segunda-feira, 22 de julho de 2013

O SONHO DA SEMENTINHA

Dedico esta história à todos aqueles que se posicionam com otimismo, determinação e confiança, mesmo quando as circunstâncias se tornam difíceis e, até mesmo, insuportáveis


O Sonho da Sementinha


         Lá estava ela, dentro de um túnel escuro, sem saber ao certo quem era. Carregava consigo o dom de ser uma flor, mas não conseguia se afirmar como tal. Contida em um sonho que jamais se desabrochava pôs-se a chorar sendo repreendida por dona minhoca que passando por ali a censurou com aspereza:
— Que coisa incômoda é esta a tirar a tranqüilidade do nosso lar?
                                     A doce e suposta flor querendo se desculpar e desabafar sua dor sussurrou baixinho no ouvido de dona minhoca:
— Desculpe-me, eu não queria tirar-lhe o sossego. Sou apenas uma linda flor que se sente acuada e presa.
             Dona minhoca deu uma estridente gargalhada e pontuou com ironia:
— Vê se te enxerga! Será que além de incômoda és cega também? Você não passa de uma coisa qualquer. Flores não vivem aqui, vivem em jardins. Você não tem a forma, o aroma e a beleza de uma flor.
              A sementinha indignada com a descortesia da minhoca perguntou:
— Como posso me enxergar neste mundo tão escuro e apertado? Não há espelhos por aqui.
— Eu posso ser o seu espelho, basta que você acredite naquilo que eu lhe disser. Neste mundo tão escuro é difícil a gente se perceber. Precisamos do outro para nos dizer quem somos.
— Mas, você me disse que sou uma coisa qualquer e eu não me sinto assim. Sei que sou uma flor ou carrego no mínimo o dom de sê-la.
— Se você quer acreditar na sua fantasia vai acabar maluca um dia. Repreendeu a minhoca abanando a cabeça em sinal de reprovação saindo logo em seguida sem dar muita atenção àquela coisinha que se julgava uma flor.
                 A sementinha confusa permaneceu ali, quietinha, se questionando:
— Será que sou maluca? Será que não é flor o que vejo e sinto dentro de mim?
                 Perdida em seus pensamentos foi desperta por uma formiga que começou a tocá-la de uma forma diferente. Sem saber das intenções da mesma, protestou em voz alta:
— Hei, o que você está fazendo comigo? Para onde está me levando? Largue-me! A formiga incomodada com tal protesto ordenou com firmeza e sem educação:
— Cale a boca! De hoje em diante você será o meu alimento. Espero que preste pelo menos para isto.
— Mas eu não sou alimento de ninguém. Eu sou uma flor! Solte-me, por favor!
                 A formiga não deu a mínima e continuou sua caminhada carregando-a nas costas. Apertada e presa como sempre, só que desta vez sob as garras da formiga, foi tomada de um medo intenso fechando os olhos, tentando negar esta nova condição de aprisionamento que a formiga lhe impusera. E assim foi levada durante muito tempo a algum lugar que nem mesmo sabia onde. Repentinamente, sem saber como, sentiu um certo alívio. Resolveu abrir os olhos e se deparou com uma grande surpresa. Um mundo inédito e luminoso se descortinou à sua frente. Mesmo querendo manter seus olhos abertos, a claridade lhe incomodava e involuntariamente os fechavam. Numa tentativa de se adaptar à nova situação, vivendo o incômodo e o fascínio em concomitância, perguntou, ansiosamente, à formiga:
— Que lugar é este?
                Sem querer perder seu tempo com explicações, a formiga continuou a sua caminhada sem dar nenhuma resposta à sementinha. No entanto, foi vencida pela insistência daquela florzinha contida numa semente que lhe perguntava repetidamente:
— Por favor, me diga que lugar é este?
— Você precisa me deixar trabalhar sossegada! Repreendeu a formiga.
— E você precisa me responder que lugar é este! Insistiu a sementinha.
— Isto é um jardim deserto e abandonado. Respondeu, finalmente, a formiga impacientemente.
— Talvez aqui seja o meu lugar. Sou uma flor e preciso de um jardim. Pode me deixar aqui, por favor?
— Você quer ficar num lugar que nem mesmo existe? Ironizou a formiga.
— Como assim? Como pode existir um lugar que não existe? Se ele está aqui é porque existe. Ponderou a sementinha.
— Jardim deserto e abandonado é simplesmente um lugar que não existe para ninguém. Completou a formiga.
               Neste momento, a sementinha foi tomada de grande angústia. Aquelas palavras tocaram no seu mais íntimo ser. Identificou-se com aquele jardim, pois era também uma flor que não existia para ninguém. Precisava tanto de um jardim e ele estava ali, deserto. Talvez aquele jardim também precisasse de uma flor para viver o seu mais nobre sonho, e ela, florzinha ainda contida, estava bem ali, assim como ele, abandonada e deserta. Era necessário que um começasse a existir para o outro fazendo desabrochar o sonho contido. Desesperada suplicou à formiga:
— Me deixe aqui para que eu possa me exercer neste jardim!
               A formiga não dava a mínima e continuava seu trabalho de carregar o seu precioso alimento. Este era um dos trabalhos mais importantes na comunidade das formigas. Quanto mais a sementinha se debatia em súplicas, mas apertada ia ficando nas garras daquela formiga ensurdecida para suas lamentações. Repleta de inquietação começou a repetir incessantemente a mesma frase numa tentativa de vencer a formiga pelo cansaço:
— Você nunca pára para me ouvir. Para que tanta pressa?
               Vencida pela insistência, a formiga respondeu irritada:
— Como você é chata! Não vê que não posso parar. A minha vida é trabalhar e nada mais. Não tenho tempo para bate papos.
— Poxa, viver só de trabalho deve ser muito ruim. Eu sonho com uma vida melhor que não se limite apenas a uma coisa só.
— Pois saiba que o meu trabalho é a minha vida e é ele que transformará você no meu alimento. Sendo assim, você não terá tempo para viver os seus sonhos. Se aquiete e não perca tempo com eles.
— Sonhar não é perda de tempo. Sonhar é o tempo e o espaço que abriga uma vida ainda melhor. Ressaltou a sementinha com sabedoria.
               A formiga foi ficando curiosa com aquele jeito esquisito da semente  de pensar sobre a vida. Sem perceber, foi estendendo o assunto numa tentativa de desvendar a curiosidade acerca de um mundo totalmente desconhecido vivenciado por outro ser.
— Só o trabalho tem o poder de melhorar a nossa vida. Afirmou a formiga.
— Mas, sem o sonho o trabalho perde o sentido. O trabalho existe para ajudar a realizar os nossos sonhos. Completou a sementinha.
— Nunca sonhei. Não tenho tempo para isto. O meu lema é: “Trabalhar para sobreviver!”.
— Acho que somos muito diferentes. Enquanto você pensa em sobreviver, eu penso em viver plenamente.
— O que é viver plenamente? Perguntou a formiga cheia de curiosidade.
                Aproveitando a curiosidade da formiga e querendo tirar proveito da situação, a sementinha falou com sabedoria:
— Eu não posso dizer-lhe o que vem a ser viver plenamente. Eu posso apenas mostrar-lhe. Para isto você terá que me largar neste jardim que você julga não existir para que o sonho de ser uma flor possa, finalmente, desabrochar inaugurando uma vida plena.
                A formiga querendo se manter no controle e poder expressou, finalmente, o seu autoritarismo:
— Você depende de mim! Se eu leva-la, mato uma flor e um sonho.
— E eu não poderei matar a sua curiosidade. Você passaria o resto da sua vida pensando no que vem a ser uma vida plena. Instigou a sementinha.
— Ah! Eu pensando? Nunca me imaginei assim. Não tenho tempo para pensar. Como já lhe disse, a minha vida é só trabalhar. Daqui a pouco nem me lembro mais que você existe.
— Mas, isto é muito sério! O trabalho roubou suas lembranças? Perguntou a sementinha.
— Para que servem as lembranças?
— Para viver o prazer de recordar um sonho que pôde ser vivido. Assim, aumentamos a nossa fé passando a acreditar ainda mais na possibilidade de viver todos os sonhos que carregamos dentro do nosso ser.
— Pois eu não carrego sonho algum, carrego apenas você nas minhas garras. Vamos parar com esta conversa, pois você está ficando pesada e eu cada vez mais cansada.
— Se você soubesse sonhar se cansaria menos e se cansando menos tudo ao seu redor ficaria mais leve. Falou com ternura a sementinha acuada numa tentativa de estimular na formiga outra forma de ser.
— Como é que o sonho pode descansar alguém?
— Na verdade, não somos apenas nós que carregamos um sonho, o sonho também nos carrega. No colo do sonho a gente relaxa e acredita que tudo vai dar certo. Acreditando que tudo vai dar certo, a gente se sente mais segura e forte. Munida de força, tudo fica leve, fácil de levar.
              Sentindo inveja da sabedoria da flor, a formiga tentou desmanchar toda a esperança que brilhava em seu semblante dizendo:
— Eu não deixarei você viver o seu sonho e acabarei de uma vez com esta filosofia barata.
— Eu acredito que posso ser uma flor. A sua amargura jamais apagará a minha esperança. O meu sonho vai arrancar-me de suas garras e carregar-me em seu colo acolhedor.
— Você é muito ingênua. Como isto poderia acontecer? Você está bem presa ao meu desejo  e decidi não libertar você. Falou com escárnio a formiga autoritária.
— Não sei ainda como poderei me libertar de sua prepotência e autoritarismo, pois existem infinitas formas. Sei apenas que será escolhida aquela que melhor se adequar ao meu desenvolvimento.
              O cansaço foi tomando conta da formiga. Exausta tentou impor limites àquele diálogo que parecia fragiliza-la:
— Cale a boca agora mesmo! Cada vez que você intensifica seus sonhos, você fica mais pesada. Tenho muito que caminhar e está ficando cada vez mais difícil carrega-la.
— Eu não vou me calar e você não irá conseguir me carregar, pois meus sonhos são leves para mim, no entanto, pesados demais para quem não consegue construir os seus.
— O meu trabalho é a minha única construção. Falou a formiga com moralismo.
— O trabalho dignifica o ser, mas, cuidado com ele, pois além de libertar tem também o poder de aprisionar e matar.
— Pare com esta sua tagarelice! Você já está me matando de cansaço com este seu discurso tolo.
— Não sou eu que estou lhe matando de cansaço, mas esta sua forma mecânica de trabalhar. Por que você não pára e descansa um pouco?
               Neste instante, a formiga olhou para o céu e percebeu que algumas nuvens negras anunciavam o presságio de uma tempestade. Tentou apressar ainda mais o passo e foi novamente interrompida pela sementinha:
— Você não vai agüentar. Relaxe!
— Não posso perder tempo. Tenho muito que fazer.
— Você não estará perdendo tempo, pelo contrário, estará ganhando tempo de relaxamento e descanso. Relaxar é um trabalho de renovação.
— Este tipo de trabalho não me interessa. Desprezou a formiga, os conselhos da flor.
               Imersa em sua teimosia e rigidez, a formiga continuou caminhando e apressando cada vez mais o seu passo. À medida que andava foi, gradativamente, se tornando impossível carregar uma semente que parecia inicialmente tão leve. Sem entender o que estava acontecendo, repentinamente foi obrigada a parar, pois o seu corpo foi perdendo os movimentos e mal podia respirar. Desabou-se sobre o chão, mas continuou apegada à semente mantendo-a agarrada às suas garras.
— Você não irá me vencer! Eu não te solto por nada neste mundo. Mesmo que eu morra, continuará atrelada a mim. Finalizou a formiga irrompendo-se num sono profundo semelhante à morte.
        Vencida pelo sono, sem a consciência de estar viva ou morta, a formiga sonhou pela primeira vez. Sonhou com a chuva caindo e penetrando pelos poros de uma terra seca e sedenta de água. Viu o sorriso da terra em cada gole de água que a chuva fartamente lhe oferecia matando a sua sede e deixando-a macia e fofinha. Fertilizada pela umidade, viu aquela terra abraçando cada semente presente em seu seio. Assistiu a maravilhosa transformação das sementes. Presenciou o nascimento de um belo jardim. Emocionou-se pela primeira vez! Nunca vira espetáculo mais belo e emocionante. Conquistou a benção de enxergar e sentir plenamente. No entanto, o júbilo da transformação só não acontecia para uma semente presa nas garras de um ser horrível que inerte a sufocava em suas garras. Aquele ser transformou o seu sonho num pesadelo. Queria liquidá-lo, mas não sabia como. Incomodada, não se satisfazia em ser apenas uma espectadora de seu sonho, precisava entrar dentro dele e salvar a semente. Mas não tinha como entrar no sonho. Naquele momento fora lhe concedido apenas o direito de assisti-lo. Sem poder viver ativamente aquele sonho, sentiu-se impotente e tristonha. Impotente para agir, identificou-se com a semente aprisionada. Identificando-se foi desenvolvendo uma empatia muito grande dentro de si.
        De repente surgiu uma esperança.  Viu uma formiga trafegando cabisbaixa pelo cenário onírico carregando algo com um apego desenfreado. Pensou que talvez ela pudesse salvar aquela semente. Tentou influencia-la de todas as formas, mas ela parecia não ter ouvidos e nem mesmo olhos, pois não percebia nada ao seu redor estando totalmente presa em si mesma. Teve raiva e pena dela, mas nada podia fazer. Podia apenas assistir a tragédia da mesma por não perceber as coisas belas. A impotência fazia um desejo ardente de mudança ir crescendo dentro de si. Foi então que começou a perceber que o seu desejo semeava a semente de um sonho. Passou assim a ter muitos sonhos. Viveu por um bom tempo o prazer de sonhar, precisava agora acordar para realizar tudo que havia construído em sonho. Quem haveria de acordá-la?
         Acordou. Acordou como todos nós acordamos depois de uma noite bem dormida.  Acordou relaxada e descansada. Sem saber quanto tempo dormira, foi despertada por uma voz suave que lhe ordenou com doçura:
— Levante, acho que já dormiu o suficiente.
— Quem é você? Perguntou a formiga.
— Eu sou a transformação de um sonho. Respondeu uma bela flor que acolhia a formiga sobre suas pétalas protegendo-a.
— Você quer me dizer com isto que és uma realidade?
— Isto mesmo, sou a flor que realizou o sonho de uma sementinha.
— Você é uma bela flor! Afirmou a formiga admirando-a.
— Fico feliz de vê-la conseguindo me enxergar assim.
— Mas, por que? Perguntou a formiga confusa.
— Por causa de uma longa história. Respondeu a flor olhando no fundo dos olhos da formiga.
— Que história?
— Você quer mesmo saber?
— Se você quiser me contar...
— É uma longa história. Você teria tempo para ouvi-la? Perguntou a flor querendo checar a disponibilidade da formiga.
— Não sei como, mas aprendi de alguma forma que o tempo é a gente que faz. Sendo assim, agora sou toda ouvidos.
              A bela flor deu um sorriso exalando um perfume relaxante e tranquilizador. Com muita ternura contou para a formiga uma história mais ou menos assim:
— Era uma vez uma sementinha que pensava ser uma formiga maldosa. Com medo de desabrochar, ela não se permitia sonhar, pois sabia que os sonhos fazem desabrochar o nosso mais íntimo ser. Para se proteger dos sonhos criou uma armadura que a deixava dura muito dura, difícil de rachar. O sentimento mais forte que carregava dentro de si era a inveja, pois o que mais temia era assistir a realização dos sonhos de qualquer ser que encontrasse em seu caminho. Sendo assim, tentava destruir todas as sementes que carregavam um sonho aprisionando-as em suas garras. Fazia disto o seu trabalho e alimentava-se da tristeza do outro. Não percebia que quanto mais se alimentava de tristezas, mais triste e amarga ficava. Um dia, entretanto, encontrou e tentou aprisionar uma semente que acreditava ser uma flor. Ela acreditava tanto, que ninguém conseguia abalar a sua fé. Ao contrário da formiga maldosa, ela se alimentava apenas de esperança, otimismo e amor. Sabia que nenhuma garra malvada seria capaz de carregar por muito tempo estes sentimentos. E foi o que aconteceu. A formiga sucumbiu-se. No entanto, mesmo vencida não largava a semente. Quando tudo parecia estar perdido, a benção divina caiu sobre a semente boa e sobre a semente má em forma de chuva. A água abençoada limpou os maus e fertilizou os bons sentimentos. À medida que este milagre acontecia, as garras da semente que se julgava uma formiga má foram relaxando e um lindo broto nasceu da boa semente que nunca duvidou ser uma flor. Este broto foi crescendo lentamente e se transformando numa linda flor que alimentava com seu néctar e ninava todos os dias uma sementinha que em forma de formiga precisava sonhar um sonho bom e, finalmente, acordar do pesadelo de não conseguir sonhar ser ela mesma.



                                                                                 

                                                          



sexta-feira, 19 de julho de 2013

JUCA E JOCA

Dedico esta história aos oprimidos e opressores


Juca e Joca


Juca era um gato mimado e dono do pedaço. Ditava as regras até para os seus donos; imagine para os ratos que moravam por ali. Joca, um rato frustrado, vivia reclamando dos desmandos de Juca, nutrindo-se de muito ódio pelo mesmo. Revirando os porões da antiga casa onde residia, encontrou uma lâmpada empoeirada e misteriosa. Inicialmente, fitou-a fixamente sem entender do que se tratava. A poeira e os efeitos do tempo cobriam todo o objeto deixando-o irreconhecível. Numa tentativa de explora-lo, esfregou seu rabo sobre a lâmpada com o intuito de retirar a poeira que pairava sobre a mesma. Repentinamente, um gênio bem diferente de todos que sua imaginação possuía apareceu à sua frente. Era meio rato e meio gato.
−Às suas ordens, amo! Exclamou o gênio
Assustado, Joca saiu em disparada e se escondeu debaixo de alguns caixotes empilhados no centro do porão.
−O que fazes aí, meu amo? Estou aqui para atender seus pedidos. – falou o gênio girando em torno dos caixotes numa tentativa de encontrar um ângulo onde pudesse ver Joca.
−Você quer me devorar, seu gato com cara de rato. Se pensas que vou lhe dar este gostinho, está muito enganado.
−Eu não sou gato, sou um gênio! Estou aqui para realizar três pedidos. Se você não deseja nada,  retornarei para dentro de minha morada; aquela lâmpada mágica que você esfregou.
−Não era minha intenção tira-lo de lá. Só estava tentando tirar a densa poeira que a cobria. Justificou Joca tremendo de medo.
−Você está com medo de mim? O que lhe fiz para ter este medo todo? Saia daí, vamos conversar. Eu não tenho intenção de fazer mal algum para você. Se eu pareço com algum gato que teme, posso mudar a minha aparência. Basta você desejar isto. Posso me transformar em tudo que desejar.
−Como assim?
−Como lhe disse, sou um gênio e estou aqui para satisfazer três desejos. O seu primeiro pedido pode ser, por exemplo, mudar a minha aparência. Posso ficar com a aparência que você desejar.
−E, se eu sair daqui debaixo e você me devorar? Perguntou com a astúcia de um rato experiente – Já caí nesta armadilha! Juca, o gato malvado desta casa, já me fez a mesma proposta que você está me fazendo agora.
−Faça o seu pedido daí mesmo e verá que não estou mentindo. Sugeriu o gênio.
−Se é assim... Deixe-me ver... Já sei! Quero que fique com a minha cara. Exatamente como sou.
−Assim seja!
 Através de uma grande explosão de energia, o gênio se transformou num rato idêntico a Joca. O rato, perplexo, ficou ainda mais assustado. Mal podia acreditar naquilo que estava presenciando. Certificou-se que o gênio falara a verdade. Não ficou muito satisfeito com a sua imagem refletida. Achou-se minúsculo e fraco. Teve vergonha e ao mesmo tempo raiva de si mesmo. Não queria ser assim. Queria ser forte e poderoso. Sem temer a sua imagem saiu debaixo dos caixotes. Sem suportar olhar para si mesmo tratou de fazer o seu segundo pedido rapidamente.
−Já sei o que desejo pedir agora. Sempre tive ódio de Juca. Aquele gato ingrato vai se ver comigo! Quero me transformar num gato igual a ele. – dando várias risadas, continuou. – Ele não vai acreditar! Quero só ver a cara dele quando se deparar comigo. Acho que vai ter um infarto. Mas...
−O que houve amo? Por que me olhas deste jeito? Perguntou o gênio confuso sem entender a expressão de desprezo que Joca, repentinamente, passou a denotar por ele.
−Com este corpo, você  terá o poder de realizar mais alguma coisa?
−O nosso poder não vem do nosso corpo, mas, de nossa alma. Tenho seu corpo, mas continuo com a alma de um gênio.
−Então vamos lá! Transforme-me já em Juca. Ordenou com um ar de autoritarismo que surpreendeu o próprio gênio.
−Tens certeza, amo?
−Você não está aqui para perguntar nada. Apenas pra executar minhas ordens. Rápido!
−Éhh... Tens razão. Assim seja!
 Numa outra grande explosão de luzes faiscantes e coloridas, Joca se transformou em Juca como num passe de mágica. De posse do corpo que sempre temeu, porém agora, exalando destemor e arrogância, olhou para o gênio com os olhos fervilhados de ódio. Mostrando seus dentes caninos bem afiados, rosnou zangado:
−Agora você me paga! Dando um salto sobre o gênio, devorou-o de uma só vez. −Ratos inúteis! Berrou com escárnio.
Numa questão de minutos, tudo mudou! Joca parecera esquecer completamente de quem ele era. Ou será o contrário? Passados alguns minutos, sentiu um leve mal estar, lamentando-se:
−Que carne indigesta! Estes ratos não servem para nada mesmo.
Massageando sua pança foi surpreendido por Juca que passava por ali distraído cantarolando. Deu um salto sobre o mesmo, bloqueando o caminho e ameaçou:
−E aí, ta com medo?
−Medo de que? Adoro espelho! Gabou-se todo olhando para Joca como se estivesse olhando para si mesmo.
−Eu não sou você! Eu sou eu. Berrou sem paciência.
−Com certeza! Eu sou eu. Aliás, eu sempre fui mais eu.
−Não! Você não está entendendo nada. Eu sou o Joca. Afirmou constrangido. Tentando se justificar, continuou.− Na verdade,  eu sou o Joca que se transformou em você.
Juca assustou-se e batendo no próprio rosto várias vezes inquiriu o Joca como se estivesse falando consigo mesmo diante de um espelho:
−Ei! Você está ficando maluco! Alguma crise de consciência? Está se sentindo culpado por desejar devorar aquele inútil?
Foi interrompido por Joca que pronunciou-se cheio de orgulho:
−Enquanto você deseja devora-lo, eu já o devorei a muito tempo. Aliás, carne de péssima qualidade.
Juca deu mais uns tapas em seu rosto e continuou:
−Você está ficando maluco mesmo... Agora pensa que é o tal!  Por mais que eu deseja,  jamais devoraria aquele inútil...Inúti? Na verdade, nem tanto... Ele é até simpático. Chego a sentir falta dele quando some por uns tempos. Ele me distrai bem. É bem esperto. Quisera eu ter a esperteza daquele rato.
−Joca ficou branco, tomado por uma perplexidade aguda perguntou gaguejando:
−Jura? Você tem certeza do que está falando?
−Desde quando não tenho certezas nesta vida. Esta certeza dolorosa,  só admito para você, ou seja, para eu mesmo.
Mas, eu não sou você. Eu sou ele! Gritou Joca, apavorado.
Não precisa querer se transformar agora num rato só porque você o admira. Depois, este segredo é apenas nosso. Nunca ninguém ficará sabendo que você acha a vida dele mais interessante do que a sua.
−Mas, porque a vida dele é mais interessante?
−Mais adrenalina. Mais emoção! Não agüento mais este tédio. Durmo e como o dia todo. Nem fome eu tenho. Como por comer, durmo por dormir... Não há nada o que fazer. Joca, por outro lado, tem objetivos. Foge de mim, sente a adrenalina no sangue. Tem que caçar seu alimento, fugir dos perigos, enfim, tem o que fazer o dia inteiro.
−Eu não posso acreditar no que estou ouvindo! Choramingou.
−Por que não? Se eu tivesse a oportunidade de fazer um pedido... Daqueles que só um gênio pode atender. Eu pediria uma vida desta para mim.
−Oh, não! Não pode ser! Como eu não pude enxergar isto antes?
−Vivemos num mundo de ilusões. Passei a vida inteira iludido. Iludi a muitos também. Fiz com que eles acreditassem no meu poder para que pudessem duvidar do poder deles. Joca foi um de minhas vítimas. Pelo menos, nesse ponto sempre fui mais esperto.
−Seu canalha! Berrou Joca.
−Não precisa ser tão duro assim comigo mesmo. Eu juro que aquele rato vai morrer achando que eu sou mais poderoso e feliz do que ele. Nem que seja na ilusão, serei superior. Pronunciou-se olhando no fundo dos olhos dele.
−Não!  Não vai não. Eu vou agora mesmo contar tudo para ele.
−Você? Dando uma risada bem escandalosa, continuou. Jamais serei traído por ti! Você me odeia e me ama ao mesmo tempo. Sei que não serei traído por ti. Por mim, precisamente...
Joca saiu correndo em disparada, gritando:
−Eu tenho direito a mais um pedido. Gênio!
Juca, confuso, olhou-se e ao mesmo tempo em volta de si mesmo. Deu vários giros em torno do local onde Joca se posicionara, exclamando indignado:
−Oh, o espelho sumiu!
Saiu cantarolando a mesma cantiga e se sentindo mais em paz consigo mesmo. Aquele desabafo lhe fizera muito bem. Joca, por outro lado,  procurou o gênio por muitos anos a fio. Já velho e sem esperanças, olhando-se refletido num espelho empoeirado num dos cantos do porão, admitiu para si mesmo:
−Maldita hora que você quis se vingar daquele gato!
O espelho refletindo continuou:
−Ou de si mesmo?
−É nisto que dá odiar a quem a ilusão nos faz pensar ser melhor do que a gente mesmo.
O espelho refletindo pautou:
−Ou deixar de amar a si mesmo...
−Admito que me faltou amor. Concordou Joca com uma expressão desolada e cansada.
−Sem amor, faltou-lhe a capacidade de enxergar a beleza em si mesmo. Esclareceu o espelho.
−Só depois que a gente se perde em coisas que nada tem haver com aquilo que a nossa alma anseia, é que o nosso verdadeiro valor aparece.
−Ou fica mais claro – Conjecturou o espelho.
−Que saudade de mim! Como fui tolo! Desabafou-se Joca com os olhos lacrimejando exalando arrependimento.
−Mataste a sua genialidade, mas pode ressuscitá-la. Sugeriu o espelho acendendo uma centelha de esperança em Joca.
−Como? Perguntou Joca,  cheio de curiosidade.
−Desapegando-se daquilo que não lhe pertence.
−Deste corpo? Perguntou vacilante.
−Certamente! Respondeu o espelho com convicção e firmeza.
−Como posso me livrar deste corpo? Quando matei o gênio, matei a possibilidade de realizar o meu terceiro pedido.
−Qual seria o seu terceiro pedido? Perguntou o espelho.
−Livrar-me deste corpo, é claro!
−Será? Será que matar o gênio não foi uma forma de livrar-se para sempre do rato que você era e nunca valorizou? Questionou o espelho a pseudo justificativa que Joca possuía para manter-se naquele corpo.
−Você está enganado! Não curto nem um pouco esta condição de gato. Preferiria, mil vezes, voltar a ser um rato.
−Foi necessário se tornar um gato para tomar consciência que sê-lo não é também garantia de felicidade e poder. Com esta experiência, você pôde conhecer um lado dentro de si que você negava, mas desejava; seu lado gato. Agora, pode resgatar o lado que seu gato interno sempre rejeitou. O Joca ainda vive dentro de você! Advertiu o espelho.
−Mas, para isto eu preciso do gênio. Justificou mais uma vez.
−Engano seu! Você precisa apenas se desfazer deste presente que o gênio lhe deu. Não somos obrigados a aceitar ou manter conosco um presente que nos incomoda. O gênio apenas lhe presenteou com um desejo que você possuía dentro de ti. Você pode se desfazer deste presente no momento que desejar.
Joca se surpreendeu com as palavras do espelho. Consternado, ressaltou assustado:
−Como é que pude não me dar conta disto?
−Será que ainda teme a sua condição de rato? Se temer, ainda fugirás muito de si mesmo. Indagou, finalmente, o espelho.
Joca passou o resto de seus dias refletindo sobre esta questão sem, no entanto, se desfazer do presente que o gênio lhe dera. Quando indagado sobre esta situação, dizia:
−Estou pensando no assunto!
Pensar, infinitamente, no mesmo assunto foi a melhor maneira encontrada para não ter que agir, pois de oprimido a opressor se passa, facilmente, num passe de mágica; no entanto, de opressor a oprimido, só num passe de muita consciência e coragem para lutar e transcender-se.