sábado, 31 de maio de 2014

A BRIGA ENTRE OS DEUSES

Dedico esta história  ao nosso espaço crepuscular  


Na nossa cultura, geralmente cultuamos um só Deus. Há, por outro lado, outras culturas que veneram vários Deuses ao mesmo tempo. Independente de qualquer coisa, a minha imaginação divina, cria histórias que possam tornar mais compreensível o que é, deveras, complicado de entender. Sendo assim, pouco importa se Deus vai ser uno ou múltiplo. O importante é que ele seja. Começo a minha história com um Deus que resolveu parir vários filhos, portanto, Deuses também, pois filho de Deus, Deus é.  E é a história destes filhos que vou lhes contar agora.
O grande Deus teve muitos filhos, alguns deles combinavam muito bem, outros nem tanto, como por exemplo, o Deus Dia e o Deus Noite. Houve uma época em que o Dia e a Noite não se toleravam. O Dia só aceitava o seu desejo de ser luz e a Noite só aceitava o seu próprio desejo de ser escuridão. O Deus Dia  ficava muito chateado quando o Deus  Noite chegava e impunha a sua presença. Achava que a chegada da Noite lhe roubava o seu brilho, a sua luz e a sua importância de SER. Temia perder o seu reinado e que a Noite pudesse passar a governar para sempre a vida no planeta onde foram criados. Por outro lado, a Noite tinha a mesma chateação. Não tolerava nem um pingo de luz para não se sentir subtraída e exterminada pelo Dia. Mas, independente da chateação destes Deuses, o Dia e a Noite sempre morriam e deixavam de existir em algum momento e em algum lugar, como também, renasciam e  passavam a existir em algum momento e em algum lugar. Nestes tempos remotos, Dia e Noite existiam totalmente independentes um do outro; cada um fazendo o seu papel e rejeitando o papel do outro. Cada um se achando mais importante e reverenciando o seu desejo exclusivo de Ser. Dia e Noite se rejeitavam completamente. Não havia entre ambos nenhum espaço de interação. O dia se apagava e a noite aparecia como num passe de mágica, assim como o acender e o apagar de uma lâmpada. Ambos sabiam da existência do outro, só não sabiam da importância deste outro, de certa forma, desconhecido. A ameaça que cada um representava era o único conhecimento que possuíam um do outro.  Conheciam, apenas, uma operação: Deixo de ser quando o outro passa a ser. Deixo de existir quando o outro existe. Ser ou Não Ser; Existir ou Não Existir, passou a ser uma questão complicada na vida do Deus Dia e do Deus Noite. Como eram Deuses, eram, com certeza, muito importantes e poderosos. Jamais seriam extintos. Mas, mesmo sabendo que eram para sempre Dia e Noite e que existiriam para sempre como Dia e Noite,  sentiam que, mesmo existindo,  deixavam de Ser e de Existir em algum momento. Que operação complicada! O Deus, pai do Dia e da Noite, percebendo a complexidade deste problema e a intolerância que reinava entre Dia e Noite, resolveu intervir. Criou um momento onde pudesse haver uma interação e uma troca mútua entre o Dia e a Noite; um momento onde eles pudessem compartilhar as suas diferenças. A lâmpada não seria acesa e apagada num passe de mágica. Haveria um processo de transformação onde um Deus pudesse sentir o outro completamente. Foi assim que criou o crepúsculo matinal , um momento onde o dia não é tão dia assim, e, o crepúsculo vespertino, um momento onde a noite não é tão noite assim. O dia experimenta em seu corpo a energia da noite e vice versa. Dia e noite se interagem, sentindo a energia provida por cada um e a energia provida entre ambos neste acasalamento crepuscular.
Foi neste momento de interação mútua, que o Deus Dia e o Deus Noite compreenderam que são ambos, um só Deus, partes de um todo; partes que se complementam mutuamente. Foi neste momento mágico, de tolerância mútua, que nasceu a compreensão e uma grande sabedoria. “Ser” ou “Não Ser”; “Existir” ou “Não Existir” transformou-se num passe de mágica em “Ser” e “Não Ser”; “Existir” e “Não Existir”. Nesta dialética de poder ser as duas coisas, renasceu , finalmente, a verdadeira essência divina em ambos os Deuses. Dotados deste novo saber, Dia e Noite  não precisaram nunca mais se tolerar. Brotou algo maior do que a tolerância entre eles. Copulando suas energias no crepúsculo, gestaram e pariram o infinito. Mais do que um dia ou uma noite, o “Para Sempre” passou a ser a maior prova de amor entre os Deuses da Noite e do Dia. Deste amor entre eles, nasceu o tempo. E o tempo não para... Segue sendo Dia, segue sendo Noite. E como já disse anteriormente... Filho de Deus, Deus é.  Deus Tempo, filho do Deus Dia com o Deus Noite há também de existir para sempre mesmo que o tempo mude. 

domingo, 11 de maio de 2014

A IRA DE NETUNO



Netuno, Deus dos mares, sempre teve como um dos seus passatempos favoritos brincar com as marés. Confeccionar ondas e vê-las arrebentar nas areias das praias sempre foi para ele uma distração extremamente relaxante. Quando Netuno se aborrecia, o mundo inteiro podia assistir sua ira concatenando com a fúria das marés. Assim, o humor do mesmo podia ser medido pela força destas.
Netuno sempre gostou de manter a sua casa limpa e nos últimos tempos notou que uma criatura chamada homem, a qual deu imensa liberdade para usufruir de sua hospitalidade, começou a abusar de sua boa vontade. Assim, resolveu fazer uma inspeção em todo seu território com claras intenções de colocar limites aos homens de má vontade. Chegou a engolir algumas embarcações que agrediam criaturas marinhas as quais nutria imenso amor, e assustar outras que ousavam desafia-lo acreditando possuir mais força do que ele. Mas, o episódio que retrata a sua ira mais assustadora é o que vou lhes contar agora. Estando já insatisfeito com a raça humana que, repentinamente, começou a se julgar um Deus mais poderoso do que todos os deuses do universo, Netuno achou por bem ser mais severo. A inspeção de seu território começou bem longe, onde poucos homens ousavam chegar. Nestes locais, intocados pelo homem, tudo parecia estar em ordem. Águas límpidas e cristalinas, seres marinhos vivendo em profunda harmonia e equilíbrio dava a Netuno uma tranqüilidade que se refletia nitidamente numa maré  serena e relaxante.
À medida que Netuno se aproximava dos locais onde o homem ousou invadir, os desequilíbrios começavam a aparecer. Por mais sereno que tentasse permanecer, uma onda de insatisfação começou crescer dentro daquele poderoso Deus. A serenidade começou a ceder lugar a certa turbulência. Seu nervosismo aumentou ainda mais ao assistir a pesca indiscriminada de baleias que morriam para alimentar a ambição do homem. Tentando protegê-las, agitou as marés com claras intenções de assustar os predadores das embarcações pesqueiras, fazendo-os retornar à terra firme, lugar onde se sentiam mais seguros.
—Vocês não possuem direito de agredir e matar seres de um mundo que não lhes pertence. Raça de ambiciosos! — Urrou Netuno arrastando todos os barcos para a costa, sem, no entanto, destruí-los.
Continuando sua vistoria pelos mares, sua cólera acentuou-se ao sentir o seu corpo sendo contaminado pelo derramamento de óleo de um grande navio petrolífero.
—Vocês estão vomitando em mim, raça de nojentos!
Cada vez mais comprometido com seu lar e com a sua vida, Netuno continuava a sua caminhada tomado por uma profunda obstinação. A cada passo, uma surpresa desagradável e, consequentemente, uma nova insatisfação que  fazia crescer a onda de irritação dentro dele. Deparou-se com lixos boiando sobre águas que antes cristalinas abrigavam as mais lindas criaturas. Restos de garrafas, plásticos, enfim,  uma série de materiais sintéticos eram os únicos moradores de algumas regiões que Netuno havia, no passado, programado para ser um verdadeiro paraíso. Perplexo, a sua onda de irritação foi lentamente se transformando numa perigosa onda de raiva capaz de devassar tudo que desejasse. Aquele monte de lixo transformou seu paraíso num reino de trevas habitado pela solidão, pela sujeira e pela escuridão.
—Seus porcalhões! Vocês querem acabar comigo? Vou mostrar para vocês quem é que acaba com quem!  Esbravejou Netuno dirigindo-se em direção à costa com claras intenções de punir os ingratos seres porcalhões a quem sempre doara tanta abundância.
Com uma fúria cada vez mais pronunciada e com clara intenção de destruir o destruidor, a pequena onda de insatisfação que antes regia o humor de Netuno se transformou  em uma temerosa onda de fúria que se movimentava em direção à terra firme. Temendo os estragos que pudesse fazer, Íris apareceu com claras intenções de equilibrar o humor de Netuno, descendo suavemente de um lindo arco-íris que ligava o céu ao mar.
—Por que estás tão encolerizado? Perguntou a Deusa do Arco-íris.
—Preciso destruir antes de ser destruído. Respondeu o Deus dos mares.
—Quem deseja destruí-lo?
—O homem. Esta criatura a quem doei tanta abundância, transformou-se num megalomaníaco irresponsável, que se julga mais poderoso do que todos os deuses do universo. Darei a eles uma lição para jamais ser esquecida. Isto se restar algum para contar a história...
—Mas, você já fez isto outras vezes, não se lembra?
—Lembro-me perfeitamente! Fiz por motivos menores do que os que estou presenciando agora. Devia ter exterminado a todos, daí eu não teria o trabalho de fazer o serviço mais uma vez.
—Antes de agir, você deveria esfriar um pouco a cabeça. Esta sua onda de ódio está crescendo muito e indo rápido demais em direção aos homens. Não dá para desacelerar um pouquinho este seu ritmo para que possamos conversar melhor? Tenho coisas importantes para lhe contar. Do jeito que você está, não conseguirá me ouvir e poderá se arrepender depois. Ponderou Íris.
—Eu me arrependo de ter sido bondoso com eles. Ofereci tudo que tenho para que usufruíssem, no entanto, ao invés de usufruir com equilíbrio, eles estão destruindo, rapidamente, tudo que me diz respeito.  Se eu for mais devagar, com certeza, eles serão mais rápidos do que eu.
—Calma! Os satélites dos homens já constataram a sua fúria e eles estão desesperados esperando por você. Totalmente impotentes para fazer qualquer coisa que possa protegê-los, aguardam apenas a piedade dos deuses. É por isso que vim interceder por eles.
—Você quer defender esta raça de destruidores? Passam uma vida inteira fazendo o mal e no final pedem redenção. É só o que faltava! Ironizou Netuno.
—No meio do joio que você enxerga há muito trigo também. Com esta fúria toda, você não terá como separar um e outro. Punirá inocentes que lutam também para preservar a sua beleza e a sua saúde. Alertou Íris.
—Eu não preciso que ninguém lute por mim! Eles é quem precisam que alguém lute por eles.
—Concordo, plenamente, com você. E, tem mais... Eles estão ficando cada vez mais sozinhos. Os Deuses das matas, dos ares, dos rios, enfim, uma infinidade de Deuses já está assim como você, bem insatisfeitos com a atitude deles. Preciso, entretanto, interceder por aqueles que estão ficando cada vez mais sem defesas e aliados. Há inocentes nesta história. Por favor, me escute! Você está escutando apenas a sua ira. Implorou Íris.
—A minha ira me permite colocar limites a eles. Caso contrário, posso ficar bonzinho novamente e eles abusarem da minha boa vontade.Parece também que eles só aprenderão alguma coisa através do medo e do desespero. Infelizmente, consciência é uma coisa que eles não possuem.
—Tenha, pelo menos, um pouco de empatia. Há muita gente boa nesta história. Você acha justo punir a todos da mesma maneira? Questionou Íris.
—Eu não sei como separar o joio do trigo, como você mesma disse. Justificou-se Netuno.
—Pois deveria aprender! Você só tem a ganhar. Assim como você, há muitos humanos que não sabem ainda fazer as coisas de uma outra forma. Por acaso, você gostaria de ser punido por não saber separar o joio do trigo? Desafiou Íris.
Netuno parou para refletir um pouco. Neste momento de reflexão a força de sua fúria diminuiu um pouco, mas o desejo de punir continuava intacto dentro de seu ser. Sentindo que o amigo serenou  o seu humor, Íris continuou:
—Não seria mais interessante fortalecer o trigo ao invés de destruir o joio? O trigo poderá ser seu grande aliado. Aliás, é tudo que desejam.
—Eu não sei se poderei aceitar a ignorância deste povo. Eles deveriam ser mais conscientes.
—Aceite-os como são e não da maneira como você gostaria que eles fossem. Faça isto administrando a sua ansiedade. Saiba esperar o desabrochar de uma nova consciência em todos eles. Aja de forma inteligente para despertar a mudança neles e, não de forma impulsiva e precipitada.
—Pois, saiba que sempre esperei uma mudança neles.
—Talvez, por isso, esteja tão frustrado. Livre-se das expectativas e verá a sua frustração diminuir. Quanto mais frustrados ficamos, mais raiva sentimos. Você já conseguiu perceber que está sendo vítima de sua raiva?
—Que absurdo! Estou sendo vítima deles e darei um jeito de destruí-los bem rápido. Para mim, esse povo é um problema sem solução, por isso, o melhor é exterminar a todos assim como aconteceu com os dinossauros. A terra ficaria bem mais protegida, você não acha? Ironizou Netuno.
—Não use a frieza como uma anestesia para  a raiva que você sente agora. Toda revolta ativa no outro o desejo de ferir também. Daí, não acredito que estes meios que você está buscando vá resolver o problema dos seres humanos.
—E, eu lá tô querendo resolver problema de ser humano? Quero resolver o meu problema! Trovejou Netuno.
—Não aja egoisticamente como o seu agressor. Você reclama dele e se comporta exatamente como ele? Não estou te entendendo... Compreendo que você tenha sido vítima de repetidas ocorrências de desrespeito, mas, a realidade é que o ser humano não aprendeu ainda o significado da palavra amor e respeito. Daí, não adianta idealizarmos uma realidade que não existe, impondo a eles uma forma de ser que eles ainda não são capazes de vivenciar. Quem melhor do que os Deuses para servirem de exemplo e ajudá-los a curarem esta doença que atormenta a humanidade?
—Eu não posso deixar que a doença deles adoeça o território que cabe a mim proteger. Protestou Netuno.
—Nisto você tem razão! No entanto, existe uma parte saudável do ser humano que vale à pena nós nos relacionarmos com ela. Esta parte precisa ser alimentada. Ela é a salvação do nosso planeta.
—E o que eu faço com esta ira que me atormenta? Você quer que eu faça de conta que ela não existe?
—Absolutamente! Reconheça esta fúria que está dentro de você e transforme-a. Desafiou Íris.
—Transformá-la? Em que ?
—Num instrumento para exercitar a sua tolerância, a sua paciência e a sua capacidade de perdoar.
—Perdoar? Você quer que eu esqueça tudo que eles me fizeram?
—Perdoar não é esquecer, mas abdicar de sua raiva para que você possa seguir em frente com mais serenidade e resolver o problema com menos emoção e mais razão. A sua necessidade de vingar só lhe trará mais raiva e tormento. Esclareceu Íris.
—Não sei se dá para perdoar este estrago todo não...Vou estar bancando o idiota!
—Pelo contrário, você será muito mais forte se admitir  que será um erro punir inocentes, já que além dos humanos, serão extintos uma série de outras espécies que não tem nada haver com esta história. Além do mais, olhe o desespero deles agora! Através de orações compulsivas, estão se desculpando com todos os Deuses. Perceberam a sua fúria e estão desesperados. Aceite a desculpa deles! Você consegue ouvi-los?
—Sim. Me dá um certo prazer assistir o remorso deles. Vou tentar agir com mais prudência. Só vou assustar um pouquinho! Tenho que admitir que esta conversa com você  abrandou minha fúria. Espertinha!.. Acho que seu intento foi alcançado. Volte para o seu lar, prometo que tentarei lembrar-me desta conversa toda vez que me deparar com os estragos causados por esta raça imun...Antes que terminasse, Íris lançou sobre Netuno um olhar reprovador que o fez auto corrigir-se.
—Melhor dizendo...Raça imatura e ignorante!
Íris pareceu ter conseguido convencer Netuno a não destruir totalmente a raça humana. De vez em quando, a gente fica sabendo de alguns rompantes de raiva do mesmo que geram muitos estragos e mortes. Porém, não dá para negar que estes estragos são bem menores do que os que causamos a ele. Assim, eu, particularmente, entendo os tsunamis e maremotos. Nem todos os Deuses são tão tolerantes e perfeitos quanto gostaríamos.
Quando fico olhando para o mar, observo atentamente o humor de Netuno. Admito que não possuo a ousadia dos surfistas ao deslizar em ondas fortes que estouram esbravejando alguma insatisfação do mesmo em dias de maré alta. Não ouso desafia-lo nestes dias, limito-me a observar a sua fúria, certa de que ela poderia ser bem maior. Mas, há também os dias em que me deleito em suas ondas leves que se derramam sobre a praia dando gostosas e borbulhantes risadas como se estivesse rindo de nossa fragilidade e ignorância. Embalada por ondas suaves sinto o quanto o mar ainda nos ama e nos acolhe e lá no fundo fico a pensar:
—Enquanto ele estiver rindo... Bom sinal!