quarta-feira, 9 de julho de 2014

O BRINQUEDO DESEJADO



O BRINQUEDO DESEJADO
UMA VERSÃO MODIFICADA DA HISTÓRIA “ LOJA DE BRINQUEDOS”
( CARDÁPIO DA ALMA)




Era uma vez um garoto cujo pai era dono de uma loja de brinquedos. O aniversário desta criança estava chegando e ela poderia escolher qualquer brinquedo que desejasse, dentre as dezenas de brinquedos disponíveis nas prateleiras da loja do pai. Dois brinquedos fascinaram aquela alma infantil, no entanto, o pai um pouco rígido, lhe dava o direito de escolher apenas um. Deveria garimpar seu desejo mais precioso. Não foi tão difícil fazer a escolha, pois dentre os dois, aquela criança sabia, no fundo de sua alma, o que realmente desejava. Sabia que desejava os dois, mas só um deles poderia ser a sua pedra preciosa passível de ser vivida e exibida no seu dia a dia.  Sabia também que o brinquedo escolhido era o que os pais mais gostavam de brincar; sendo assim, poderia gozar a comodidade de ter sempre a companhia dos mesmos para brincar junto.
No entanto, toda vez que aquela criança passava pelas prateleiras da loja do pai e via aquele outro brinquedo ora desejado, um enorme desejo de tocá-lo e saborear os prazeres que este poderia lhe proporcionar,  tomava conta de si. Como era um desejo proibido, a única maneira de vivenciá-lo era às escondidas e longe de todos os olhares. Assim, descobriu uma forma de brincar, de tocá-lo e gozá-lo sempre longe de todos. Às vezes, tinha medo de aparecer alguém que pudesse se interessar e comprar aquele brinquedo, separando-o definitivamente daquele seu prazer proibido.  Enquanto isto não acontecia, se limitava,  esporadicamente, quando lhe sobrava tempo, brincar às escondidas  com aquele brinquedo sempre ali disponível. Toda vez que brincava com o mesmo, lembrava-se dos conselhos e advertências do pai: “Não brinque com nenhum brinquedo que não seja seu, pois se estragá-lo terá que pagar um alto preço por isto”. Apesar de todas as advertências, não conseguia deixar de brincar com o proibido; parecia uma verdadeira tentação, um vício difícil de ser superado. Por outro lado, sentia-se mais seguro com o seu brinquedo escolhido, apesar de entediar-se, às vezes, com o mesmo. Se o estragasse,  achava, ilusoriamente,  que o preço não seria tão alto e que poderia conserta-lo de alguma forma sem maiores prejuízos.  Ter os dois era uma boa saída. Viver a concessão e a proibição, tudo na medida certa, era para ele uma dieta bem equilibrada de desejos antagônicos. Viver o permitido e o proibido. Poder o que não pode,  pode  parecer dialético, mas, mais do que dialético era prazer, pois  diante do tédio, tinha sempre em mãos a aventura do proibido. Viver assim era uma situação cômoda e, ao mesmo tempo, estimulante e gostosa.
O garoto sabia que seria castigado se alguém o pegasse com aquele brinquedo da loja. Embora não fosse seu, não tinha um dono ainda. Ao futuro pertencia a propriedade do mesmo.  Poderia até escolhê-lo no próximo natal ou aniversário, mas, lá no fundo,  não desejava tomar posse do mesmo; talvez um outro brinquedo diferente fosse sempre mais interessante de ser adquirido. Aquele brinquedo tinha algo mágico que o assustava. O bom mesmo era a falta dele; uma falta que rendia desejo; um desejo de ter o que não se pode ter. A ideia de possuí-lo, deixava-o inseguro. Possuindo-o, ele deixaria de ser falta e consequentemente deixaria de ser desejado. Assim, nunca teve coragem de pedir aquele brinquedo de presente. Ele tinha algo de proibido que fascinava muito mais do que as facilidades e a segurança do conquistado. Aquele brinquedo alimentava as suas aventuras e afastava o tédio do dia a dia. Gostava muito do mesmo, mas jamais foi capaz de escolhê-lo. No fundo, sabia que este jamais lhe poderia ser “presente”, apenas falta ou, no máximo,  lembrança. Sua alma nostálgica gostava da lembrança do impossível e do inalcançável.
Mas toda texto tem um ponto final. No contexto da vida, tudo tem um fim. Depois de tantas vírgulas e reticências, chegou o ponto final no relacionamento do garoto com seu brinquedo proibido. Um dia os dois se separaram definitivamente. O brinquedo proibido para o garoto não era proibido para outros que  desejavam a presença e a permanência dele em suas vidas. E, assim, ele foi escolhido para ser vivido no dia a dia de um outro menino.  O garoto sentiu uma pontada de ciúmes e ficou a pensar como alguém poderia ver estabilidade na representação simbólica da efemeridade e da peripécia que o seu  brinquedo  proibido  lhe proporcionava. .
Aquele garoto fez as suas escolhas. Dentre elas, viver com seu brinquedo escolhido e abrir mão do outro proibido e tão desejado.  Se ele aprendeu a usufruí-las plenamente, sem ter que brincar escondido com outros brinquedos proibidos, isto eu não sei lhe dizer. Só sei que não estragou o brinquedo da loja e posso até imaginar que aquele brinquedo sentia saudades dele também, pois, na solidão de uma vida em prateleira, o garoto também lhe trazia de presente aventuras e prazeres. Acho que um por um bom tempo, um complementou o vazio existencial do outro.
Quanto ao brinquedo, apesar de ter passado muito tempo desejando ser escolhido pelo garoto e se emperrando ou dando defeito toda vez que um menino qualquer, mimado ou descuidado, tentava escolhê-lo, finalmente, conseguiu desejar também um novo dono. Parece, inclusive, que aquele brinquedo  participava ativamente na escolha de seu dono. Talvez esta fosse a magia que tanto assustava o garoto; um brinquedo que sabia escolher por quem seria escolhido. A maior felicidade do  brinquedo  foi quando se viu escolhido por um menino que o desejava habitante de sua vida e, não simplesmente, da prateleira de seu quarto servindo-se apenas de enfeite, ou da caixa de sucatas esquecida no porão da casa.
E assim, diante de tantos desejos e escolhas, brinquedo e garoto seguiram suas vidas separados, unidos apenas pela lembrança de um passado que mesmo gostoso, tem como todo passado a sina de virar tempo daquilo que não pode mais ser.  E no presente de cada um, novos prazeres surgiram tornando a vida sempre desejada.

 No término de uma história sempre começa outra. Fico a pensar em como ficou a vida deste brinquedo com seu novo dono e do garoto com seus novos brinquedos. Acredito que no presente da vida deles, repousa um passado que, se estimulado pela saudade, tem vontade de acordar. 

sábado, 14 de junho de 2014

UMA NOVA CHANCE



Dedico esta história à humildade que nos falta


Existem religiões que acreditam em vida após a morte, outras acreditam no paraíso e por aí vai... Não estou aqui para questiona-las, mas para misturar um pouquinho estas crenças e criar uma historinha que possa despertar um pouquinho mais a nossa consciência.
Pois é!.. Chega um momento que precisamos acertar as nossas contas, seja nesta vida ou lá do outro lado, diante de Deus. Tem gente que parte desta vida como uma consciência bem capitalista, alguns se posicionando como devedores e outros como credores diante de Deus. E, é esta surpreendente história que vou lhes contar agora – a história de um homem que se julgava um credor diante de Deus.
Chegando lá no céu, com seu bloquinho de créditos, apresentou a Deus uma imensa lista dos serviços que havia prestado à humanidade e da dívida que Deus tinha para com ele.
_Como assim? Eu não consigo reconhecer esta dívida. Indagou Deus ao homem.
_Não acredito que irá me dar o calote! Posso esperar isto de qualquer  humano, mas do senhor... Deus me livre! Retrucou o homem censurando o questionamento divino.
_Eu posso te livrar de qualquer dívida que tenha para comigo, mas não posso aceitar esta dívida que você diz eu ter para com você. Deveras, fez muitas coisas boas lá na terra, mas recebeu em troca toda a minha benevolência enquanto estava lá. Te dei quase tudo que desejou.
_Quase tudo... Este é o problema! O senhor não acha que por tudo que fiz, eu mereceria tudo que sempre desejei? Este “quase” é, de certa forma, um “imposto” indevido imposto por você.
Deus conhece bem as suas criaturas e até se diverte bem com elas. Acha bem engraçada as artimanhas que criam para conseguir aquilo que desejam e para não conviverem com a falta. Ciente disto, fez uma proposta ao homem:
_Tenho uma proposta irrecusável para pagar esta dívida que você me delegou. Como bem disse, jamais darei calote  em meus filhos. Antes que pudesse prosseguir, o homem foi dando logo seu recadinho pretencioso:
_ Não me venha com nenhuma proposta indecente!..
_ Proposta indecente? E eu só lá de fazer alguma proposta indecente para alguém. Indagou o Divino.
_ Se quiseres me oferecer mais uma vidinha daquelas, “pode tirar seu cavalinho da chuva”...Nã, nã, nã... Aceito não! Ironizou o homem.
_ Você me parece bem exigente mesmo! Estou ciente que deverei lhe oferecer a melhor vida que eu possa ter criado para um ser neste universo infinito. Darei a você a oportunidade  de nascer e viver por longos anos no Planeta Perfeito. Propôs a Divindade.
_ Planeta Perfeito? Me fale melhor deste lugar, para eu ver se é realmente um lugar perfeito para mim. Solicitou o homem com pedantismo.
_ Você terá, lá, tudo que lhe faltou no Planeta Terra. Na terra as coisas não são tão boas, pois o ser humano não se liga numa vida tão certinha e perfeita. Na verdade, meus filhos humanos são viciados em falta. A falta gera tesão e eles adoram isto. Gostam muito mais da fome do que da saciedade. Você viveu lá e pode confirmar isto. Como pode existir num planeta tão farto, pessoas passando fome? E, o pior... Não há banquete que sacie, pois meus queridos filhos humanos levam à boca o alimento que ofereço, mas o olhar está sempre focado na mesa do outro. A maioria come, mas não se alimenta. Enchem o “buxo,” mas não  sentem o sabor e nem mesmo sabem aproveitar o valor nutritivo de cada alimento que lhes oferto.
Foi interrompido pelo homem, que com ansiedade e arrogância determinou:
_Me diga o que realmente interessa. Daquele povinho e daquele inferninho eu já conheço muito bem.
Deus deu uma gargalhada estrondosa que rugiu como trovão por todo o espaço sideral.  O homem levou um grande susto. A frequência e o timbre daquele som expressavam, de certa forma, o poder do Divino. Com uma hipocrisia travestida de humildade, o Homem perguntou receoso:
_ Opa, desculpe-me! O  que houve? Eu falei alguma bobagem?
Deus sabe também ser irônico com quem precisa. Olhando nos olhos daquele homem respondeu:
_ De jeito nenhum! Você é sempre muito sensato em tudo que diz e reivindica. Eu é que perco a minha sensatez de vez em quando. Me perdoa por não ter sido justo contigo na última vida. Vamos realmente ao que interessa! Vou te dar tudo que deseja. Terá uma vida onde nada lhe faltará.
_ Nada? Perguntou o homem desconfiado.
_ Nada, absolutamente nada! Pode confiar. Confirmou o Divino com bastante assertividade.
Tomado novamente pela sua arrogância, o homem retrucou com um cinismo revestido de insegurança.
_ Posso mesmo?
_Eu te dou a minha palavra. E te proponho algo ainda mais tentador para que você não tenha dúvidas em aceitar a minha proposta. Te dou o meu lugar no universo caso lhe falte alguma coisa.
Os olhos do homem brilharam de felicidade. Já conseguia se sentir o próprio Deus. Aliás, já conseguia se achar mais competente para administrar o universo do que aquela figura divina errante diante de ti. No mínimo, não cometeria os mesmos erros que Deus cometera com ele, e, isto já era uma grande coisa; dentro de sua lógica egocêntrica, talvez a coisa mais importante de todo o universo. O seu desejo , com certeza, era a coisa mais importante. Certamente, na posição de  Deus, não falharia neste tópico. Voltando de seus devaneios, aceitou prontamente a proposta divina:
_ Eu aceito a sua proposta. E o contrato? Quando é que a gente assina?
_ O contrato é a minha palavra. Ela já está registrada em todas as estrelas deste universo. Só resta uma ressalva...Ressaltou o ser divino.
_ Qual? Perguntou desconfiado, temendo ser traído por Deus.
_ Vale sentir falta de qualquer coisa; menos da falta, que vocês estão como humanos viciados nela. No Planeta Perfeito, não há programação para viver a falta.
_ Mas, é justamente isto que desejo! Não sentir nunca mais falta de nada. Pacto fechado!
_ Pacto fechado! Concluiu Deus, imprimindo sua palavra em todas as estrelas do universo.
Fechado o acordo, o homem nasceu no Planeta Perfeito. Viveu por lá uma vida longa e perfeita, sem qualquer imperfeição ou falta que pudesse criar algum desconforto. Como sempre, em algum momento, chega a hora do grande reencontro com Deus. Retornando, chegou novamente diante de Deus com seu bloquinho de anotações. Antes que pudesse cobrar alguma coisa, Deus interveio:
_ Te faltou alguma coisa lá? Perguntou curioso o grande criador.
_ Sim, me faltou sim! Afirmou o homem.
_ Mas, isto não é possível! O que pode ter lhe faltado? Perguntou Deus desconfiado.
_ Me faltou a falta. A FAL-TA! Mais uma vez, você falhou. Não dá para agradecer esse paraíso de merda que você me ofertou.
Esta possibilidade, já prevista em contrato, não deu ao homem o lugar de Deus, mas deu a Deus mais um ato de generosidade para com o homem:
_ Do paraíso, você não dá conta! Volte para a Terra, meu filho querido, pois é lá o seu verdadeiro lugar.
O homem voltou agradecido e muito feliz com a infelicidade que teria.


sábado, 31 de maio de 2014

A BRIGA ENTRE OS DEUSES

Dedico esta história  ao nosso espaço crepuscular  


Na nossa cultura, geralmente cultuamos um só Deus. Há, por outro lado, outras culturas que veneram vários Deuses ao mesmo tempo. Independente de qualquer coisa, a minha imaginação divina, cria histórias que possam tornar mais compreensível o que é, deveras, complicado de entender. Sendo assim, pouco importa se Deus vai ser uno ou múltiplo. O importante é que ele seja. Começo a minha história com um Deus que resolveu parir vários filhos, portanto, Deuses também, pois filho de Deus, Deus é.  E é a história destes filhos que vou lhes contar agora.
O grande Deus teve muitos filhos, alguns deles combinavam muito bem, outros nem tanto, como por exemplo, o Deus Dia e o Deus Noite. Houve uma época em que o Dia e a Noite não se toleravam. O Dia só aceitava o seu desejo de ser luz e a Noite só aceitava o seu próprio desejo de ser escuridão. O Deus Dia  ficava muito chateado quando o Deus  Noite chegava e impunha a sua presença. Achava que a chegada da Noite lhe roubava o seu brilho, a sua luz e a sua importância de SER. Temia perder o seu reinado e que a Noite pudesse passar a governar para sempre a vida no planeta onde foram criados. Por outro lado, a Noite tinha a mesma chateação. Não tolerava nem um pingo de luz para não se sentir subtraída e exterminada pelo Dia. Mas, independente da chateação destes Deuses, o Dia e a Noite sempre morriam e deixavam de existir em algum momento e em algum lugar, como também, renasciam e  passavam a existir em algum momento e em algum lugar. Nestes tempos remotos, Dia e Noite existiam totalmente independentes um do outro; cada um fazendo o seu papel e rejeitando o papel do outro. Cada um se achando mais importante e reverenciando o seu desejo exclusivo de Ser. Dia e Noite se rejeitavam completamente. Não havia entre ambos nenhum espaço de interação. O dia se apagava e a noite aparecia como num passe de mágica, assim como o acender e o apagar de uma lâmpada. Ambos sabiam da existência do outro, só não sabiam da importância deste outro, de certa forma, desconhecido. A ameaça que cada um representava era o único conhecimento que possuíam um do outro.  Conheciam, apenas, uma operação: Deixo de ser quando o outro passa a ser. Deixo de existir quando o outro existe. Ser ou Não Ser; Existir ou Não Existir, passou a ser uma questão complicada na vida do Deus Dia e do Deus Noite. Como eram Deuses, eram, com certeza, muito importantes e poderosos. Jamais seriam extintos. Mas, mesmo sabendo que eram para sempre Dia e Noite e que existiriam para sempre como Dia e Noite,  sentiam que, mesmo existindo,  deixavam de Ser e de Existir em algum momento. Que operação complicada! O Deus, pai do Dia e da Noite, percebendo a complexidade deste problema e a intolerância que reinava entre Dia e Noite, resolveu intervir. Criou um momento onde pudesse haver uma interação e uma troca mútua entre o Dia e a Noite; um momento onde eles pudessem compartilhar as suas diferenças. A lâmpada não seria acesa e apagada num passe de mágica. Haveria um processo de transformação onde um Deus pudesse sentir o outro completamente. Foi assim que criou o crepúsculo matinal , um momento onde o dia não é tão dia assim, e, o crepúsculo vespertino, um momento onde a noite não é tão noite assim. O dia experimenta em seu corpo a energia da noite e vice versa. Dia e noite se interagem, sentindo a energia provida por cada um e a energia provida entre ambos neste acasalamento crepuscular.
Foi neste momento de interação mútua, que o Deus Dia e o Deus Noite compreenderam que são ambos, um só Deus, partes de um todo; partes que se complementam mutuamente. Foi neste momento mágico, de tolerância mútua, que nasceu a compreensão e uma grande sabedoria. “Ser” ou “Não Ser”; “Existir” ou “Não Existir” transformou-se num passe de mágica em “Ser” e “Não Ser”; “Existir” e “Não Existir”. Nesta dialética de poder ser as duas coisas, renasceu , finalmente, a verdadeira essência divina em ambos os Deuses. Dotados deste novo saber, Dia e Noite  não precisaram nunca mais se tolerar. Brotou algo maior do que a tolerância entre eles. Copulando suas energias no crepúsculo, gestaram e pariram o infinito. Mais do que um dia ou uma noite, o “Para Sempre” passou a ser a maior prova de amor entre os Deuses da Noite e do Dia. Deste amor entre eles, nasceu o tempo. E o tempo não para... Segue sendo Dia, segue sendo Noite. E como já disse anteriormente... Filho de Deus, Deus é.  Deus Tempo, filho do Deus Dia com o Deus Noite há também de existir para sempre mesmo que o tempo mude. 

domingo, 11 de maio de 2014

A IRA DE NETUNO



Netuno, Deus dos mares, sempre teve como um dos seus passatempos favoritos brincar com as marés. Confeccionar ondas e vê-las arrebentar nas areias das praias sempre foi para ele uma distração extremamente relaxante. Quando Netuno se aborrecia, o mundo inteiro podia assistir sua ira concatenando com a fúria das marés. Assim, o humor do mesmo podia ser medido pela força destas.
Netuno sempre gostou de manter a sua casa limpa e nos últimos tempos notou que uma criatura chamada homem, a qual deu imensa liberdade para usufruir de sua hospitalidade, começou a abusar de sua boa vontade. Assim, resolveu fazer uma inspeção em todo seu território com claras intenções de colocar limites aos homens de má vontade. Chegou a engolir algumas embarcações que agrediam criaturas marinhas as quais nutria imenso amor, e assustar outras que ousavam desafia-lo acreditando possuir mais força do que ele. Mas, o episódio que retrata a sua ira mais assustadora é o que vou lhes contar agora. Estando já insatisfeito com a raça humana que, repentinamente, começou a se julgar um Deus mais poderoso do que todos os deuses do universo, Netuno achou por bem ser mais severo. A inspeção de seu território começou bem longe, onde poucos homens ousavam chegar. Nestes locais, intocados pelo homem, tudo parecia estar em ordem. Águas límpidas e cristalinas, seres marinhos vivendo em profunda harmonia e equilíbrio dava a Netuno uma tranqüilidade que se refletia nitidamente numa maré  serena e relaxante.
À medida que Netuno se aproximava dos locais onde o homem ousou invadir, os desequilíbrios começavam a aparecer. Por mais sereno que tentasse permanecer, uma onda de insatisfação começou crescer dentro daquele poderoso Deus. A serenidade começou a ceder lugar a certa turbulência. Seu nervosismo aumentou ainda mais ao assistir a pesca indiscriminada de baleias que morriam para alimentar a ambição do homem. Tentando protegê-las, agitou as marés com claras intenções de assustar os predadores das embarcações pesqueiras, fazendo-os retornar à terra firme, lugar onde se sentiam mais seguros.
—Vocês não possuem direito de agredir e matar seres de um mundo que não lhes pertence. Raça de ambiciosos! — Urrou Netuno arrastando todos os barcos para a costa, sem, no entanto, destruí-los.
Continuando sua vistoria pelos mares, sua cólera acentuou-se ao sentir o seu corpo sendo contaminado pelo derramamento de óleo de um grande navio petrolífero.
—Vocês estão vomitando em mim, raça de nojentos!
Cada vez mais comprometido com seu lar e com a sua vida, Netuno continuava a sua caminhada tomado por uma profunda obstinação. A cada passo, uma surpresa desagradável e, consequentemente, uma nova insatisfação que  fazia crescer a onda de irritação dentro dele. Deparou-se com lixos boiando sobre águas que antes cristalinas abrigavam as mais lindas criaturas. Restos de garrafas, plásticos, enfim,  uma série de materiais sintéticos eram os únicos moradores de algumas regiões que Netuno havia, no passado, programado para ser um verdadeiro paraíso. Perplexo, a sua onda de irritação foi lentamente se transformando numa perigosa onda de raiva capaz de devassar tudo que desejasse. Aquele monte de lixo transformou seu paraíso num reino de trevas habitado pela solidão, pela sujeira e pela escuridão.
—Seus porcalhões! Vocês querem acabar comigo? Vou mostrar para vocês quem é que acaba com quem!  Esbravejou Netuno dirigindo-se em direção à costa com claras intenções de punir os ingratos seres porcalhões a quem sempre doara tanta abundância.
Com uma fúria cada vez mais pronunciada e com clara intenção de destruir o destruidor, a pequena onda de insatisfação que antes regia o humor de Netuno se transformou  em uma temerosa onda de fúria que se movimentava em direção à terra firme. Temendo os estragos que pudesse fazer, Íris apareceu com claras intenções de equilibrar o humor de Netuno, descendo suavemente de um lindo arco-íris que ligava o céu ao mar.
—Por que estás tão encolerizado? Perguntou a Deusa do Arco-íris.
—Preciso destruir antes de ser destruído. Respondeu o Deus dos mares.
—Quem deseja destruí-lo?
—O homem. Esta criatura a quem doei tanta abundância, transformou-se num megalomaníaco irresponsável, que se julga mais poderoso do que todos os deuses do universo. Darei a eles uma lição para jamais ser esquecida. Isto se restar algum para contar a história...
—Mas, você já fez isto outras vezes, não se lembra?
—Lembro-me perfeitamente! Fiz por motivos menores do que os que estou presenciando agora. Devia ter exterminado a todos, daí eu não teria o trabalho de fazer o serviço mais uma vez.
—Antes de agir, você deveria esfriar um pouco a cabeça. Esta sua onda de ódio está crescendo muito e indo rápido demais em direção aos homens. Não dá para desacelerar um pouquinho este seu ritmo para que possamos conversar melhor? Tenho coisas importantes para lhe contar. Do jeito que você está, não conseguirá me ouvir e poderá se arrepender depois. Ponderou Íris.
—Eu me arrependo de ter sido bondoso com eles. Ofereci tudo que tenho para que usufruíssem, no entanto, ao invés de usufruir com equilíbrio, eles estão destruindo, rapidamente, tudo que me diz respeito.  Se eu for mais devagar, com certeza, eles serão mais rápidos do que eu.
—Calma! Os satélites dos homens já constataram a sua fúria e eles estão desesperados esperando por você. Totalmente impotentes para fazer qualquer coisa que possa protegê-los, aguardam apenas a piedade dos deuses. É por isso que vim interceder por eles.
—Você quer defender esta raça de destruidores? Passam uma vida inteira fazendo o mal e no final pedem redenção. É só o que faltava! Ironizou Netuno.
—No meio do joio que você enxerga há muito trigo também. Com esta fúria toda, você não terá como separar um e outro. Punirá inocentes que lutam também para preservar a sua beleza e a sua saúde. Alertou Íris.
—Eu não preciso que ninguém lute por mim! Eles é quem precisam que alguém lute por eles.
—Concordo, plenamente, com você. E, tem mais... Eles estão ficando cada vez mais sozinhos. Os Deuses das matas, dos ares, dos rios, enfim, uma infinidade de Deuses já está assim como você, bem insatisfeitos com a atitude deles. Preciso, entretanto, interceder por aqueles que estão ficando cada vez mais sem defesas e aliados. Há inocentes nesta história. Por favor, me escute! Você está escutando apenas a sua ira. Implorou Íris.
—A minha ira me permite colocar limites a eles. Caso contrário, posso ficar bonzinho novamente e eles abusarem da minha boa vontade.Parece também que eles só aprenderão alguma coisa através do medo e do desespero. Infelizmente, consciência é uma coisa que eles não possuem.
—Tenha, pelo menos, um pouco de empatia. Há muita gente boa nesta história. Você acha justo punir a todos da mesma maneira? Questionou Íris.
—Eu não sei como separar o joio do trigo, como você mesma disse. Justificou-se Netuno.
—Pois deveria aprender! Você só tem a ganhar. Assim como você, há muitos humanos que não sabem ainda fazer as coisas de uma outra forma. Por acaso, você gostaria de ser punido por não saber separar o joio do trigo? Desafiou Íris.
Netuno parou para refletir um pouco. Neste momento de reflexão a força de sua fúria diminuiu um pouco, mas o desejo de punir continuava intacto dentro de seu ser. Sentindo que o amigo serenou  o seu humor, Íris continuou:
—Não seria mais interessante fortalecer o trigo ao invés de destruir o joio? O trigo poderá ser seu grande aliado. Aliás, é tudo que desejam.
—Eu não sei se poderei aceitar a ignorância deste povo. Eles deveriam ser mais conscientes.
—Aceite-os como são e não da maneira como você gostaria que eles fossem. Faça isto administrando a sua ansiedade. Saiba esperar o desabrochar de uma nova consciência em todos eles. Aja de forma inteligente para despertar a mudança neles e, não de forma impulsiva e precipitada.
—Pois, saiba que sempre esperei uma mudança neles.
—Talvez, por isso, esteja tão frustrado. Livre-se das expectativas e verá a sua frustração diminuir. Quanto mais frustrados ficamos, mais raiva sentimos. Você já conseguiu perceber que está sendo vítima de sua raiva?
—Que absurdo! Estou sendo vítima deles e darei um jeito de destruí-los bem rápido. Para mim, esse povo é um problema sem solução, por isso, o melhor é exterminar a todos assim como aconteceu com os dinossauros. A terra ficaria bem mais protegida, você não acha? Ironizou Netuno.
—Não use a frieza como uma anestesia para  a raiva que você sente agora. Toda revolta ativa no outro o desejo de ferir também. Daí, não acredito que estes meios que você está buscando vá resolver o problema dos seres humanos.
—E, eu lá tô querendo resolver problema de ser humano? Quero resolver o meu problema! Trovejou Netuno.
—Não aja egoisticamente como o seu agressor. Você reclama dele e se comporta exatamente como ele? Não estou te entendendo... Compreendo que você tenha sido vítima de repetidas ocorrências de desrespeito, mas, a realidade é que o ser humano não aprendeu ainda o significado da palavra amor e respeito. Daí, não adianta idealizarmos uma realidade que não existe, impondo a eles uma forma de ser que eles ainda não são capazes de vivenciar. Quem melhor do que os Deuses para servirem de exemplo e ajudá-los a curarem esta doença que atormenta a humanidade?
—Eu não posso deixar que a doença deles adoeça o território que cabe a mim proteger. Protestou Netuno.
—Nisto você tem razão! No entanto, existe uma parte saudável do ser humano que vale à pena nós nos relacionarmos com ela. Esta parte precisa ser alimentada. Ela é a salvação do nosso planeta.
—E o que eu faço com esta ira que me atormenta? Você quer que eu faça de conta que ela não existe?
—Absolutamente! Reconheça esta fúria que está dentro de você e transforme-a. Desafiou Íris.
—Transformá-la? Em que ?
—Num instrumento para exercitar a sua tolerância, a sua paciência e a sua capacidade de perdoar.
—Perdoar? Você quer que eu esqueça tudo que eles me fizeram?
—Perdoar não é esquecer, mas abdicar de sua raiva para que você possa seguir em frente com mais serenidade e resolver o problema com menos emoção e mais razão. A sua necessidade de vingar só lhe trará mais raiva e tormento. Esclareceu Íris.
—Não sei se dá para perdoar este estrago todo não...Vou estar bancando o idiota!
—Pelo contrário, você será muito mais forte se admitir  que será um erro punir inocentes, já que além dos humanos, serão extintos uma série de outras espécies que não tem nada haver com esta história. Além do mais, olhe o desespero deles agora! Através de orações compulsivas, estão se desculpando com todos os Deuses. Perceberam a sua fúria e estão desesperados. Aceite a desculpa deles! Você consegue ouvi-los?
—Sim. Me dá um certo prazer assistir o remorso deles. Vou tentar agir com mais prudência. Só vou assustar um pouquinho! Tenho que admitir que esta conversa com você  abrandou minha fúria. Espertinha!.. Acho que seu intento foi alcançado. Volte para o seu lar, prometo que tentarei lembrar-me desta conversa toda vez que me deparar com os estragos causados por esta raça imun...Antes que terminasse, Íris lançou sobre Netuno um olhar reprovador que o fez auto corrigir-se.
—Melhor dizendo...Raça imatura e ignorante!
Íris pareceu ter conseguido convencer Netuno a não destruir totalmente a raça humana. De vez em quando, a gente fica sabendo de alguns rompantes de raiva do mesmo que geram muitos estragos e mortes. Porém, não dá para negar que estes estragos são bem menores do que os que causamos a ele. Assim, eu, particularmente, entendo os tsunamis e maremotos. Nem todos os Deuses são tão tolerantes e perfeitos quanto gostaríamos.
Quando fico olhando para o mar, observo atentamente o humor de Netuno. Admito que não possuo a ousadia dos surfistas ao deslizar em ondas fortes que estouram esbravejando alguma insatisfação do mesmo em dias de maré alta. Não ouso desafia-lo nestes dias, limito-me a observar a sua fúria, certa de que ela poderia ser bem maior. Mas, há também os dias em que me deleito em suas ondas leves que se derramam sobre a praia dando gostosas e borbulhantes risadas como se estivesse rindo de nossa fragilidade e ignorância. Embalada por ondas suaves sinto o quanto o mar ainda nos ama e nos acolhe e lá no fundo fico a pensar:
—Enquanto ele estiver rindo... Bom sinal!


sábado, 5 de abril de 2014

TRISTIXINHA




Era uma vez uma lagartixa chamada Tristixinha que nasceu num sobrado abandonado. A história dela começa mais ou menos assim...
Crac, crac. A casca de um pequeno ovo foi, repentinamente, rompida e de lá saiu uma linda lagartixa. Seus olhos assustados olharam o mundo procurando algo que nem ela sabia bem o quê. Como todo recém-nascido, provavelmente, por uma mãe que lhe pudesse dar proteção e referências neste novo mundo tão amplo e desconhecido. Mas, o que encontrou foi apenas um sobrado antigo, abandonado e a si mesma no meio disto tudo. O que fazer agora? Sobreviver! Ecoou dentro de si um eco vindo de seu mundo instintivo.  E, foi neste mundo instintivo que Tristixinha buscou todas as informações para poder sobreviver, crescer e se defender de todos os perigos; aprendeu a caçar sozinha seu alimento, se cuidar e  se proteger.
Sobreviveu, cresceu e se tornou uma linda lagartixa. Vivia sozinha, sem saber bem o que era tristeza ou alegria. Vivia uma vida vazia onde sobreviver era o grande lema de sua vida.  Tinha a adrenalina como companhia quando algum perigo punha em risco a sua vida. Mas, passado o perigo, a monotonia tomava conta. Tomada, constantemente, por esta energia, resolveu, certo dia, conversar com ela:
 _ Quem é você que me invade tanto todos os dias?
_ Sou a Dona Monotonia. Respondeu aquele sentimento incômodo.
_ Mas, a sua companhia é muito chata! Daria para me deixar em paz? Reclamou a lagartixinha exibindo uma careta bem feia.
_ Para isto precisaria chamar a Dona Felicidade. Ela, com certeza, vai preencher a sua vida com alguma coisa interessante. Ponderou Dona Monotonia sem se sentir incomodada com o incômodo de Tristixinha.
_E você?.. Não poderia preencher a minha vida com estas coisas interessantes? Retrucou a lagartixa.
_Infelizmente, não. Eu só preencho a vida das pessoas com o nada. Nada mais do que isto. Respondeu, com firmeza, Dona Monotonia.
_ Nada! Como assim? Perguntou  a lagartixa com uma expressão confusa.
_ Nada que provoque um sentimento bom ou ruim. Preencho com o vazio. E, pelo que vejo, meu vazio deve ser cheio de coisas chatas, pois a maioria das pessoas reclamam que estão cheias do vazio que lhes oferto. Por outro lado,  não fazem nada verdadeiramente efetivo para sair dele. Embora reclamem, acho que acabam gostando dele.  Salientou Dona Monotonia.
_ Mas, eu não estou gostando nem um pouco deste vazio. Você poderia me dizer onde eu posso encontrar esta Dona Felicidade? Solicitou Tristixinha.
_ Ela costuma estar em todos os lugares, mas nem sempre conseguimos enxerga-la. Eu, por exemplo, nunca consegui ver a cara dela. Dizem que é preciso estar atenta. Abra bem seus olhinhos! Quem sabe assim, você consegue enxerga-la ou mais do que isto, senti-la. Alertou Dona Monotonia.
_ Enxerga-la e senti-la? Não entendi. Dá para explicar melhor? Solicitou a lagartixa.
_ Dizem que tem gente que consegue enxergar Dona Felicidade, mas não consegue senti-la. Mas, não me pergunte o por que; porque como eu lhe disse, “nada” é quase tudo que eu sei. Até encontra-la, contente-se com a minha companhia. Uma vida monótona pode não ser uma vida tão interessante, mas é uma forma de vida, principalmente para aqueles que não encontram uma forma de viver que valha à pena. Aconselhou Dona Monotonia.
_ Mas, o que vale à pena viver? Perguntou a lagartixa colocando suas mãozinhas na cintura e batendo seus pezinhos no chão como se tivesse ao mesmo tempo fazendo uma reivindicação.
_ Eu não sei nada sobre isto, mas ouvi dizer por aí que, o que vale à pena é aquilo que nos retira a pena que a gente se impõe pagar todos os dias. Confesso que não entendi... Admitiu Dona Monotonia.
Tristixinha também não entendeu e não gostou muito das colocações de Dona Monotonia, mas teve que aceitar e  se contentar com a marcante presença dela , sempre ali, sem faze-la sentir algo que desse um sentido à sua vida. Absorta em seus pensamentos sobre o sentido da vida e sobre a pena que Dona Monotonia fizera referência, foi despertada por um barulho estranho vindo da cozinha daquele sobrado a tantos anos totalmente abandonado. Correu até lá e surpreendeu-se. Deparou-se com uma família de lagartixas decididas a mudar para aquele local. Os olhos de Tristixinha se arregalaram. Com seus olhinhos bem arregalados deixou de sentir Dona Monotonia e foi tomada pelo sentimento de ameaça. Escondeu-se atrás de um velho armário, também abandonado, e pôs-se a observar o comportamento daqueles seres tão diferentes dela. Aos olhos de Tristixinha, a diferença era tão grande que jamais poderia supor que se tratava de seres da sua espécie. Ao longo do tempo que as fitou atentamente, presenciou atitudes jamais imaginadas; aquelas lagartixas davam estridentes risadas, se abraçavam, dançavam, contavam histórias inéditas que Tristixinha  não conseguia absorver. Que sentimento era aquele vivenciado por aqueles seres tão estranhos?  Seria a Dona Felicidade comentada por Dona Monotonia? Tristixinha passou muitos dias escondida, observando aquela forma estranha de ser que ela desconhecia. Tinha vontade de experimentar aqueles sentimentos novos e estranhos expressados, naturalmente, por todas elas, mas não conseguia. Teve vontade de roubar estes sentimentos de uma delas, mas não sabia como fazer isto.  Se soubesse faria, pois um sentimento novo começou habitar aquela lagartixinha; começou a sentir  falta  daquilo que nunca sentiu, mas que assistia escondida por detrás daquele armário abandonado. Mesmo sem ter um dia experimentado ou possuído aquilo tudo, sentiu-se invadida pelo sentimento de falta. Tinha a sensação de que algo lhe foi roubado pela vida e uma sensação ainda maior de perda tomou conta de seu ser. De posse destas sensações novas, Dona Monotonia nunca mais apareceu, mas Tristixinha passou a ser preenchida por um sentimento novo até então desconhecido. Confusa, resolveu travar uma nova conversa com esta energia nova que tomava conta de seu ser:
_Quem é você que me preenche com tanta intensidade?
_ Sou Dona Tristeza. Respondeu aquele sentimento novo.
_ Dói muito sentir você. Reclamou Tristixinha.
_ Então, está tudo certo, pois é justamente esta a minha função; faze-la sentir dor. Esclareceu Dona Tristeza.
_ Mas, eu não quero sentir dor. Retrucou Tristixinha.
_ Então, me retire de seu ser. Eu não tenho o poder de permanecer dentro de você, caso não me permita residir aqui. Informou Dona Tristeza.
_ E, como é que posso tirar você de dentro de mim? Perguntou Tristixinha.
_ Abrindo espaços para a alegria, por exemplo. Se ela entrar, eu saio. Temos frequências energéticas opostas e não suportamos coexistirmos juntas. Salientou Dona Tristeza.
_ Você deseja ficar ou sair de dentro de mim? Indagou Tristixinha.
_ Eu não desejo nada. Apenas, realizo o seu desejo de me manter aqui dentro ou de sair em busca de outro ser. Sendo mais clara...Você deseja! Esclareceu Dona Tristeza.
Apontando para as Lagartixas que conversavam, alegremente, numa farta mesa de lanche, à base de mosquitinhos de inúmeras espécies, Tristixinha perguntou:
_Você as habita também?
_ Às vezes, mas não consigo permanecer dentro delas por muito tempo. Elas possuem  uma energia poderosa dentro delas que me acolhe por certo tempo, mas acaba me expulsando, em algum momento, e cedendo espaço para  a alegria entrar.
_ Que energia é esta? Perguntou Tristixinha exalando muita curiosidade.
 _ Dona Felicidade. Poderosíssima! Exclamou Dona Tristeza expressando certo respeito e admiração por aquela energia .
 _ Não entendi muito bem! Por que ela deixa você entrar e depois te expulsa de lá. Perguntou Tristixinha franzindo sua testa.
_ Ela, inclusive, sempre me agradece quando eu vou embora. Sempre  diz ser necessária  minha presença, porém equilibrada, na vida das pessoas. Ponderou Dona Tristeza.  
_ Presença equilibrada desta dor que você nos oferta? Como assim? Perguntou confusa a lagartixinha tristonha.
_ Não sei lhe explicar muito bem. Você teria que acolher a Felicidade dentro de você para entender tudo isto na prática. A única coisa que ela sempre diz é que o equilíbrio oferta saúde, maturidade e iluminação para  todos os seres. Alertou Dona Tristeza.
_ Eu quero estas coisas. Parece serem boas! Se eu te mandar embora agora, você vai, Dona Tristeza? Demandou  Tristixinha.
_ É claro que vou! Mas, você quer isto mesmo? Afirmou Dona Tristeza indagando, ao mesmo tempo, o verdadeiro desejo de Tristixinha.
 _ Tem, por acaso, alguém que não quer? Perguntou a lagartixinha movimentando sua calda.
_ Tem muita gente que só me quer passageira. São aquelas pessoas dotadas de Felicidade. Outras, entretanto, me querem definitiva. Colocam a minha energia em tudo que pensam e fazem. Estão semmmpre tristonhas! Chegam, algumas vezes, a contrair uma doença chamada depressão que lhes rendem uma nova identidade. Explicou Dona Tristeza.
_ Identidade? O que é isto?
_ Identidade é como se fosse o seu rótulo, a sua marca. Estas pessoas passam  a ter o rótulo de depressivas e parecem ganhar algumas coisas com isto. Conjecturou Dona Tristeza.
_ O que elas ganham?
_ Muitas coisas! Cuidados médicos, atenção ou até mesmo a falta de atenção do outro que passa a não suporta-las. Mas, vítimas da falta de atenção ou de qualquer outra falta, elas ganham um álibi poderoso para me manter dentro delas. Acho que sou, de certa forma, viciante. Completou Dona Tristeza dando uma risadinha sarcástica.
_ Viciante? O que é isto? Perguntou, novamente, Tristixinha querendo compreender este mundo complexo relatado por Dona Tristeza.
_ É o que me mantem dentro de você. Se não estivesse viciada em mim, já me teria mandado embora  a muito tempo. Não ficaria me perguntando se eu iria embora. Você me colocaria para fora de você e pronto. Já faz muito tempo que estou dentro de ti. Já teve tempo suficiente para viver a minha dor  e aprender com ela algumas coisas. Se me mantem aí dentro é porque está viciada em mim. Você deseja ser uma lagartixa triste. De hoje em diante, lhe darei uma identidade nova. Seu nome passa a ser Tristixinha – a lagartixinha triste. Ironizou Dona Tristeza criando esta identidade para   Tristixinha.
_ Mas, eu quero ser uma lagartixinha alegre. Afirmou Tristixinha se opondo à Dona Tristeza.
_ Alegrixinha são as lagartixas que você fica assistindo todos os dias sem, no entanto, ter coragem de se aproximar delas. Sem perceber, se seduz a  ter a vida delas ao invés de construir a sua. Começou a ser habitada por Dona Inveja que precisa da minha mãozinha para se manter atuante na sua vida. Se tiver coragem de construir uma vida diferente, provavelmente, teremos que abandonar você. Por outro lado... Antes que Dona Tristeza continuasse falando, foi interrompida pela lagartixinha que se expressou apavorada:
_ Mas, eu não quero ser abandonada! Fui vítima do abandono desde o meu nascimento. Não tenho nada daquilo que as alegrixinhas possuem.
_ Você quer dizer que não possui um pai, uma mãe, enfim ,uma família e  amigos ? Acho que tem medo de ser abandonada até mesmo por mim. Foi por isso que lhe perguntei se desejava mesmo ser abandonada pela dor que lhe proporciono. Parece que te preencho de alguma forma. Mas, há outras maneiras de se preencher. Assegurou Dona Tristeza.
_ Como? Me ensine, por favor! Implorou Tristixinha.
_ Eu não tenho como lhe ensinar isto. Só posso lhe proporcionar o saber da dor. Mais nada além disto. Afirmou Dona Tristeza.
Tristixinha caiu em prantos pela primeira vez. Nunca havia chorado na vida. Sentiu que aquele choro era bom; aliviava um pouco a presença da dor e lhe fazia se sentir mais leve. A tristeza pesa; pesa tanto que, nos últimos tempos,  Tristixinha não conseguia nem se mover mais com facilidade. Cada movimento solicitava um esforço fenomenal. E, sem movimento, fica difícil ir em busca de coisas novas. Um pouco mais aliviada e relaxada, caiu no sono e dormiu profundamente. Foi acordada por uma alegrixinha que bateu, carinhosamente, em suas costas, despertando-a:
_ Ei, quem é você? Você está bem? Precisa de ajuda?
Tristixinha arregalou seus olhinhos assustados e congelou-se. Não conseguia movimentar-se para fugir e nem mesmo para dizer alguma coisa.
A alegrixinha assustada com a reação de Tristixinha chamou, apavorada, toda a família:
_ Socorro! Venham aqui atrás do armário. Temos um grande problema aqui.
A família, unida, correu até aquela parte da casa, até então desconhecida para todos e se depararam com Tristixinha congelada. Naquela momento, aquela lagartixinha triste deixou de ter qualquer sentimento. Anestesiou-se. Não sentia tristeza, medo, monotonia nem mesmo a alegria tão desejada. Parecia uma pedra de gelo. Cada membro da família das alegrixinhas tecia um comentário:
_ Ela parece uma estátua.
_ Mas, ela não é estátua não. È uma lagartixa como todos nós. Está gelada. _ Parece uma pedra de gelo.
_ O que podemos fazer por ela, mamãe?
_ Vamos cuidar dela. Respondeu a mamãe alegrixinha se aproximando ainda mais daquela lagartixa congelada,  colocando as  mãozinhas sobre o seu rostinho, acariciando-a.
_ Com certeza, precisamos cuidar dela. Mas, por onde devemos começar? Perguntou o pai de todas as alegrixinhas.
_ Que tal uma massagem daquelas bem gostosas que a senhora faz na gente, mamãe. Ficamos tão relaxadas com seu toque. Talvez, ela possa relaxar também. Sugeriu a alegrixinha mais velha.
_ Mais do que isto... Precisamos aquecer com o nosso toque este corpinho que parece nunca ter sido tocado. Completou a mãe.
_ Olha como a pele dela está ressecada e pálida. É pele de quem vive uma vida árida e de quem está seca por dentro. Precisamos hidrata-la com o nosso amor. Emendou o pai dando sequencia às observações da esposa.
A família inteira carregou Tristixinha até um dos cantinhos preferidos do sobrado, eleitos por elas, como a sala de massagem. Puxaram-na pelas perninhas e foram arrastando-a, com todo cuidado, para não causarem nenhuma dor física ao corpinho da mesma.
_Cuidado para não machuca-la! Carreguem com cuidado para ela não ficar com o corpo todo doendo amanhã.
Mamãe alegrixinha colocou suas mãos preciosas sobre aquele gélido corpinho  e iniciou uma massagem que durou mais de uma hora. À medida que massageava, o sangue de Tristixinha corria por todas as partes de seu corpo levando uma informação nova. Seu corpinho parecia dizer:
_ Mudança à vista!
Lentamente, seu corpo foi se esquentando e alguns tímidos movimentos começaram a brotar de suas mãozinhas.  Tristixinha sentiu uma sensação tão nova e tão prazerosa que não se permitia abrir seus olhinhos. A única coisa que queria, naquele momento mágico, era experimentar aquele toque. Entregou o seu corpinho, totalmente, para mamãe alegrixinha que doava muito mais do que um toque físico; doava um toque que Tristixinha jamais houvera experimentado antes – o toque do amor.
Terminada a massagem, Tristixinha abriu seus olhinhos. Seu olhar foi recebido por um outro olhar muito afetuoso. Mamãe alegrixinha lhe ofertou um sorriso,  expressando um convite jamais realizado por nenhum outro ser àquela lagartixa:
_ Seja benvinda! Estamos aqui para cuidar de você. Não precisa ter medo. Não lhe faremos mal algum. Só queremos lhe proteger.
_ Quem são vocês? Perguntou Tristixinha.
_ Somos uma família de lagartixas. Onde está a sua família? Perguntou a mamãe alegrixinha.
_ Eu nunca tive uma família, moro sozinha neste sobrado desde o dia em que nasci.
_ Como conseguiu sobreviver? Perguntaram todas as alegrixinhas em coro.
_  Você deve ser muito esperta. Se desejar, pode fazer parte de nossa família agora. Teremos o maior prazer em tê-la ao nosso lado. Afirmou o pai com uma autoridade afetuosa.
_ Mas eu não sei como fazer parte de uma família. Sou muito diferente de vocês. Pode ser que vocês não consigam gostar de mim. Lamentou Tristixinha.
_ Nós já estamos gostando de você. Como você se chama? Perguntou a mãe alegrixinha.
_ Fui rotulada de Tristixinha por Dona Tristeza que me habitou por muito tempo. Respondeu a lagartixinha,  naquele momento,  sem a tristeza dentro dela.
_ E agora, ela não lhe habita mais? Perguntou a alegrixinha mais nova.
_ Depois que fui massageada por vocês, não consigo senti-la mais aqui dentro. Acho que ela me abandonou. Tenho medo de me sentir sozinha e vazia sem a companhia dela. Salientou Tristixinha exalando certa preocupação.  
_ Você está se sentindo vazia e sozinha? Perguntou o pai.
_ Não, nem um pouco! Sinto um sentimento muito bom dentro de mim, mas não sei ainda do que se trata. Ele parece estar tomando conta de meu ser devagarinho. A cada minuto que passo com vocês, sinto cada vez mais forte a presença deste novo sentimento. Explicou Tristixinha começando a cultivar a alegria dentro dela.
_ Você quer deixa-lo entrar e habitar o seu coração ou deseja chamar Dona Tristeza de volta para lhe fazer companhia? Perguntou o pai.
_ Embora eu não conheça este sentimento novo e já conheça bem Dona Tristeza, prefiro arriscar. Vou deixar ele entrar e me habitar. Se eu não gostar dele, mando ele embora. Na verdade, talvez nem precise fazer isto, pois  Dona Tristeza me abandonou sem que eu tivesse que expulsa-la de dentro de mim. Deduziu a lagartixinha, agora, com outros sentimentos dentro dela.
_ Basta deixar entrar um sentimento para que outros saiam ou entre outros junto com ele. Todos os sentimentos que possuem a mesma frequência de energia andam juntos. Quando deixou o amor que sinto por você entrar, parece que a alegria começou a habitar você também. Vejo uma série de outros sentimentos na porta de seu coração pedindo para entrar também. Vejo a paz, a esperança, enfim uma infinidade de sentimentos bons querendo habita-la. Alertou a mãe alegrixinha.  
_ Pois eu vou deixa-los entrar! Exclamou Tristixinha com uma convicção jamais vivenciada antes.
_ E eu vou, de hoje em diante, lhe dar um outro nome. Daqui para frente, chamaremos você de Felixinha. Determinou a mãe das alegrixinhas dando um largo sorriso que além de acolher a nova lagartixinha, lhe proporcionava muita segurança.
Tristixinha foi abrindo seu coração devagarinho e a felicidade foi entrando, também, devagarinho. Quando se deu conta, era só felicidade! Ao longo de sua vida, pôde encontrar, de vez em quando, com Dona Tristeza. Só que depois que se tornou uma Felixinha,  a tristeza entrava e saia rapidamente. Ela nunca mais foi a única moradora de seu coração. Até o sobrado se alegrou com a chegada das alegrixinhas e com a importante mudança daquela lagartixinha que de tristonha se transformou para sempre em uma lagartixa feliz. Hoje, depois de muitos e muitos anos,  a Tristixinha só existe na lembrança de uma família de lagartixas felixinhas. E, quando alguma lagartixa é tomada por uma tristeza duradoura, todas as outras lagartixas recomendam: Se deseja a cura, abra seu coração e siga o exemplo de nossa antepassada e sábia Felixinha.