sábado, 1 de agosto de 2015

ESFREGUINHA



Dedico esta história a toda criança ativa que descobrindo o que muitos  adultos tentam negar e encobrir, acabam sendo reprimidas e  mal compreendidas  frente a ignorância daqueles que se julgam maduros, mas que possuem, na verdade, uma criança também reprimida e mal resolvida dentro deles. 


Num  gigantesco lago de águas cristalinas, rodeado por uma floresta  de árvores gigantescas de infinita beleza, vivia uma comunidade de patos selvagens. Ali, eles nasciam, cresciam e aprendiam as lições básicas para sobrevivência e para as inúmeras viagens que deveriam fazer ao longo da vida. Todos os anos, durante o inverno,  a temperatura ficava tão baixa que as águas do grande lago congelavam . As águas cristalinas por onde os patos selvagens nadavam e se compraziam durante a primavera e verão eram substituídas por uma imensa pedra de gelo.  Nadar; nem pensar! Só esquiando mesmo... Mas, pato não foi feito para esquiar.  O jeito era aproveitar a estação gelada para fazer maravilhosas viagens para outras regiões mais quentes. Retornavam quando a primavera chegava trazendo de volta o calor e a alimentação que já começava a ficar escassa no outono. No outono, embora as águas não congelassem, iam gradativamente ficando bem geladinha. As folhas das frondosas árvores se desprendiam dos galhos e uma paisagem desagasalhada começava a tomar conta de todo o lugar. O friozinho começava a chegar. E, foi  no meio deste friozinho que uma patinha chamada Vitória Régia,  muito simpática e feliz descobriu uma forma gostosa de se esquentar. Esfregando suas asinhas no seu corpinho, conseguia  se aquecer e fugir daquele frio que a deixava muito tensa. Se esfregando, esfregando, esfregando, seu corpinho além de aquecer, lhe proporcionava uma outra sensação muito gostosa. Vitória Régia descobriu que além de esquentar,  um prazer enorme brotava no meio daquele calor. Em  meio aquele frio todo, a patinha  suava de tanto se esfregar, percebendo que,  mesmo ofegante,  era muito gostoso fazer aquele movimento todo.
Inicialmente, se esfregar era uma boa solução para o problema do frio, mas este esfrega todo passou a se tornar também um problema, pois a patinha começou a ter tanta vontade de se esfregar para obter aquele prazer gostoso que passou a fazer isto muitas vezes ao dia e em lugares onde aquele esfrega todo não era bem-vindo. Quando ia para as aulas de natação e de voo, a patinha ao invés de prestar atenção nos ensinamentos do professor, preferia se esfregar, esfregar, esfregar... De tanto se esfregar, começou a chamar a atenção dos coleguinhas que achavam estranho aquela movimentação toda da patinha. Foi ai que seus coleguinhas começaram a chama-la de Esfreguinha. Vitória Régia não gostou nada daquele apelido, pois gostava muito de seu nome. Começou a ficar envergonhada todas as vezes que se esfregava e a achar que estava fazendo alguma coisa errada, pois todo mundo olhava aqueles seus gestos de uma forma muito esquisita. O olhar dos outros patos pareciam dizer:  Você está fazendo uma coisa errada! Vitória Régia começou a se sentir culpada. A culpa gera um incômodo que deixa a gente muito triste. Assim, o esfrega,  esfrega além de prazer deixava a patinha triste também.
Na verdade, não havia nada de errado no esfrega, esfrega de Vitória Régia, só estava errado o momento que ela escolhia para fazer aquilo. Ela precisava descobrir uma forma de resolver este conflito.  Onde poderia encontrar uma solução para este prazer que passou a se tornar um problema? Foi aí que Vitória Régia procurou a mamãe pata para compartilhar seu conflito. Contou para mamãe tudo que estava acontecendo e a mamãe com toda sua sabedoria orientou amavelmente a sua filhinha:
- Querida, você não precisa se preocupar. Eu tenho uma ótima saída para o seu conflito. Eu já passei por isto também e consegui resolver esta situação de uma forma muito simples. Não vamos deixar que este prazer se torne um problema na sua vida. Concorda?
- É isto mesmo que eu quero,  mamãe . Mas, não sei o que fazer... Eu queria parar de me esfregar, porém acho gostoso fazer isto. Eu me sinto tão relaxada despois que me esfrego...
- Realmente, esfregar desta forma relaxa bastante. No entanto, você precisa apenas saber o momento certo para relaxar. Tem hora para tudo. Se a mamãe ficasse só relaxando, não iria trabalhar e nem trazer comida para casa. Você só precisa aprender a controlar seu desejo. Nosso desejo não tem que ser atendido prontamente. Precisamos aprender a hora certa de satisfaze-lo. Nem toda hora é hora de dormir, embora dormir seja muito gostoso.
- E nem toda hora é hora de comer, embora comer seja muito gostoso também. Completou Vitória Régia.
- Isto mesmo. Vejo que compreendeu bem o que quero lhe ensinar. Não dá para realizar todos os desejos ou satisfaze-los na hora que eles aparecem. Precisamos saber a hora certa para cada coisa. Você não pode deixar que o desejo de se esfregar atrapalhe outras coisas que também são importantes  na sua vida, como estudar, brincar, comer, dormir e um monte de outras coisas que você precisa fazer na vida. Explicou com ternura a mamãe.
- Mamãe, eu não sei ainda qual a hora certa de me esfregar. Tem hora certa para isto? Perguntou Vitória Régia um pouco confusa.
- Não tem uma hora específica ou um dia da semana apropriado para isto. Você só não pode se esfregar em horas destinadas a outras atividades, como, por exemplo,  estudar. E, deve também saber que você deve se esfregar apenas na sua  intimidade para não  causar constrangimento para as outras pessoas. Ponderou a mamãe pata.
- O que é intimidade e o que é constrangimento? Perguntou Vitória Régia.
- Intimidade é um lugar e uma hora que pertence só a nós mesmos, ou seja, tem um momento do dia que você está apenas com você mesma e mais ninguém. Nesse momento, se o desejo de se esfregar aparecer, você pode se esfregar à vontade. Estando apenas com você, não irá incomodar ninguém. Tem momentos que são só nossos e de mais ninguém.  E constrangimento é um sentimento de estranheza que a gente causa no outro quando a gente tem um comportamento que não é adequado para o momento. Mesmo que a coisa seja certa, no momento errado, fica esquisito. Imagina se eu resolver começar a cantar de madrugada quando todo mundo estiver dormindo. Todo mundo vai achar esquisito, não é mesmo?
- Entendi, mamãe. Cantar não é errado, mas de madrugada quando o silêncio é necessário para todo mundo descansar ficaria realmente muito esquisito!
- É esta esquisitice que causaríamos no outro, que a gente chama de constrangimento. Completou a mamãe pata.
-Entendi perfeitamente, mamãe. Só que tem ainda um problema...
-Que problema filhinha? Perguntou a mamãe dando uma gostosa risadinha.
-E se eu tiver muita vontade, muita vontade mesmo e não conseguir esperar a hora da intimidade para me esfregar? O que eu devo fazer?
-Se estiver na frente de outras pessoas, procure um lugar onde não tenha ninguém. Crie um lugar de intimidade para fazer isto sem causar o tal constrangimento nas pessoas ao seu redor. Mas, o ideal é você aprender a dominar o seu desejo e a melhor maneira de fazer isto é parar de prestar atenção no seu desejo e focar a sua atenção naquilo que está acontecendo no momento. Você pode também,  procurar uma outra atividade que distraia a sua atenção. É melhor que aja assim, pois não ter controle sobre o seu desejo pode ser muito perigoso. Alertou a mamãe arregalando seus olhinhos e olhando profundamente nos olhos da filha.
-Perigoso! Como assim, mamãe. Perguntou Vitória Régia exalando preocupação.
-Quando o nosso desejo começa a mandar na gente e perdemos o controle sobre ele, uma doença muito séria chamada obsessão passa a nascer dentro da gente.
- Obsessão! Que doença é esta, mamãe? Perguntou a patinha mais assustada ainda.
- A pessoa obsessiva só consegue pensar naquilo que o desejo manda e passa a se tornar escrava dele. Por isso, a gente tem que dominar o nosso desejo e não o contrário. Você quer se tornar escrava de seu desejo? Indagou a mãe pata.
-De jeito nenhum, mamãe! Eu quero ser livre. Não vou deixar que meu prazer se me esfregar se torne uma doença. Eu sou dona de meu desejo e não o contrário. Pode deixar que eu vou saber muito bem determinar os meus momentos de intimidade. Respondeu Vitória Régia com muita determinação.
Daquele dia em diante, Vitória Régia conseguiu dominar não só o seu desejo de se esfregar, mas todos os seus desejos. Aprendeu a  vive-los na hora certa e com muito prazer. Seu esfrega,  esfrega deixou de ser um problema para ser uma solução para relaxar em  seus momentos de intimidade. Seus colegas nunca mais a chamaram de Esfreguinha, pois Vitória Régia aprendeu a fazer a coisa certa na hora certa.