessante deste relacionamento é que nunca depreciam as dificuldades do outro. Os recursos que um já possui e que o outro não, são doados, incondicionalmente, de maneira a favorecer o crescimento do parceiro. Aquilo que ambos não possuem para oferecer ao outro vira compromisso mútuo, ou seja, ao invés de se acomodarem, correm atrás de alternativas e soluções. Sabem que o comodismo poderá se transformar num vírus capaz de arruinar não só o relacionamento, mas também a vida pessoal de cada um. O ponto forte deste relacionamento é a capacidade que ambos possuem para enxergar e se relacionar com o lado saudável do outro e a dedicação para tratar do lado doente sem fragilizá-lo ainda mais. Caio e Lira formam um casal ideal; são suficientemente imperfeitos para incitar o valioso desejo de aperfeiçoarem-se,  utilizando o outro como uma ferramenta de transformação. Por isso, acreditam, fidedignamente, que poderão ser felizes para sempre, pois o sempre é para eles um agora repleto de desafios e possibilidades.
Existe, entretanto, o outro lado da moeda que não lhes contei ainda. Parece uma história totalmente diferente, mas posso lhes garantir que é a mesma. Talvez, vocês possam encontrar algum ponto em comum.
Lira e Caio vivem em conflitos. Não se agridem, aliás, fazem de tudo para se relacionarem bem, mas estão sempre inseguros, certos de que as limitações do outro poderão, em algum momento, arruinar este relacionamento. Se conheceram a 6 anos atrás quando ambos viviam intensamente a angústia da separação. Eles se desejaram, mas nenhum dos dois tiveram, na época,  a coragem de investir no relacionamento, talvez por medo dos fantasmas que carregavam. Mas, a vida sempre insiste em trazer de volta aquilo que negamos viver. Assim, há um ano atrás,  eles se reencontraram novamente e iniciaram um namoro. Possuem projetos de vida importantes, mas sempre duvidam que o outro esteja por inteiro nestes projetos. Lira terá que mudar, radicalmente,  a sua vida para viver plenamente o seu amor por Caio e por uma nova mulher que anseia nascer dentro dela mesma. No entanto, a mulher que é já se encontra, por demais,  estabilizada no mundo seguro que construiu. Apesar de saber que estabilidade e realização são duas coisas bem diferentes, Lira ainda se sente insegura. Fica em dúvida se o amor de Caio é suficientemente grande para apóia-la neste momento de intensas mudanças. Como Caio dificilmente expressa por palavras o que sente, Lira sente-se cada vez mais insegura. Acostumada a ouvir declarações de amor, vive na expectativa de ouvir as mesmas declarações do parceiro atual. No entanto, ele não satisfaz as suas expectativas e ela vai acumulando frustrações. Caio acaba também ficando frustrado, pois Lira não se satisfaz apenas com os gestos de amor que ele expressa com tanta dedicação. É muito difícil para Caio e Lira lidar com as diferenças. Sendo assim, acabam entrando em conflito. Cada um utiliza um recurso diferente para lidar com o mesmo. Como ambos não conseguem ser agressivos, nunca brigaram. No entanto, Lira se fecha em seu mundo alimentando suas mágoas e Caio torna-se indiferente procurando não perceber o que se passa ao seu redor. Focar-se em suas atividades profissionais é uma forma de fazer isto. Quando ele age assim, Lira passa a conceber sua tão bela profissão como uma amante, ou seja, uma rival em seu relacionamento. Caio, às vezes, não dá a importância necessária aos valiosos projeto profissionais e pessoais que Lira possui,  gerando assim a falsa idéia de que este não se interessa por nada que lhe diz respeito. Desta forma, Lira desenvolveu a ideia de que Caio só enxerga a si próprio e passou a ver nele um grande egoísta. Com isso, Caio já está passando a se sentir assim. E, cada vez que ele se convence de que é um egoísta,  mais ela se convence disto também. Caio tem uma virtude que poucos homens possuem,  que é a de assumir seus erros e limitações. Lira aprecia muito esta sua virtude , mas não aprecia o defeito que se assenta sobre ela. Assim, depara-se com um grande conflito; não sabe o que deverá valorizar mais –  a virtude ou o defeito do namorado. Fica até parecendo que Lira não possui defeitos. Aliás, este é o maior deles, ou seja, cobrar-se ser perfeita demais. Sendo muito certinha, passa a incomodar muito mais a si mesma do que ao seu namorado. Por outro lado, esta é também uma grande virtude de Lira; desejar amadurecer cada vez mais como ser humano. Neste desejo de amadurecer, Lira tornou-se muito observadora e vigilante. Observa cada falha sua e do parceiro numa tentativa de lapidar suas arestas. Caio, apesar de ser extremamente sensível e maduro, é, por outro lado, bem disperso. Às vezes, fala coisas impensadas, sem uma elaboração prévia que em muito aflige a elaborada racionalidade de Lira. A grande capacidade de perdoar desta é que a impediu de por fim ao relacionamento, pois Caio por pura dispersão, já adotou, algumas vezes, posturas contraditórias que ameaçam todos os projetos de união do casal. Tentando oferecer à namorada explicações racionais e lógicas para o seu comportamento, Caio busca nos livros que analisam as diferenças entre os sexos, algo que satisfaça a mesma. Lira se satisfaz em parte, mas frustra-se por não conseguir do namorado outros tipos de leitura que ela julga mais importante, sobretudo a leitura de seus mais profundos sentimentos. No plano sexual,  Lira tem se sentido incompetente, pois não se sente desejada pelo parceiro. Caio a deseja, no entanto, de forma bem diferente da qual estava acostumada. Ele  tem também as suas dificuldades e, por algumas vezes, projetou em Lira a responsabilidade das mesmas por medo de enfrenta-las de frente; outras vezes, fugia para não ter que vivenciar aquilo que ameaçava. Lira tentando ser paciente e compreensiva sentia-se, ao mesmo tempo, negligente para consigo mesma por aceitar a indiferença do namorado para com suas necessidades sexuais. Não acha justo ter que se adaptar sozinha às necessidades e ao ritmo do mesmo sem que este faça o mesmo por ela. Assim, mais uma dose de frustração é acrescentada neste relacionamento. Lira vem se sentindo uma grande chata , pois numa tentativa de ajudar Caio a superar algumas dificuldades, comodismo e negligência para com a própria vida, acaba passando uma impressão errada de seu gesto. Parece estar cobrando e manipulando quando na verdade está desejando incentivar mudanças, tornando-o mais vigilante para consigo mesmo, pois sabe que as dispersões do parceiro sempre trouxeram estragos significativos em sua vida. Caio tenta acolhe-las com humor, mas, algumas vezes, Lira recebe as respostas bem humoradas como crítica e se aborrece. Parece que, lá no fundo,  Lira não gosta muito de ser criticada, já que tem se esforçado tanto para ser perfeita.  A dificuldade em aceitar serenamente as limitações do outro e a incapacidade de enxergar o potencial escondido por detrás destas limitações é o ponto fraco deste relacionamento. As diferenças do casal tem se tornado um grande conflito , apesar de existir um grande desejo de estar junto e enfrenta-las de frente. Lira e Caio não desejam que este conflito se transforme num campo de batalha capaz de ferir a ambos. Assim, paira a dúvida se poderão realmente ser felizes para sempre.
Será que contei mesmo a mesma história? Será que o Caio e a Lira da primeira não desejam enxergar a realidade ou será que o Caio e a Lira da segunda não conseguem enxergar outras possibilidades de realização?
Talvez o grande mestre Jesus Cristo possa explicar as faces desta moeda com sua linda parábola: “A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se o seu olho estiver são, todo o seu corpo ficará iluminado; mas se o teu olho estiver doente, todo o seu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grande serão as trevas.”
Com quais olhos Lira e Caio se enxergarão e guiarão seu relacionamento? Isto dependerá, exclusivamente, deles próprios. A luz da realização e as trevas das frustrações estarão sempre presentes na caminhada que os dois empreenderão pela vida. Sei que ora enxergaram uma, ora outra. Muitas vezes, pensaram ser miragem a luz que enxergaram. Outras vezes, temeram perder ao outro e a si próprio quando, por descuido, se afogaram nas trevas. Sei que é difícil acreditar que as duas histórias fazem parte de uma só; assim como cara e coroa  fazem parte de uma  moeda. A moeda foi lançada e a sorte deles também. Não sei qual será a sorte ou o azar deles, só sei que com os pés na estrada e de olhos bem abertos, somos nós que construimos a nossa sorte.

domingo, 13 de maio de 2012

A ÁRVORE ESQUECIDINHA


Dedico esta história a todos aqueles que estão vivenciando a dolorosa estação do outono, ou seja, do desapego e do desprendimento





Era uma vez uma árvore que vivia todos os anos o mesmo medo. Sua ansiedade se pronunciava já no final do verão. Começava a perceber que sua folhas iam ficando menos viçosas e algo dentro de ti já avisava que, em breve, deveria perdê-las. No início do outono, quando algumas folhas começavam a se desprender, a árvore esquecidinha entrava em pânico procurando segurar suas folhas já secas e sem viço em suas hastes.

-Voces não podem cair! Ficarei desnuda e feia.

Dona Borboleta Azul que já conhecia o problema da árvore esquecidinha procurava acalma-la:

- Esquecidinha, voce se esqueceu mais uma vez de uma regra básica da natureza. Há estações para todos os seres. O outono chegou e não há como mudar isto. É a estação do desapego e do desprendimento. Quem estiver passando por ela deverá se desprender de alguma coisa muito importante para conquistar algo novo e melhor à frente. Todos os anos voce passa por isso, no entanto, sempre se esquece.

-Verdade? Mas, eu não consigo me lembrar de ter passado por isto antes. Eu devo ter um problema muito sério de memória. Que tristeza! Lamentou Esquecidinha.

- Na verdade, não só voce, mas a maioria dos seres. Quando chega o outono novamente, eles parecem se esquecer que já viveram esta estação antes. Ao invés de aceitar, entram em pânico ou tentam nega-la das formas mais ridículas e inapropriadas para a energia do momento. Aceite o outono e grandes transformações acontecerão.

- Mas, eu não quero perder minhas folhas; elas são muito importantes para mim.

- Ninguém quer perder nada! No entanto, toda perda traz consigo uma grande conquista.

- Como é que vou ficar! Careca e cinzenta... Vou me sentir solitária. Não terei sombra e nem frutos para oferecer. Todos vão se afastar de mim. Estou com muito medo de viver este tal outono que voce fala.

- Voce vive o outono todos os anos, mas, infelizmente, se esquece. E, depois dele, voce se torna nova e exuberante. É depois dele que vem a folhagem nova, viçosa, cheirosa, como também, todos os deliciosos frutos que fartamente voce oferece ao mundo. Nada melhor do que a renovação. Do jeito que voce está, o que poderá oferecer? Carrega uma energia que precisa ser renovada. Neste momento, voce está se parecendo mais uma velha enrugada, cansada, doente e sem viço.

- Que garantias voce me dá de que viverei a renovação?

- Nenhuma, pois a renovação só pode ser conquistada por quem se garante. Quem não se garante fica velho e ultrapassado e acaba se afastando de tudo e de todos.

- Como assim, não entendi. Voce está querendo me dizer que me transformarei num ser solitário se eu não aceitar o outono? Perguntou, Esquecidinha, confusa.

- Isto mesmo! O mundo gira e com eles todos os seres. Se permanecer no passado não terá como conviver com quem está no presente. E sem o presente, não terá presença na vida. Ficará agarrada a lembranças daquilo que não pode mais ser e se tornará uma árvore deprimida.

- Voce pode me dizer o que é uma árvore deprimida? Perguntou Esquecidinha.

- Mais do que isto! Posso lhe mostrar.

A Borboleta Azul apontou para uma árvore seca e sem vida logo adiante de esquecidinha. Esquecidinha arregalou os olhos e pontuou assustada:

-A depressão tirou a vida desta árvore?

- Não. A principal responsável foi a sua resistência em se renovar. A depressão é só a consequência de seu comportamento. Se prendeu tanto ao passado que passada ficou.

- Eu não quero acabar assim. Me fale o que devo fazer! Solicitou Esquecidinha apavorada.

- A primeira coisa importante a fazer é não eternizar o lamento dentro de ti. Permita-se ficar triste com sua perdas, mas, abra espaços para as novas conquistas. Deixe morrer o que precisa morrer, mas deixe nascer o que precisa nascer. Os depressivos abortam toda energia nova que quer nascer. Querem viver o passado e reconstruí-lo ao invés de aprenderem com ele. Toda construção só pode ser erguida no presente. Viva a energia do presente e erga com ela os pilares de sua vida. Não importa se a energia do presente é alegria ou tristeza, certeza ou dúvida, ignorância ou sabedoria. Viva cada energia, transmutando-as. Tudo é uma coisa só.

Antes que a Borboleta Azul pudesse continuar, Esquecidinha perguntou:

- Tudo é uma coisa só! Como assim?

- Assim como o dia e anoite. Para o dia nascer, a noite tem que morrer e vice versa.

- Já entendi! Não precisa falar mais nada. Acho que preciso viver. Só isso, VIVER! E viver é aceitar a estação do momento. Me esqueci de todas elas, por conta do meu esquecimento. Mas, mais importante do que as lembranças que não tenho é a possibilidade de viver e sentir cada momento como se fosse o único. Posso me esquecer de tudo, mas daqui para frente vou fazer o possível para me lembrar do mais importante.

Esquecida de seu medo, Esquecidinha viveu o outono. Deixou que todas as folhas se desprendessem. Se recolheu ainda mais no inverno para se conhecer mais, se fortalecer e se preparar para a grande transformação. Na primavera, lá estava ela; exuberante, florida e acolhendo em seus galhos centenas de seres. Esquecidinha continuou esquecida, mas a partir daquele outono, algo diferente aconteceu. Quando indagada pelos outro seres acerca de sua impressionante beleza, dizia;

- Viver é o mais importante! E, viver é fluir por todas as experiências que a vida nos oferece.

Esquecidinha, nunca mais temeu o outono. Conseguia, em meio a sua tristeza, fazer uma piadinha que despertava o riso e o sorriso em muitos seres que compartilhavam com ela aquele momento:

- Tô careca! Que tal meu visual novo?

E, assim todos riam e o riso trazia leveza e uma mensagem importante: "Independente da estação, ele é sempre bem vindo”.




domingo, 6 de maio de 2012


Dedico esta história a todas as crianças que temem a noite


O Encontro do dia e da noite


O dia e a noite gostam sempre de se encontrar para uma conversa agradável antes de um deles ir para a cama dormir. Ao entardecer, o dia já cansado,  repousa no colo da noite e ela conta inúmeras histórias para o dia dormir e descansar. Da mesma forma, ao alvorecer, a noite já cansada de tantas aventuras, repousa no colo do dia e este lhe contas as mais interessantes histórias para que a noite durma e descanse feliz. Sempre foi assim que as coisas aconteceram, até que, certa vez, o dia começou a perceber uma grande tristeza na noite. Ela não queria mais contar histórias e com uma expressão muito desanimada e triste acabava deixando o dia triste também, pois a noite e o dia se amam tanto que quando um fica triste o outro acaba ficando triste também.
O dia perguntava o que estava acontecendo, mas a noite se calou, não queria falar no assunto.  Respeitando o silencio da noite, mas querendo ajuda-la de todas as formas possíveis, o dia aproveitou uma daquelas situações em que a lua se esquece de dormir e fica acordada também durante o dia para tecer com ela uma boa conversa. A Lua sempre foi uma grande companheira da noite e, com certeza, saberia lhe dizer o que estava acontecendo com a amiga, de onde vinha aquela tristeza tão grande. Aproveitando a presença da lua ali bem pertinho de si, perguntou curiosa:
- Amiga Lua, o que está acontecendo com a noite? Ela anda tão triste!!!
- Triste é pouco, acho que ela já está doente de tristeza, perto de viver uma grande depressão. Remendou a lua.
- Depressão! Mas isto é muito sério! Exclamou o dia ainda mais assustado.
- Você é quem dorme e não vê! Mas, a tristeza da noite já conseguiu apagar a alegria de milhares de estrelas. O céu está cada vez mais escuro, pois as estrelas estão perdendo a luz contaminadas com sua tristeza.
- Mas, nossa amiga noite é tão linda, agradável e amada. Sempre foi tão feliz... Ela perdeu alguma coisa? O que falta para ela se sentir feliz agora? Perguntou o dia confuso, sem conseguir entender os motivos da noite para tanta tristeza.
-Infelizmente, a noite fez uma descoberta muito desagradável. Comentou a lua.
- Que descoberta? Me conte, estou curioso. Perguntou o dia.
-Você bem sabe que a noite é muito amada por quase todos.
-Quase todos? Como assim? Acho a noite amada por todos. Os artistas só conseguem fazer arte, músicas, poesias e estórias no silêncio e na tranquilidade que ela proporciona. Os adultos só conseguem dormir profundamente no colo da noite para acordarem cheio de energia, prontos para o trabalho e para as mais interessantes aventuras no tempo que proporciono a eles. Se não fosse a noite, eles não teriam energia suficiente para me viver. Até o sol que vive comigo, passa grande parte do meu tempo elogiando a noite. Diz que se não fosse ela, ele estaria muito cansado e sem energia para aquecer a terra. Os namorados adoram a noite, principalmente nos dias em que você está bem cheia. Dizem que noite de lua cheia é romântica e transborda amor. Enfim, tenho uma lista gigantesca de seres que amam a noite. Não consigo pensar em ninguém que possa não gostar dela. Se não fosse ela, se não fosse o descanso que ela proporciona,  ninguém teria energia suficiente para me viver. Eu seria um dia solitário e triste. Por isso, a amo muito também. Devo a minha felicidade a ela.
-É verdade! Comigo acontece o mesmo. As pessoas só conseguem ver a minha beleza na noite. Por mais que eu goste de você, amigo dia, durante a sua jornada eu fico praticamente invisível para as pessoas. Devo a minha beleza à noite, por isso a amo tanto! Exclamou a lua tocando a lebre tatuada bem em cima do seu coração.
- Então, me fale o que falta a ela. Não consegui entender nada ainda!
-Falta ela ser amada pelos seres que ela mais ama. A noite descobriu que muitas crianças, ao invés de ama-la, morrem de medo dela. O medo das crianças acabou com a alegria da noite. Explicou a lua.
-Mas, como podem as crianças terem medo da noite? A noite se faz serena para as crianças dormirem bastante, descansarem e acordarem pela manhã  cheias de energia e prontas para se divertirem comigo quando o sol abre seu sorriso. As crianças não estão sendo justas com a noite. Temos que fazer alguma coisa! Exclamou o dia demonstrando muita preocupação.
Antes que pensasse numa solução para ajudar a amiga, a noite veio se aproximando devagarinho, mais silenciosa ainda do que nas outras vezes, sem querer dar uma só palavra, sem contar uma só história para o dia dormir. E, quando a noite não conta histórias para o dia dormir, este não consegue ter um bom sono e bons sonhos. É atormentado por pesadelos e acorda no outro dia estressado, sombrio e cinza. Dia cinzento é dia cansado. É dia que dormiu sem ouvir as belas histórias da noite.  
E assim, chegou mais uma noite. Noite tristonha, com poucas estrelas, muitas delas se apagando com a tristeza que tomou conta dela. Até a lua não estava tão luminosa. Tentava não minguar muito para doar um pouco de luz à amiga, pois com o apagão de milhares de estrelas, a noite poderia ficar sombria demais. Querendo melhorar o humor da amiga, a Lua  comentou:
-Você acha que as crianças não te amam. Acha que todas as crianças temem você, mas isto não é verdade. Olhe quantas crianças dormem tranquilas agora, graças à tranquilidade que você oferece a elas. E nesta tranquilidade, sonham os sonhos mais lindos para poder construir durante o dia um mundo melhor para todos nós. É em voce que as crianças constroem os sonhos. E os sonhos atuam como um projeto da realidade que o dia constrói. Se você deixar de existir para as crianças, os sonhos não poderão acontecer e o dia vai ficar ocioso, sem trabalho e sem possibilidade de construir uma realidade bem gostosa de ser vivida. Explicou a lua.
A tristeza deixa todo mundo pessimista. Pessimismo é um sentimento ruim que faz a gente ter pensamento ruim, faz a gente lamentar e perder a capacidade de encontrar soluções para os nossos problemas.  Contaminada com este pensamento pessimista a noite continuou lamentando:
-Mas, as crianças podem dormir também durante o dia. Assim, não precisam de mim para construir seus sonhos.
-Engano seu! Até para dormir e sonhar durante o dia, a gente precisa criar você dentro da gente.
-Como assim? Perguntou a noite confusa.
-É preciso fechar os olhos. E, quando a gente fecha os olhos,  a gente cria a noite dentro da gente. Precisamos buscar voce mesmo quando você não está presente para que possamos descansar , dormir e sonhar.  Explicou a lua cheia de encanto.
-De certa forma, você tem razão... concordou a noite. Mas, quem tem medo não tem amor no coração. Quem ama não precisa temer nada. Por isso, diante das crianças medrosas, sinto que não sou amada.
-Mais uma vez, engano seu! Quando o medo aparece, não é o amor que falta. Falta um outro sentimento chamado coragem. E, a coragem só vem quando é chamada pelo medo. E, sem coragem a gente não consegue viver o dia. Não sei se já conseguiu perceber, mas é em você que a coragem nasce.
-Como assim? Perguntou a noite. Não estou entendendo.
A Lua continuou explicando cheia de entusiasmo. Sentiu que a noite estava ficando, devagarinho, mais interessada. Isto já era um bom sinal para afastar a tristeza.
-Veja bem! A gente só tem medo daquilo que a gente não conhece. Daí, o nosso primeiro medo é do escuro. E, só você pode oferecer o escuro para despertar o medo e à partir daí, o medo despertar a coragem. Todo adulto corajoso foi um dia uma criança que em algum momento teve medo. Só depois que a gente enfrenta o medo é que conseguimos vence-lo e nos tornarmos pessoas corajosas.
-Isto quer dizer que as crianças que estão com medo de mim, precisam justamente de mim para se tornarem corajosas?
-Isto mesmo! Que bom que você compreendeu!
-Mas, será que as crianças vão compreender isto? É difícil entender a matemática destes sentimentos.  Medo + medo = coragem. Ou seja, é preciso ter medo, para depois enfrenta-lo e só à partir daí vence-lo e conquistar a coragem.
-Ou poderíamos dizer que noite + medo = coragem. Ou seja, é preciso da noite para ter medo e à partir deste medo conquistar a coragem, vencendo-o.  Reiterou a Lua.
-Então, vamos contar isto para todas as crianças que estão com medo. Sabendo disto, elas não terão mais medo de mim e eu ficarei feliz novamente. As estrelas vão se iluminar mais. Tudo vai ficar novamente mais bonito. Exclamou a noite agora com um grande sorriso no rosto.
-De jeito nenhum! Censurou a Lua. Voce não pode contar este segredo para ninguém. As crianças precisam descobrir isto sozinhas. Enfrentando a noite, ou mais precisamente, enfrentando você, elas vencerão o medo e conquistarão a coragem. Assim, teremos muitas pessoas corajosas neste mundo. E precisamos de pessoas corajosas para enfrentar todas as dificuldades que aparecerem na vida. Deixe que os pais das criancinhas possam ajuda-las nesta descoberta.
Apontando o dedo para uma casinha lá embaixo, bem em frente ao mar e ao lado de uma linda floresta, a Lua indagou a noite:
 - Querida amiga,  consegue ver uma luz acesa naquela casinha lá embaixo e logo nesta hora da madrugada?
-É claro! Vejo uma criança acordada. Daqui consigo ouvir o choro dela. É isto que me deixa triste. Tá vendo! Ela, como muitas outras, está chorando com medo de mim.
-Eu conheço bem este menino. Ele se chama Luan. Os pais dele deram este nome a ele em minha homenagem. Vamos ficar caladinhas para ouvir o que ele conversa com o pai?
A Lua e a noite ficaram bem caladinhas tentando ouvir cada palavra que o menino conversava com o pai. Agarrado ao mesmo ele gritava:
-Estou com medo! Estou com medo!
-Querido, fique tranquilo! Eu sei que ruim ter medo. Mas tem uma coisa muito boa nele. Tranquilizou o pai de Luan.
-O que? Perguntou Luan curioso.
-O medo chama a coragem. De hoje em diante você terá a oportunidade de se tornar um garoto muito corajoso. Mas, não basta só ter o medo. É preciso conquistar a coragem. Voce quer ficar só com o medo ou quer a coragem para você. Perguntou o pai?
-É claro que eu quero a coragem. Ter medo é muito ruim.
-E, por ser ruim, a gente precisa acabar com ele. Existe o bem e o mal. O medo é o primeiro mal que a gente precisa combater.
-Como assim, papai? Perguntou Luan confuso.
-O medo é um pensamento maldoso que fica rondando na cabeça da gente. E, se a gente não acaba com este pensamento, ele vence a gente e a gente se transforma numa pessoa medrosa. Mas...
-Se a gente acaba com este pensamento ruim, a gente se transforma numa pessoa corajosa. É isto papai? Perguntou Luan dando prosseguimento às explicações do pai.
-Muito bem, garoto! Voce é muito inteligente e esperto. E, garoto inteligente e esperto consegue montar várias armadilhas para vencer o medo e não cai nas armadilhas dele.
-E, quais são as armadilhas do medo, papai? Perguntou Luan pronto para montar suas primeiras estratégias contra o medo.
-Vamos começar pelos pensamentos ruins que ele provocou em você. Por exemplo... Do que você estava com medo? Perguntou o pai.
-Eu estava com medo do barulho e do escuro da noite. Respondeu Luan.
-Vamos começar pelos barulhos da noite que o medo quis que você escutasse e entendesse de forma medonha. Para isto deveremos escuta-los de forma inteligente, procurando identifica-los. Vamos ouvir todos os barulhos desta noite. Começando por este aqui...
-Tic tac, tic, tac, tic, tac....
-Que barulho esquisito é este, papai. Eu ouço e fico com medo dele...
-Este barulho acontece não só de noite , mas de dia também. Só que a noite deixa tudo quietinho e você consegue prestar mais atenção nele. E no dia há tanto barulho junto, que a gente acaba não conseguindo percebe-lo e nem mesmo identificar nada. Mas, amanhã você vai ouvi-lo de dia e perceber que ele não pode fazer nenhum mal a você. Voce não consegue descobrir que barulho é este?
-Não, papai. Tô achando difícil saber o que é isto.
-Então eu vou lhe ensinar uma brincadeirinha legal. Quando eu era da sua idade, eu procurava dormir a noite inteira, pois queria descansar para no outro dia levantar com toda energia. Mas, às vezes, acontecia de eu acordar durante a madrugada e ficar ouvindo estes barulhos esquisitos. Eu sabia que não precisava ter medo destes barulhos, pois minha mãe me explicou tudo isto que eu estou te explicando agora. Assim, quando eu acordava e o sono ia embora, eu ficava brincando de identificar os barulhos, até que o sono voltava e antes que eu me desse conta, já estava dormindo de novo. Eu descobri cada barulho mais engraçado... Tinha um que era da geladeira velha da minha cada. Ela parecia um monstro derrubando tudo dentro da minha casa.
-Voce acreditava em monstro, papai?
-Haaa!!!! Pelo menos nisto você já está mais esperto que o papai na sua idade. Papai acreditou até meu pai me contar que eles não existiam. Meus colegas na escola inventavam monstro de tudo que é jeito para fazer medo na gente. E tinha filme na TV que inventava um monte de monstro também. Mas, depois que descobri que os monstros só existiam nas fantasias que a gente cria na cabeça da gente, nunca mais tive medo deles.  Se você quiser eu crio um monstro aqui agora para você.
-Como, papai?
Neste momento, papai pegou o lençol da cama, jogou sobre a cabeça e fez um barulho assim: UHHHHHHHHH!!!!!!! Luan morreu de rir  e brincou de lutar com o fantasma que o papai tinha criado. Depois da brincadeira, Luan voltou a conversa onde papai tinha parado.
-E a geladeira barulhenta da sua casa? O que você fez com ela?
-Eu não fiz nada. Morria de rir do barulho dela. Transformei ela numa velha surda e ranzinza que ficava reclamando da vida de noite pra não deixar ninguém dormir. Ficava até com pena daquela velha chata que vivia reclamando. Acho que ela não estava mais aguentando trabalhar tanto. Coitada! Trabalhava de dia e de noite sem descanso. A gente, pelo menos, podia descansar de noite para trabalhar de dia. Assim, um dia, a vovó e o vovô compraram uma geladeira nova pra deixar a velha aposentar e descansar um pouco.
-A geladeira nova fazia barulho também?
-Toda máquina faz barulho. Mas o barulho dela era muito suave; não me incomodava. E se você prestar bem atenção, tem máquina que trabalha o tempo todo e tem máquina que trabalha só de dia.
-E tem bicho que trabalha só de noite, papai ? Pois tem barulho que eu só ouço de noite e você  já me disse que é barulho de grilo e de sapo.
-Tá ficando espertinho né! Antes ficava com medo do canto do grilo.
-Mas agora não fico mais, acho até bonito. Acho que vou transformar o canto deles numa música para me ninar quando eu perder o sono.
-Isso que eu chamo de garoto inteligente! Mas, mais inteligente ainda se for para cama agora e pegar no sono para amanhã ter força para enfrentar o dia. Senão dormir, a preguiça vai te dominar amanhã e você não vai conseguir fazer nada.
-Tudo bem, papai! Mas fecha bem a janela porque tem um medo que eu ainda não dominei.
-Qual, meu filho! Perguntou o pai surpreso com mais um medo de Luan.
-Tenho medo de algum bicho entrar dentro do meu quarto pela janela. E não venha me dizer que não existe bicho lá fora... Eu sei que não existe monstro e nenhum bicho papão, mas sei que tem um monte de bicho de verdade lá fora que pode querer entrar dentro do meu quarto.
-É aí que entra a parte mais difícil  do exercício da coragem, meu filho!
-Exercício da coragem? Que isto, papai? Perguntou Luan Surpreso. Luan estava acostumado a fazer os exercícios que a professora na escola ensinava, mas nunca ouvira falar que a coragem nos passava também alguns exercícios.
-Antes de nos tornarmos uma pessoa corajosa, precisamos exercitar a confiança. Só aceitamos a coragem se antes confiarmos que as coisas darão tudo certo. Sem confiança a gente prefere o medo e o usa como uma precaução.
-Precaução...  Que isto? Perguntou Luan surpreso diante desta palavra nova nunca ouvida antes.
-Precaução é uma espécie de cuidado que a gente tem diante do desconhecido. E, a gente só tem medo daquilo que a gente desconhece. Quando a gente passa a conhecer, o medo desaparece.
-Não estou entendendo, papai.
O pai de Luan pegou a máquina de fotografia e mostrou a última foto que havia tirado do filho, perguntando:
-O que está acontecendo nesta foto? Quem a tirou?
-Foi a mamãe que tirou uma foto do meu primeiro pulo na piscina.
-Mas tem uma pessoa com você nesta foto...
-É você, papai, me incentivando pular. Eu estava com medo. Mas, com você dentro da piscina falando que eu podia pular, pulei, e mamãe tirou a foto bem na hora que ... Luan deu uma paradinha e ficou olhando para o pai como se tivesse descoberto algo muito importante.
-Que o que , Luan? Perguntou o pai.
-Que exercitei a minha confiança em você para viver, finalmente, a coragem de pular. Completou Luan cheio de alegria.
-Isto que é menino inteligente! Entende tudo rapidinho. Além do papai, em quem mais você precisa confiar para dormir com suas janelas abertas, não ter medo dos bichos que estão lá fora, enfim , em quem você precisa confiar para poder viver. Pois todo ato de vida é arriscado. Até andar é arriscado. Podemos cair. Mas nem por isso paramos de andar. Confiamos que não vamos cair. Tudo que você aprendeu até agora foi em algum momento arriscado. No início teve medo, depois confiou e depois conquistou a coragem. Foi assim com seus primeiros passos sozinho, com a bicicleta, com a piscina, com os patins, com a praia, com a escola, enfim, com tudo. E vai ser assim também com a noite. Então, me diga. Em quem mais além do papai e da mamãe você precisa confiar?
-Preciso confiar na vovó, no vovô, nas minhas tias, na minha professora e... Luan deu uma outra paradinha olhando com uma carinha de  safado para o pai.
-Voce se esqueceu do mais importante. É ele quem sempre protegeu você e é ele quem sempre vai protege-lo. Emendou o pai.
-Não esqueci não, papai! Preciso confiar mais no meu anjo da guarda, pois ele sempre esteve do meu lado e não vai deixar nenhum bicho entrar aqui. Pode deixar a janela aberta papai! Vou começar a exercitar a minha confiança e com este exercício conquistar a minha coragem. Exclamou Luan irradiando alegria.
Neste momento, todas as estrelinhas que estavam apagadas no céu se ascenderam novamente. Uma delas se ascendeu mais forte do que todas elas. Que estrela maravilhosa! Ela era a luz do anjo da guarda de Luan. A luz desta estrela refletia na janela como uma sentinela protegendo aquele quarto de toda e qualquer coisa que pudesse perturbar a tranquilidade do garoto.  A lua se irradiou de alegria também. Ficou ainda mais cheia de luz. Olhou para os olhos da amiga noite e viu algumas lágrimas escorrendo dos mesmos como se fosse um riacho de águas cristalinas. Mas, agora a tristeza já não estava mais ali. A noite chorava de alegria. Quando a emoção é muito grande, a gente chora de felicidade. E as lágrimas de felicidade da noite caíram sobre todas as plantinhas regando-as com alegria. A brisa da noite dava risadas tão altas formando um barulho engraçado de se ouvir. Agora a noite tinha certeza que era também amada pelas crianças. Entendia a importância do medo que ela causava para exercitar a coragem que todos nós precisamos desenvolver. De posse desta certeza e de muita alegria, a noite foi se transformando e o dia foi chegando devagarinho. Este alvorecer foi diferente de todos. O dia despertou feliz, pois percebeu a felicidade nos olhos da noite. E aquele dia foi muito especial. O sol brilhava mais forte, as lágrimas de felicidade que a noite banhou sobre as folhinhas das plantas deu a elas um brilho muito especial e as deixaram mais viçosas. Os passarinhos cantavam mais alto. As crianças fizeram muita  algazarra naquele dia e os adultos o reservaram para passear.  O dia acordou e a noite foi dormir feliz. O tic tac do relógio anunciava a passagem do tempo para que ao entardecer a noite pudesse acordar novamente e contar para o dia esta linda história que você acabou de ouvir. Com uma história tão feliz, o dia poderia dormir feliz e sonhar um sonho bem lindo para construir uma realidade bem gostosa de ser vivida na sua próxima jornada de trabalho.
Noite e dia; dia e noite – uma dupla inseparável que todos nós precisamos com sabedoria saber viver. Luan aprendeu e ensinou isto para seus filhos, netos e para todas as crianças que manifestavam em algum momento o medo da noite. Luan se tornou um escritor. No final de sua história sobre a noite e sobre o dia ele sempre dizia: Quem não supera o medo da noite, não vive sem medo de dia. E quem com medo vive; espanta  a alegria.