segunda-feira, 22 de abril de 2013

QUANDO A CIGARRA EMUDECEU

Dedico esta história à expressão mais genuína de nosso ser

QUANDO A CIGARRA EMUDECEU

Todos vocês conhecem bem a história da cigarra e da formiga. Mas, provavelmente, não sabem o que aconteceu após o final dela. Pois, eu vou contar para vocês. Só para relembrar a história que todo mundo conhece... Depois que a Formiga passou o verão e o outono todo trabalhando e a Cigarra cantando sem parar, o inverno chegou finalmente. Num frio intenso de um inverno aparentemente interminável, a formiga tinha como se alimentar e a cigarra não tinha o que comer. Absorta em suas canções e sem se preocupar com o futuro, a Cigarra esqueceu-se de estocar o seu alimento e a formiga orgulhosa pode exibir a sua despensa repleta de guloseimas. A Cigarra teve que pedir abrigo e alimento para a formiga. A Rainha do formigueiro concordou desde que a cigarra concordasse em ofertar também o seu trabalho. Assim, a cigarra cantou para as formigas que passaram o inverno mais animado de suas vidas. É mais ou menos assim que  termina a história que todo mundo conhece. Depois disto, cabe à minha imaginação dar uma sequencia aos fatos.  
No meio daquelas formigas que assistiam felizes aos shows da cigarra Garrinha, havia uma formiga chamada Serralha, muito invejosa e preguiçosa, bem diferente das demais. O que ela mais queria era cantar como Garrinha, mas não tinha voz e nenhuma técnica para isto. A única coisa que sabia fazer era serrar as folhas que encontravam pelo caminho e estoca-las para prover-se de alimento no inverno. A inveja faz com que queiramos punir o outro. E, a pior punição que podemos dar ao outro é fazê-lo sentir-se culpado de alguma coisa. A culpa dói mais do que qualquer ferida. Sabendo disto, Serralha arquitetou o seu plano maquiavélico. A formiga invejosa faria Garrinha sentir-se culpada de ser ela mesma, feliz e descontraída. Esperou o momento certo para fazer isto. Sabia que a cigarra bateria à porta do formigueiro para pedir alimento e abrigo na próxima estação de inverno. Estaria na portaria do formigueiro durante todo o inverno para colocar em prática o seu plano maquiavélico. E, foi justamente sito que aconteceu...
Garrinha, morrendo de fome e de frio, bateu à porta do formigueiro para pedir, como em todos os invernos, abrigo e alimento. Serralha, por sua vez, ofereceu à mesma uma boa lição de moral.
- Sua preguiçosa, agora você quer casa e comida... Você não tem vergonha na cara não?
- Mas, porque eu haveria de ter vergonha na cara. Eu não fiz nada de errado! E, depois, não me parece errado e nem mesmo vergonhoso pedir ajuda. Todos os anos eu faço isto e recompenso vocês com a minha bela música.  Respondeu Garrinha com delicadeza sem compreender a severidade da formiga.
- Além de preguiçosa é burra também. Ou será que és muito espertinha? Você quer me passar para trás assim como você faz com todas as outras formigas todos os anos? A mim, você não engana não. Berrou Serralha com uma voz estridente franzindo a testa, colocando as mãozinhas na cintura e batendo seu pezinho direito no chão.
- Dona Formiga, eu não estou entendendo nada! O que foi que eu fiz de errado. A senhora me parece tão furiosa comigo. Daria para explicar melhor o que fiz?
- Ou o que deixou de fazer, sua espertinha. Completou Serralha fechando seu semblante como os dias mais cinzentos do inverno.
- Minha consciência está tranquila! Não sei o que em mim desperta tanto ódio no seu coração. Pelo visto, não posso contar coma a sua ajuda. Vou procurar outra formiga que possa me ajudar.
- Porque você não procura a sua turma? Perguntou com ironia a formiga maquiavélica.
- Porque todas as cigarras estão assim como eu, precisando de ajuda neste momento. Não temos o que oferecer agora a não ser o nosso canto.
- Mas, como bem sabe, cantar não enche a barriga de ninguém e nem tampouco espanta o frio. Você passou o verão e o outono errando e agora não quer pagar pelos seus erros. Você e todas as cigarras deveriam morrer de fome e de frio para pagar todo mal que causam ao nosso reino. Vou liderar um movimento para impedir as formigas de ofertar ajuda a vocês neste momento. Somos formigas trabalhadeiras e não formigas idiotas que passam a vida suando para encher a barriga de cigarras preguiçosas.
A cigarra arregalou seus olhinhos espantada com a crueldade da Formiga. Dentro da sua concepção de vida, não conseguia compreender a irritação da mesma. Dedicou o seu canto ao mundo e precisava agora que o mundo lhe dedicasse alimento e abrigo. O que tinha de errado nisto? Pensava  Garrinha tentando entender a complexidade do mundo de Serralha.               Antes que pudesse pedir ajuda a outra formiga mais amiga, surpreendeu-se com a atitude bélica formiga irritada. Sobre o chão coberto de gelo escreveu protestos em tom de ordem:
- Abaixo a preguiça das Cigarras cantadeiras!
 Ainda não satisfeita, empunhou uma placa confeccionada com  uma folha seca e congelada que repousava sobre o solo, onde os seguintes dizeres ordenava a todas as formigas:
- Está terminantemente proibido oferecer alimento e abrigo às Cigarras preguiçosas.
Até então, ninguém havia percebido as Cigarras como seres preguiçosos. Eram vistas como as cantoras que animavam a vida da bicharada. Querendo compreender melhor aquela situação nova, as Formigas foram se achegando e formando em volta de Serralha um grande círculo. Como se estivesse num comício, a formiga irritada proferiu seu discurso moralista e acusador:
- Não sejam idiotas! Passamos o verão todo trabalhando para alimentar estas cigarras preguiçosas? Vocês acham justo desperdiçar o nosso suor? Que o nosso suor seja convertido em benefícios para a nossa comunidade e não para a comunidade das cigarras preguiçosas. Elas desejam nos explorar e fazer de nós suas escravas. Ficam no “bem bom” enquanto nós trabalhamos sem cessar. Não vamos deixar que a preguiça das Cigarras aumente o nosso sofrimento de ter que trabalhar, trabalhar e trabalhar sem cessar.
Garrinha foi se sentindo culpada ao ouvir tudo aquilo. Nunca pudera imaginar que um comportamento tão normal para si e para a comunidade das cigarras pudesse causar um sofrimento tão grande às formigas. Jamais desejou explorar ninguém, muito menos a formigas que, tão amigavelmente, lhes ofereciam alimento e abrigo todos os anos. A sua culpa aumentou ainda mais quando ouviu centenas de formigas influenciadas pela formiga irritada gritando estridentemente:
- Abaixo as cigarras! Abaixo as cigarras!
Algumas Formigas fortemente influenciadas pela rebelião de Serralha passavam por ela e entoavam frases de condenação:
- Que você possa pagar por tudo aquilo que deixou de fazer!
- Se quiser alimento e abrigo, que trabalhe!
- Vá cantar agora, sua Cigarra preguiçosa!
Garrinha não podia acreditar no que estava acontecendo. Parecia um pesadelo. Tomada por um sentimento novo, nunca vivido antes, por uma dor no peito e pensamentos desordenados que obscureciam a sua mente, desmaiou-se sobre o solo. As formigas se afastaram sem oferecer nenhum tipo de ajuda. Tomadas pela raiva, não pensavam racionalmente no que aquele comportamento de abandono poderia causar à Cigarra. Mas, no meio de uma multidão levada pela paixão ou pelo ódio, pode haver sempre um ser mais consciente e libertador. O anjo da guarda de Garrinha, encarnado no corpo de uma formiga bondosa, tratou de carregar com dificuldade o seu corpinho adormecido e sem forças para dentro de seus aposentos sem que as outras formigas pudessem tomar conhecimento.  Cuidou da mesma com todo carinho até que a Garrinha pudesse estar novamente apta a cantar.
Garrinha recuperou-se fisicamente, mas manteve-se emocionalmente abalada. Sentindo-se ainda culpada, resolveu organizar uma reunião com a comunidade das cigarras para que pudessem planejar outra estratégia de vida capaz de protegê-las de tamanho infortúnio. Não estavam dispostas a passar novamente por aquela experiência constrangedora e desgastante o suficiente para colocar em risco a própria vida e sobrevivência da espécie. Não seriam mais um peso para nenhuma formiga e desejavam provar para todas elas que não eram cigarras preguiçosas. Não podiam depender da boa vontade de outro ser para sobreviver.  Resolveram trabalhar como as formigas para prover as suas necessidades no inverno e não gastariam mais nenhum minuto do dia com suas canções por mais belas que fossem. Mesmo que desejassem cantar, estavam todas elas traumatizadas frente à mínima possibilidade de serem novamente rejeitadas e humilhadas. O trauma vivenciado bloqueou a expressão artística de todas elas. Um silêncio profundo tomou conta da alma de cada cigarra que emudecida resolveu adotar o estilo de vida das formigas.
O tempo foi passando e com ele cada estação. As formigas trabalhavam e as cigarras numa intensidade ainda maior.  Um silêncio torturante foi tomando conta de cada formiga e de cada cigarra também.  Não havia mais a magia da música e o efeito animador e terapêutico da mesma na vida dos seres daquela região.  As formigas sentiam falta de alguma coisa em suas vidas, mas não sabiam o que. Esta falta se transformou num grande vazio, deixando-as sem energia para o trabalho.   As formigas outrora tão proativas e animadas transformaram-se em formigas preguiçosas e sem energia para executar o que antes faziam com tanto entusiasmo. O trabalho passou a ser uma obrigação chata e um grande estresse tomou conta de todas elas. Estressadas, começaram a brigar entre si, o que atrapalhava ainda mais a qualidade de trabalho de todas elas. Insatisfeita com o desempenho de suas operárias, a Formiga Rainha promoveu uma reunião para discutir o problema em questão sem ainda ter tomado conhecimento da rebelião armada por Serralha no último inverno. Cercada por centenas de formigas perguntou furiosa:
- O que está acontecendo com todas vocês? Estão cada vez mais preguiçosas e ineficientes. Eu não posso permitir este tipo de comportamento. O que  está faltando a cada uma de vocês para se tornarem competentes como antes?
As Formigas se entreolharam cabisbaixas sem coragem de enfrentar a fúria da rainha e sem coragem de admitir que cometeram um grande erro no passado. Anjinha, a formiga acolhedora de Garrinha, pronunciou-se:
- Depois que as Cigarras calaram o nosso trabalho perdeu o encanto. A melodia do canto delas embalava o nosso entusiasmo e era, de certa forma, um bálsamo para a nossa alma.
- Mas, por que as cigarras pararam de cantar? O mundo não pode viver sem o trabalho destas artistas maravilhosas. Elas precisam continuar cantando para todos nós. Por acaso elas deixaram de receber os honorários de alimento e abrigo pagos pela nossa comunidade no inverno? Perguntou a Rainha indignada desconhecendo toda confusão causada no último inverno.
- Depois que foram acusadas de preguiçosas e exploradoras resolveram trabalhar como todas nós e encerrar a carreira de cantora.  Justificou Anjinha.
- Acusadas de preguiçosas! Quem cometeu esta atrocidade contra elas?
Um silêncio ainda maior tomou conta de todas as Formigas. Nenhuma delas teve a coragem de assumir a responsabilidade pelo infortúnio causado às cigarras. No meio de todas elas, Serralha deu um jeitinho de se esconder para não ser acusada e ter que se responsabilizar pelos seus atos. Era boa de provocar culpa no outro, mas muito incompetente para assumir a sua própria culpa. Arrependimento era uma coisa que Serralha evitava a todo custo. Criava todas as artimanhas emocionais para não entrar em contato com a sua responsabilidade diante dos fatos. E, uma destas artimanhas era o viciante hábito de apontar sempre o dedo para o outro.
Sem respostas para sua pergunta, a Rainha pediu que trouxesse Garrinha até ela. Garrinha era uma de suas cantoras prediletas e com certeza teria uma resposta para lhe dar. Anjinha dirigiu-se a ela solicitando que comparecesse a uma reunião coma Formiga Rainha. Trabalhando sem cessar, a cigarra respondeu:
- Avise à sua Rainha que estamos ocupadas demais e sem tempo para ouvir mais acusações sobre o nosso estilo de vida. Será que vocês não se dão por satisfeitas? Estamos também incomodando com este nosso novo estilo de vida? Se ela quiser que venha até nós. Precisamos trabalhar para ter como nos prover no inverno.
Anjinha dirigiu-se à Rainha e passou o recado de Garrinha. A Rainha achou muito estranho. O recado enviado por Garrinha parecia mais um discurso de Formiga do que de uma Cigarra que vivia da arte. Ciente de que poderia ter algo estranho nesta história, resolveu, por conta própria, procurar Garrinha. Ao encontra-la, não acreditou no que viu. Furtada de sua alma artística, Garrinha parecia mais uma Formiga operária. Surpresa, a Rainha indagou:
- O que deu em você, Garrinha! Porque rompeu o acordo que a mãe natureza tratou com todos nós?
Sem parar o seu ofício do momento e sem dar muita atenção à Rainha, Garrinha  se limitou a perguntar confusa:
- Que acordo?
- Você canta e agente trabalha assim como você está trabalhando agora. Seu trabalho é  cantar, bem diferente do trabalho de todas nós, formigas. Jamais conseguiremos executar este trabalho que vocês executam com tanta maestria. Na natureza, o mais importante é respeitar a vocação de cada um. Somos diferentes, temos talentos diferentes para equilibrar todo o sistema. O equilíbrio nasce à partir destas diferenças que compõe a unidade do Todo.
-Seu discurso é muito bonito, mas na prática não funciona na sua  comunidade. As nossas diferenças não foram respeitadas por vocês.  Censurou Garrinha.
- Por nós? O que está acontecendo? Por acaso, deixamos de cumprir o nosso acordo de alimento e moradia no inverno?
- Não só deixaram, como deixaram que morrêssemos de frio e de fome no último inverno. Se não fosse pela bondade de Anjinha e de algumas formigas de bom coração como ela, já não teria, aqui hoje, nenhuma cigarra para lhe contar esta história.
-Que história é esta? Não estou entendendo nada! Por favor, me conte o que aconteceu no ultimo inverno. Juro a você que desconheço estes fatos.
Garrinha contou para a Rainha tudo que havia acontecido. Ela ficou estarrecida com a história e muito aborrecida por não ter tomado conhecimento dos fatos. Desculpou-se para Garrinha e prometeu punir todas as formigas envolvidas.  Pediu que Garrinha voltasse a cantar, mas a cigarra lamentou:
- Não conseguimos mais cantar. Não sei o que aconteceu, mas a nossa expressão está totalmente bloqueada.
- Vocês devem estar traumatizadas. Além de acuadas, vocês se sentiram culpadas e ameaçadas. Acreditaram nas maldosas acusações de Serralha. Vocês não podem ser manipuladas pela culpa que esta formiga amarga e invejosa lhes atribuiu. A armadilha da culpa rouba a nossa expressão. Vocês caíram direitinho na armadilha dela.  Conjecturou a Rainha.
-Mas não sabemos o que fazer para sair desta armadilha e  soltar a nossa voz. Acostumamos a trabalhar e perdemos o hábito de cantar. Acho que nem sabemos como fazer isto mais. Estamos mudas para o canto. Lamentou Garrinha enchendo seus olhinhos de lágrimas.
- Olhem para vocês! Vocês não estão felizes. Parecem Formigas. Não há como ser feliz agindo como o outro. As nossas ações devem ser genuínas, um reflexo de nossas motivações internas e do brilho de nossa alma. Só a verdadeira consciência de saber quem somos e o que fazemos pode nos libertar destas armadilhas.  Recupere a sua essência que a sua voz há de sair. Aconselhou a Rainha com sabedoria.
Garrinha entendeu o recado da sábia Rainha e comprometeu-se a transmutar todos os sentimentos ruins depositados por Serralha nas entranhas de seu ser. Pediu à Rainha que não punisse Serralha e nem mesmo todas as Formigas envolvidas naquela rebelião contra o canto. O perdão era a melhor medicação para todas elas.  A própria vida se encarregou de mostrar a elas o quanto dependiam do canto das cigarras para trabalharem com mais eficiência e felicidade. Arrependidas, resolveram fazer aulas de canto com as cigarras. Queriam levar o canto para dentro de seu próprio ser e compreender melhor este universo tão diferente do seu. No entanto, descobriram como era complicado cantar. Descobriram que cantar era um ofício muito difícil para elas; melhor encara-lo apenas como um hobby.
Quanto a Serralha, dedicou a sua vida a serrar folhinhas medicinais que pudessem favorecer a qualidade de voz das cigarras. Fazia chás medicinais maravilhosos. O perdão que lhe foi concedido lhe transformou numa verdadeira curandeira. Filas de cigarras se formavam todos os dias na porta de seu consultório formigueiro para uma consulta com a Dra Serralha – a curandeira das Cigarras roucas ou sem voz.
Depois que a transmutação aconteceu no coração de todas as formigas e cigarras, ouviu-se, finalmente, um canto que saía do coração de todas elas levando ao mundo uma mensagem de união. 


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