Netuno, Deus dos
mares, sempre teve como um dos seus passatempos favoritos brincar com as marés.
Confeccionar ondas e vê-las arrebentar nas areias das praias sempre foi para
ele uma distração extremamente relaxante. Quando Netuno se aborrecia, o mundo
inteiro podia assistir sua ira concatenando com a fúria das marés. Assim, o
humor do mesmo podia ser medido pela força destas.
Netuno sempre
gostou de manter a sua casa limpa e nos últimos tempos notou que uma criatura
chamada homem, a qual deu imensa liberdade para usufruir de sua hospitalidade,
começou a abusar de sua boa vontade. Assim, resolveu fazer uma inspeção em todo
seu território com claras intenções de colocar limites aos homens de má
vontade. Chegou a engolir algumas embarcações que agrediam criaturas marinhas
as quais nutria imenso amor, e assustar outras que ousavam desafia-lo
acreditando possuir mais força do que ele. Mas, o episódio que retrata a sua
ira mais assustadora é o que vou lhes contar agora. Estando já insatisfeito com
a raça humana que, repentinamente, começou a se julgar um Deus mais poderoso do
que todos os deuses do universo, Netuno achou por bem ser mais severo. A
inspeção de seu território começou bem longe, onde poucos homens ousavam
chegar. Nestes locais, intocados pelo homem, tudo parecia estar em ordem. Águas
límpidas e cristalinas, seres marinhos vivendo em profunda harmonia e
equilíbrio dava a Netuno uma tranqüilidade que se refletia nitidamente numa
maré serena e relaxante.
À medida que Netuno
se aproximava dos locais onde o homem ousou invadir, os desequilíbrios
começavam a aparecer. Por mais sereno que tentasse permanecer, uma onda de
insatisfação começou crescer dentro daquele poderoso Deus. A serenidade começou
a ceder lugar a certa turbulência. Seu nervosismo aumentou ainda mais ao
assistir a pesca indiscriminada de baleias que morriam para alimentar a ambição
do homem. Tentando protegê-las, agitou as marés com claras intenções de
assustar os predadores das embarcações pesqueiras, fazendo-os retornar à terra
firme, lugar onde se sentiam mais seguros.
—Vocês não possuem
direito de agredir e matar seres de um mundo que não lhes pertence. Raça de
ambiciosos! — Urrou Netuno arrastando todos os barcos para a costa, sem, no
entanto, destruí-los.
Continuando sua
vistoria pelos mares, sua cólera acentuou-se ao sentir o seu corpo sendo
contaminado pelo derramamento de óleo de um grande navio petrolífero.
—Vocês estão
vomitando em mim, raça de nojentos!
Cada vez mais
comprometido com seu lar e com a sua vida, Netuno continuava a sua caminhada
tomado por uma profunda obstinação. A cada passo, uma surpresa desagradável e,
consequentemente, uma nova insatisfação que fazia crescer a onda de
irritação dentro dele. Deparou-se com lixos boiando sobre águas que antes
cristalinas abrigavam as mais lindas criaturas. Restos de garrafas, plásticos,
enfim, uma série de materiais sintéticos eram os únicos moradores de
algumas regiões que Netuno havia, no passado, programado para ser um verdadeiro
paraíso. Perplexo, a sua onda de irritação foi lentamente se transformando numa
perigosa onda de raiva capaz de devassar tudo que desejasse. Aquele monte de
lixo transformou seu paraíso num reino de trevas habitado pela solidão, pela
sujeira e pela escuridão.
—Seus porcalhões!
Vocês querem acabar comigo? Vou mostrar para vocês quem é que acaba com
quem! Esbravejou Netuno dirigindo-se em direção à costa com claras
intenções de punir os ingratos seres porcalhões a quem sempre doara tanta
abundância.
Com uma fúria cada
vez mais pronunciada e com clara intenção de destruir o destruidor, a pequena
onda de insatisfação que antes regia o humor de Netuno se transformou em
uma temerosa onda de fúria que se movimentava em direção à terra firme. Temendo
os estragos que pudesse fazer, Íris apareceu com claras intenções de equilibrar
o humor de Netuno, descendo suavemente de um lindo arco-íris que ligava o céu
ao mar.
—Por que estás tão
encolerizado? Perguntou a Deusa do Arco-íris.
—Preciso destruir
antes de ser destruído. Respondeu o Deus dos mares.
—Quem deseja destruí-lo?
—O homem. Esta
criatura a quem doei tanta abundância, transformou-se num megalomaníaco
irresponsável, que se julga mais poderoso do que todos os deuses do universo.
Darei a eles uma lição para jamais ser esquecida. Isto se restar algum para
contar a história...
—Mas, você já fez
isto outras vezes, não se lembra?
—Lembro-me
perfeitamente! Fiz por motivos menores do que os que estou presenciando agora.
Devia ter exterminado a todos, daí eu não teria o trabalho de fazer o serviço
mais uma vez.
—Antes de agir,
você deveria esfriar um pouco a cabeça. Esta sua onda de ódio está crescendo
muito e indo rápido demais em direção aos homens. Não dá para desacelerar um
pouquinho este seu ritmo para que possamos conversar melhor? Tenho coisas
importantes para lhe contar. Do jeito que você está, não conseguirá me ouvir e
poderá se arrepender depois. Ponderou Íris.
—Eu me arrependo de
ter sido bondoso com eles. Ofereci tudo que tenho para que usufruíssem, no
entanto, ao invés de usufruir com equilíbrio, eles estão destruindo,
rapidamente, tudo que me diz respeito. Se eu for mais devagar, com
certeza, eles serão mais rápidos do que eu.
—Calma! Os
satélites dos homens já constataram a sua fúria e eles estão desesperados
esperando por você. Totalmente impotentes para fazer qualquer coisa que possa
protegê-los, aguardam apenas a piedade dos deuses. É por isso que vim
interceder por eles.
—Você quer defender
esta raça de destruidores? Passam uma vida inteira fazendo o mal e no final
pedem redenção. É só o que faltava! Ironizou Netuno.
—No meio do joio
que você enxerga há muito trigo também. Com esta fúria toda, você não terá como
separar um e outro. Punirá inocentes que lutam também para preservar a sua
beleza e a sua saúde. Alertou Íris.
—Eu não preciso que
ninguém lute por mim! Eles é quem precisam que alguém lute por eles.
—Concordo,
plenamente, com você. E, tem mais... Eles estão ficando cada vez mais sozinhos.
Os Deuses das matas, dos ares, dos rios, enfim, uma infinidade de Deuses já
está assim como você, bem insatisfeitos com a atitude deles. Preciso,
entretanto, interceder por aqueles que estão ficando cada vez mais sem defesas
e aliados. Há inocentes nesta história. Por favor, me escute! Você está
escutando apenas a sua ira. Implorou Íris.
—A minha ira me
permite colocar limites a eles. Caso contrário, posso ficar bonzinho novamente
e eles abusarem da minha boa vontade.Parece também que eles só aprenderão
alguma coisa através do medo e do desespero. Infelizmente, consciência é uma
coisa que eles não possuem.
—Tenha, pelo menos,
um pouco de empatia. Há muita gente boa nesta história. Você acha justo punir a
todos da mesma maneira? Questionou Íris.
—Eu não sei como
separar o joio do trigo, como você mesma disse. Justificou-se Netuno.
—Pois deveria
aprender! Você só tem a ganhar. Assim como você, há muitos humanos que não
sabem ainda fazer as coisas de uma outra forma. Por acaso, você gostaria de ser
punido por não saber separar o joio do trigo? Desafiou Íris.
Netuno parou para
refletir um pouco. Neste momento de reflexão a força de sua fúria diminuiu um
pouco, mas o desejo de punir continuava intacto dentro de seu ser. Sentindo que
o amigo serenou o seu humor, Íris continuou:
—Não seria mais
interessante fortalecer o trigo ao invés de destruir o joio? O trigo poderá ser
seu grande aliado. Aliás, é tudo que desejam.
—Eu não sei se
poderei aceitar a ignorância deste povo. Eles deveriam ser mais conscientes.
—Aceite-os como são
e não da maneira como você gostaria que eles fossem. Faça isto administrando a
sua ansiedade. Saiba esperar o desabrochar de uma nova consciência em todos
eles. Aja de forma inteligente para despertar a mudança neles e, não de forma
impulsiva e precipitada.
—Pois, saiba que
sempre esperei uma mudança neles.
—Talvez, por isso,
esteja tão frustrado. Livre-se das expectativas e verá a sua frustração
diminuir. Quanto mais frustrados ficamos, mais raiva sentimos. Você já
conseguiu perceber que está sendo vítima de sua raiva?
—Que absurdo! Estou
sendo vítima deles e darei um jeito de destruí-los bem rápido. Para mim, esse
povo é um problema sem solução, por isso, o melhor é exterminar a todos assim
como aconteceu com os dinossauros. A terra ficaria bem mais protegida, você não
acha? Ironizou Netuno.
—Não use a frieza
como uma anestesia para a raiva que você sente agora. Toda revolta
ativa no outro o desejo de ferir também. Daí, não acredito que estes meios que
você está buscando vá resolver o problema dos seres humanos.
—E, eu lá tô
querendo resolver problema de ser humano? Quero resolver o meu problema!
Trovejou Netuno.
—Não aja
egoisticamente como o seu agressor. Você reclama dele e se comporta exatamente
como ele? Não estou te entendendo... Compreendo que você tenha sido vítima de
repetidas ocorrências de desrespeito, mas, a realidade é que o ser humano não
aprendeu ainda o significado da palavra amor e respeito. Daí, não adianta
idealizarmos uma realidade que não existe, impondo a eles uma forma de ser que
eles ainda não são capazes de vivenciar. Quem melhor do que os Deuses para
servirem de exemplo e ajudá-los a curarem esta doença que atormenta a
humanidade?
—Eu não posso
deixar que a doença deles adoeça o território que cabe a mim proteger.
Protestou Netuno.
—Nisto você tem
razão! No entanto, existe uma parte saudável do ser humano que vale à pena nós
nos relacionarmos com ela. Esta parte precisa ser alimentada. Ela é a salvação
do nosso planeta.
—E o que eu faço
com esta ira que me atormenta? Você quer que eu faça de conta que ela não
existe?
—Absolutamente!
Reconheça esta fúria que está dentro de você e transforme-a. Desafiou Íris.
—Transformá-la? Em
que ?
—Num instrumento
para exercitar a sua tolerância, a sua paciência e a sua capacidade de perdoar.
—Perdoar? Você quer
que eu esqueça tudo que eles me fizeram?
—Perdoar não é
esquecer, mas abdicar de sua raiva para que você possa seguir em frente com
mais serenidade e resolver o problema com menos emoção e mais razão. A sua
necessidade de vingar só lhe trará mais raiva e tormento. Esclareceu Íris.
—Não sei se dá para
perdoar este estrago todo não...Vou estar bancando o idiota!
—Pelo contrário,
você será muito mais forte se admitir que será um erro punir
inocentes, já que além dos humanos, serão extintos uma série de outras espécies
que não tem nada haver com esta história. Além do mais, olhe o desespero deles
agora! Através de orações compulsivas, estão se desculpando com todos os
Deuses. Perceberam a sua fúria e estão desesperados. Aceite a desculpa
deles! Você consegue ouvi-los?
—Sim. Me dá um
certo prazer assistir o remorso deles. Vou tentar agir com mais prudência. Só
vou assustar um pouquinho! Tenho que admitir que esta conversa com você abrandou
minha fúria. Espertinha!.. Acho que seu intento foi alcançado. Volte para o seu
lar, prometo que tentarei lembrar-me desta conversa toda vez que me deparar com
os estragos causados por esta raça imun...Antes que terminasse, Íris lançou
sobre Netuno um olhar reprovador que o fez auto corrigir-se.
—Melhor
dizendo...Raça imatura e ignorante!
Íris pareceu ter
conseguido convencer Netuno a não destruir totalmente a raça humana. De vez em
quando, a gente fica sabendo de alguns rompantes de raiva do mesmo que geram
muitos estragos e mortes. Porém, não dá para negar que estes estragos são bem
menores do que os que causamos a ele. Assim, eu, particularmente, entendo os
tsunamis e maremotos. Nem todos os Deuses são tão tolerantes e perfeitos quanto
gostaríamos.
Quando fico olhando
para o mar, observo atentamente o humor de Netuno. Admito que não possuo a
ousadia dos surfistas ao deslizar em ondas fortes que estouram esbravejando
alguma insatisfação do mesmo em dias de maré alta. Não ouso desafia-lo nestes
dias, limito-me a observar a sua fúria, certa de que ela poderia ser bem maior.
Mas, há também os dias em que me deleito em suas ondas leves que se derramam
sobre a praia dando gostosas e borbulhantes risadas como se estivesse rindo de
nossa fragilidade e ignorância. Embalada por ondas suaves sinto o quanto o mar
ainda nos ama e nos acolhe e lá no fundo fico a pensar:
—Enquanto ele
estiver rindo... Bom sinal!