sábado, 26 de outubro de 2013

LIBERTE SUA CRIANÇA


Dedico esta história à nossa criança aprisionada: Que possamos liberta-la!



 Liberte sua criança





De repente,  me dei conta de que precisava ir a busca da paz. Resolvi fazer uma viagem pelo mundo certo de que a encontraria em algum lugar. Pensava que se estivesse em paz tudo estaria resolvido, pois são justamente os problemas que não conseguimos resolver que nos deixam em conflito. Queria nesta busca descobrir se a paz é que resolve nossos problemas ou se é a resolução de nossos problemas que nos deixa em paz.

         Quando, finalmente, decidi sair pelo mundo reuni com minha família informando-a sobre esta minha importante viagem. Deixei claro que ficaria um bom tempo distante deles para tentar encontrar a paz em algum lugar e assim que a encontrasse voltaria com ela ofertando-a a todos. Curioso, meu filho mais novo perguntou:

— Papai, o que é paz?

Não tive naquele momento uma resposta para uma pergunta tão simples e ele me questionou novamente:

— Se não sabe o que é paz, como poderá encontrá-la?

Sentindo-me envergonhado com o questionamento de uma criança tentei dar-lhe a todo custo uma resposta:

— Na verdade, a paz é um estado de harmonia e tranquilidade.

         Como toda criança, ele me fez uma nova pergunta:

— E o que é harmonia e tranquilidade?

         Percebi que se tentasse apenas buscar conceitos para responder suas perguntas ficaríamos eternamente presos em definições. Achei que seria mais prudente dar-lhe uma resposta buscando uma experiência concreta.

— Toda vez que estamos bem alegres sem pensar em nada que nos perturbe, estamos em paz.

         Neste momento os olhinhos de meu filho se encheram de luz. Foi como se tivesse feito a maior descoberta de sua vida. Cheio de entusiasmo, falou:

— Já que esta paz que procura é tão importante, eu posso ajudá-lo a encontrá-la. Você não precisa rodar o mundo, ela está aqui, eu a conheço e brinco com ela todos os dias. Amanhã deixarei que brinque com ela também.

         Tentando brincar com meu filho e não dando tanta credibilidade ao que falava por julgá-lo inocente e ingênuo, o censurei com doçura:

— Mas, como é que você não me apresentou ela até hoje?

— Por dois motivos, papai. Primeiro, porque você nunca me falou que a procurava, talvez estivesse mais preocupado em procurar problemas. E segundo, porque apesar de brincar com ela todos os dias nunca me preocupei em perguntar o seu nome, me sentia satisfeito com o simples fato de tê-la ao meu lado.

         Fiquei chocado com o que ouvi. Nunca pensara que meu filho, na condição de criança, pudesse estar atento à forma como eu vinha conduzindo minha vida. Percebi que o ingênuo ali era eu e que a inocência talvez fosse um atributo importante para quem deseja a paz. Na verdade, só os inocentes conseguem senti-la. Quem não vive a inocência, se sente culpado e vive em conflito constante consigo próprio. Sem perceber que era um mestre a criança que eu pensara educar, acabei recebendo ali uma lição de vida. A simplicidade era tanta que cheguei, no meu íntimo, achar impossível encontrar a paz que eu julgava tão complexa na pureza de uma criança. Mesmo assim, combinamos encontra-la no outro dia. Iria muito mais para cumprir o dever de um pai no sentido de julgar-se interessado pelas coisas do filho do que na esperança de ser realmente apresentado à paz por uma simples criança.

         No outro dia meu filho tomou-me pela mão e saiu comigo rumo às montanhas. Durante a caminhada ele me falou assim:

— Hoje, nós combinamos brincar de voar como os passarinhos. Ontem, nós brincamos de nadar como os peixes no rio. Foi ótimo!

— Me fale de tudo que vocês costumam brincar. Perguntei, curioso, tentando desvendar as fantasias de uma criança.

— A gente brinca de ser... De ser... De ser, sei lá... Ser... Ele não conseguia complementar a sua resposta.

         Percebi que sua resposta talvez não tivesse mesmo um complemento. Talvez fosse simples o suficiente para a nossa mente adulta querer complicar. Brincar de SER seria a resposta. Não tentei complicar a questão, na verdade nem tive abertura para isto, pois antes que me desse conta, meu filho já estava lá no alto da montanha com os braços abertos prontos para voar como um pássaro. Desceu correndo, batendo os braços e dando gargalhadas de soluçar. Chegou, finalmente, junto a mim e pediu que voasse também. Tentei, mas não senti a harmoniosa sensação que meu filho demonstrava. Decepcionado, ele olhou-me nos olhos e disse:

— Talvez, você prefira planar...

         Levou-me até o alto da montanha novamente. Tirou as roupas, fechou os olhos, abriu os braços e se limitou a ficar quietinho apenas sentindo o vento tocar em seu corpo. Tentei fazer o mesmo, mas achei-me ridículo. Abri meus olhos e encontrei a paz, não em mim, mas em meu filho. Descobri que ela era muito mais do que a tranquilidade e harmonia; era, na verdade, a genuína alma de uma criança. Tive a plena consciência de que enquanto eu estivesse fechado e achando ridículo o que era demasiadamente simples e belo, jamais conseguiria encontra-la. Era necessário me abrir. Antes de voar, talvez precisasse abrir meus braços para acolher o que sempre rejeitei. Naquele momento abri meus braços para abraçar meu filho e lhe disse com fervor:

— Obrigado filhinho! Adorei a sua companheira, no entanto preciso ainda aprender a brincar com ela. Acho que estou pesado demais, não consigo voar e nem planar.

— Por que você ficou pesado, papai?

— Acho que é porque virei gente grande.

— Desse jeito eu não vou querer crescer, eu vou querer ser sempre uma criança.

— Pois eu lhe digo uma coisa muito importante, meu filho. Você pode crescer sem receios, só não pode deixar nunca de ser uma criança também.

— Tem jeito de ser gente grande e criança ao mesmo tempo? Perguntou-me confuso.

— Acho que sim. Preciso descobrir. Acho que preciso ir atrás da criança que mora dentro de todos nós, principalmente aquela que mora dentro de mim. Se eu encontra-la, com certeza ela estará assim como você, de mãos dadas com a paz e brincando com ela todos os dias.

         Foi assim que resolvi sair pelo mundo em busca da criança. Passei por campos de guerra e vi a criança bombardeada nos corações dos homens. Estava muito ferida e não conseguia se exercer. Na maioria dos combatentes ela já havia morrido. Passei pela miséria e vi a criança desnutrida e sem força. Não conseguia levantar-se e chorava de fome. Descobri aí, que para ser criança não basta ter pouca idade, pois vi muitos seres pequeninos carregando a senilidade dentro deles e mais à frente deparei-me com um idoso que trazia junto de si a criança mais levada que conheci. Todos diziam que ele havia caducado, mas ele me disse um grande segredo ao pé do ouvido que jamais esquecerei:

— Cansei de ser adulto. Se eu precisar ser um velho caduco para libertar a minha criança, serei. Não conte a eles que não estou caduco, pois senão me obrigarão a ficar, novamente, cego como eles que só enxergam a luta da vida. Sem enxergar, eu corro o risco de perder minha criança e se eu perde-la não terei paz enquanto não encontra-la novamente.

         Saí dali pensando na minha luta para encontrar a paz. Que contradição! Passei também por templos religiosos. A criança não estava lá, somente pessoas sérias, e a paz eles afirmavam estar no paraíso. Ali, fiquei sabendo que o paraíso é um lugar muito distante onde mora um homem chamado Deus. Se o Deus deles pelo menos fosse criança, eu acreditaria no paraíso deles.

         Tive contato com ambientes festivos onde vi de tudo. Vi pessoas brincando com sua criança e outras tentando alicia-la. Tive a oportunidade de observar muitas famílias educando suas crianças, ensinando a elas etiquetas de boas maneiras. Na maioria delas, boas maneiras para deixar de ser criança e deixar de ser feliz. Nos ambientes de trabalho, simplesmente, nunca houve espaços para a criança. Existem, inclusive, leis que proíbem o trabalho para criança. Sendo assim, no trabalho a gente aprende a ser apenas gente grande.

         Depois de buscar tanto a criança, eu me perdi. Não sabia mais porque a buscava. A lembrança de meu filho e da paz que brincava com o mesmo todos os dias me ajudou muito. Cheguei à conclusão que faltava apenas eu olhar para dentro de mim mesmo e ter a coragem de correr o risco de libertar a minha criança. Não sei como, mas tive esta coragem. Quando me olhei com carinho e ternura a vi sorrindo para mim. Linda! Apesar de sapiente não sabia ainda se defender dos adultos. Ela me olhou com um olhar triste e disse:

— Estou de castigo.

— Por que? Perguntei.

— Porque deixei de fazer o dever de casa para poder brincar. Respondeu melancólica.

— Por que você não fez o dever de casa para brincar depois? Questionei, censurando-a.

— Porque além de chato ele é grande demais para mim e não sobra tempo para brincar.

         Tomei um susto e a criança desapareceu. Parei para pensar no tamanho e na qualidade de meu dever e cheguei à conclusão que eu só consigo pensar no que devo fazer e nunca no que posso fazer. Devendo fazer tanta coisa eu passei a dever muito e perdi a paz com tanta dívida. Desde então, passei a buscar o que posso fazer diferente e vez e outra vejo minha criança reaparecendo para mim com um rostinho mais alegre dizendo:

— Parece que falta muito pouco para o castigo acabar!

         Outro dia sonhei com ela e no meu sonho ela era um lindo anjinho com asinhas salientes prontas para voar. Depois deste sonho subi, novamente, a montanha com meu filho e consegui finalmente voar.

         E se você não entendeu ainda esta história e deseja que eu lhe explique mais uma vez o que criança tem haver com paz, eu lhe respondo:

-Tudo!!!!!!!

         E tem mais... Se você ainda tem esta dúvida é porque não tirou a sua criança do castigo.








terça-feira, 27 de agosto de 2013

UM MUNDO PERFEITO

 Dedico esta história à imperfeição e ao nosso inquietante desejo de transcende-la


Vou lhes contar a história de dois mundos bem diferentes um do outro. O primeiro era o mundo de Xambu, um nobre guerreiro. Para Xambu , o seu mundo era perfeito e instigante.

O segundo era o mundo de Gumã, um cientista que se dedicava à   pesquisa dos nobres sentimentos . Para Gumã, o seu mundo era imperfeito e insuportável.

O mundo de Xambu vivia em guerra e no mundo de Gumã reinava a paz e o amor. Xambu tinha tudo que um guerreiro precisa para viver sua  energia bélica. As desigualdades, a miséria, as injustiças e a crueldade faziam do mundo de Xambu o lugar perfeito para ele exercitar a sua missão de vida e  sentir-se útil e valorizado por aqueles pelos quais lutava. Xambu nunca questionava a ordem  de seu mundo. Sabia, apenas, que deveria lutar contra a desordem. Mesmo sem ter consciência, apreciava a desordem que ordenava, de certa forma, a sua razão de viver.

         Certo dia, Xambu foi convidado a conhecer o mundo de Gumã. Passaria lá uma boa temporada para que pudesse aprender algo novo e inusitado, capacitando-o a levar para o seu mundo as lições de paz, justiça e igualdade de direitos que ali reinavam. Xambu achou uma grande chatice aquele mundo tão organizado e sem problemas, sentia-se ocioso e pouco valorizado, pois não tinha com quem e por quem guerrear. Aproximando-se de Gumã, questionou-o de maneira tosca:

−Seu mundo é muito chato!

−Concordo plenamente – confirmou Gumã.

−Como é que você consegue viver aqui? Não há o que fazer. Tudo que deve ser feito parece já estar concluído.

−Estou em busca de um sentimento que seja o mais elevado de todos. É necessário ultrapassar a paz e o amor a fim de se conquistar um sentimento ainda mais sublime e perfeito.

−Paz, amor... Esta busca te alimenta? Perguntou Xambu confuso sem entender muito bem o que Gumã realmente pretendia. A busca daquele cientista lhe parecia vaga e sem sentido.

−Só me sinto, a cada dia, mais frustrado. Dá vontade de desistir de tudo! Tem sido muito difícil viver aqui. Eu preferiria estar lá.

−Lá? Onde? Perguntou Xambu confuso sem saber que lugar Gumã se referia.

−Lá; um lugar perfeito onde existe o que eu busco. É horrível ter que conviver aqui com este problema tão grande.

−Mas, o que eu vejo em seu mundo é justamente o contrário. Vejo  falta de problemas. Aqui reina alguma coisa que  deixa seu mundo muito parado, devagar. Se vocês tivessem os problemas de meu mundo, talvez, estivessem mais satisfeitos.

−Mas, os problemas geram insatisfação. Pontuou Gumã.

−Não! Os problemas movem o nosso mundo. Se não existissem problemas, solucionada estaria a vida e nada haveria por se fazer. E, eu sou um guerreiro, preciso lutar por um ideal que jamais será alcançado.

−Como assim? Não faz sentido lutar por algo se você sabe que não se alcançará nunca. Retrucou Gumã.

−O grande sentido é perseguir. Depois de alcançado perde a graça. Por isso, criamos sempre novos problemas para, a partir daí, criarmos novos ideais a serem perseguidos, justificando a nossa permanência nesta vida. Justificou Xambu.

−É muita maluquice o que você esta falando! Preciso conhecer seu mundo e os seus problemas para entender a lógica de seu raciocínio.

−Será um grande prazer! O meu mundo não é muito longe daqui. Fica do outro lado do seu. Se quiser, posso levar voce agora mesmo.


Xambu levou Gumã  ao seu mundo. Assim que cruzaram a fronteira, entraram na zona de conflito mais perigosa de todo o território. O silêncio do mundo de Gumã foi substituído pelo barulho de explosivos e tiros  que ecoavam por todos os lados. A paisagem verdejante e serena foi substituída por um cinza  árido e sangrento. O olhar tranquilo e brilhante de seu povo foi substituído por um olhar colérico, opaco e desolador. Naquele mundo não havia espaços para a paz e o amor. Onde estariam estes sentimentos num mundo atordoado pelo instinto de morte e destruição? Por que, ao invés de investir na busca de sentimentos nobres, já triviais em seu mundo, aquele povo se limitava a viver valores e sentimentos tão destrutivos? A imperfeição que Gumã  atribuía ao seu mundo era uma perfeição jamais sonhada por aquele povo. A vivência da paz e do amor exigia uma evolução que eles ainda não possuíam. Como esta evolução fazia falta para aquele mundo em guerra! Se eles tivessem consciência dos ganhos que teriam com esta evolução, talvez se comprometeriam mais com a mesma. No entanto, a ignorância não permitia. Diante de tanta precariedade, Gumã passou a valorizar mais a evolução de seu povo. O amor e a paz deixou de ser um sentimento que precisava ser transcendido. Mesmo que houvesse, no cerne deste universo, sentimentos e virtudes mais poderosas, a compreensão de que a paz e o amor não perdem o seu valor e a sua importância por isto, deixou Gumã mais tranquilo. Ele estava perdendo a paz por desejar tanto e por desejar algo maior do que ela. Ele estava deixando de amar por desejar algo maior que o amor. A perda gradativa destes dois sentimentos, gerou, concomitantemente, um conflito interno e uma guerra consigo mesmo. O seu mundo interior já estava ficando bem parecido com o mundo de Xambu. Só depois desta compreensão, Gumã pode alcançar uma paz e um amor maior ainda do que a paz e o amor que ele conhecia . Percebeu, finalmente, que mais importante que transcender estes dois sentimentos, era transcender a si próprio. Que era, sobretudo, mais sábio aperfeiçoar-se do que buscar a perfeição.

domingo, 11 de agosto de 2013

O AQUÁRIO E O MAR

Dedico esta história ao mundo que você decidiu, por amor, viver


O Aquário e o Mar



Miúdo, era um peixinho deveras miúdo que morava dentro de um aquário relativamente grande. Omar era um outro peixinho, não tão miúdo, mas não tão grande quanto o mar que habitava. Não se sabe como, talvez por telepatia, os dois travaram, repentinamente, uma interessante conversa.

─Como você suporta viver num lugar tão apertado? Perguntou Omar incomodado com o habitat de Miúdo.

─Eu é que pergunto. Como é que você tem coragem de viver num lugar tão grande e cheio de perigos?

─Perigos existem em toda parte. Rebateu Omar.

─Com certeza, mas o perigo aqui é bem menor ─ Sustentou Miúdo ─ Não há nenhum peixe grande que possa me devorar. Continuou.

─ Mas há gatos, crianças maldosas e até mesmo a chance de seu dono esquecer de lhe alimentar e trocar a sua água. Você já pensou como seria terrível morrer de fome e numa água totalmente poluída e sem oxigênio? Ironizou Omar.

─ Da poluição você não está livre. O homem com seus grandes navios e indústrias poderia também poluir o mar. Você correria o mesmo risco que corro – Apontando para uma televisão de 40 polegadas bem à frente de seu aquário, continuou - Já ouvi dezenas de noticiários relatando poluições de rios e mares que mataram toneladas de peixes. Quando vejo estas notícias agradeço a Deus pelo meu aquário. Suspirou Miúdo

─Posso até morrer numa situação destas, mas tenho mais chances de fugir.

─Fugir? Se vocês não dão conta de fugir nem dos anzóis e das redes... Ironizou Miúdo.

─O fato é todos nós temos que morrer um dia. Pelo menos eu morrerei sabendo o que é liberdade.

─ E cheio de adrenalina no sangue. Interrompeu, Miúdo, ironicamente.

─ E você. O que tem neste sangue? Se é que tem algum. Criticou Omar com severidade.

─ Não precisa apelar! Eu vivo tranquilo sem me preocupar com os tubarões, anzóis e redes. Procuro também não pensar nos gatos e nem mesmo numa possível negligência de meu dono. Meus poucos amigos me bastam, formamos uma bela família e a proteção é tudo que preciso. No meu mundo me sinto protegido. Nunca me assustei com nada. Vivo constantemente relaxado. Medito grande parte do dia. Aliás, me sinto um verdadeiro Buda.

─ Buda. Que piada! Não me faça rir. Irrompeu Omar numa grande gargalhada.

─ Não precisamos de muito para nos sentirmos iluminados. Precisamos apenas de paz. Ressaltou, Miúdo, gesticulando tranquilamente as suas nadadeiras. 

─A iluminação só acontece para quem é livre. Você não é e nem mesmo os seus amigos. Olhe a cara de tristeza e desânimo deles. Tem gente que não quer enxergar a verdade!

─ Muitos são realmente tristes, mas eu me sinto feliz e o mais importante ─ Sou livre! Você também não consegue enxergar uma verdade que fuja dos padrões de felicidade estabelecidos por você. Censurou Miúdo desafiando Omar a pensar mais em seus padrões de vida.

Omar parou pensativo e de certa forma surpreso com a colocação daquele peixinho, até aquele momento, menosprezado por ele. Nunca parara para pensar neste assunto. Percebeu que faltava mobilidade em sua mente para pensar diferente, apesar do amplo espaço que habitava. Era um toque interessante. Pensou consigo mesmo – Como este peixe que nunca saíra do aquário podia ter tanta sabedoria? Mas, mesmo admirado, preferiu continuar desafiando-o.

 ─Como pode ser livre preso dentro de um aquário?

 ─Me sinto livre no meu mundo. Não me sinto obrigado a estar aqui. Nasci aqui e este é o meu lar. Amo-o acima de tudo. No seu mundo eu me sentiria aprisionado. Estaria sempre ansioso à espera de um tubarão ou peixe grande que pudesse me devorar. Nadaria sempre desconfiado olhando para os lados. Liberdade sem tranquilidade não existe, pois me sentiria um escravo dos perigos que me rondariam a todo o momento.

─ Mas eu não me sinto um escravo dos perigos. Deve haver algo errado com você. Nado tranquilamente sem temer os tubarões. Aprendi a me defender nos momentos em que as situações exigirem e não antes delas acontecerem. Talvez aí, neste mundinho apertado, onde eu não tivesse para onde fugir ou me esconder, talvez aí, eu pudesse me sentir inseguro, ansioso e preocupado. Temeria os gatos e até mesmo a possibilidade de meu aquário se espatifar.

─Eu também aprendi a agir assim como você, porém aqui no meu mundo. Não temo gatos e nem mesmo a remota possibilidade do meu aquário explodir.

─Acho então, que tudo é uma questão de opção de vida. Vivemos bem em mundos totalmente diferentes. Talvez não tenha um mundo melhor ou pior do que o outro. Acho que a grande sabedoria é saber viver bem, seja lá onde for; gostar de onde vivemos sem o incômodo desejo ou obrigação de viver em outro lugar que não seja o nosso ─ Ou melhor ainda, onde o nosso coração não esteja. Concluiu Omar.

─Pode ser. Concordou Miúdo

─Então, estamos quites. Ninguém é mais ou menos feliz do que o outro. Estamos satisfeitos e é isto que importa. Tenho que admitir que muitos peixes neste mundo maravilhoso que vivo parecem não enxergar a beleza. Vivem reclamando e buscando um padrão de vida que não existe aqui e talvez em lugar nenhum.

─Isto acontece aqui também. Como você mesmo pôde observar, a maioria dos peixes que vivem dentro deste aquário está triste. Se a possibilidade do mar não existe para eles, o melhor é aprender a viver bem com aquilo que o aquário oferece. No entanto, eles parecem não perceber isto.

─Mas, ás vezes me pergunto se eles não estão certos. Talvez, conseguissem chegar ao mar se desejassem ardentemente e lutassem para isto.

─A luta aqui seria improdutiva. Só levaria ao estresse.

─Estresse? O que é isto?

─Outro dia assisti um noticiário muito interessante sobre o assunto. Dizem que o estresse é um distúrbio que nos provoca exaustão e falta e energia.

─Como isto acontece? Perguntou Omar cheio de curiosidade, pois apesar de nunca ter ouvido falar deste assunto, já observara muitos peixes em seu mundo com estes sintomas.

─Deve ser por insatisfação. Estão sempre buscando, buscando, buscando... Quando encontram aquilo que buscam, nasce uma outra insatisfação para fazê-los buscar mais. E assim, viver vai se tornado uma tarefa muito difícil.

─Mas, viver não é uma tarefa, é uma dádiva. Questionou Omar.

─É uma dádiva somente para aqueles que conseguem enxergar a fartura que a vida nos oferece. A maioria só enxerga a falta e vivem buscando algo que possa preenchê-la. Salientou Miúdo.

─Talvez por isso consigamos ser felizes em nosso mundo. Estamos satisfeitos com a fartura que o nosso mundo oferece, apesar de serem dois mundos completamente diferentes.

─Acho que não teremos esta doença. Suspirou Miúdo sentindo-se bem aliviado.

─Então é melhor pararmos a nossa conversa por aqui antes que passemos a desejar o mundo do outro. Desejo demais estressa! Prefiro me deixar levar pela corrente do mar, pois nadar contra a maré deixa a gente com uma cara muito feia. Tem um amigo meu que entortou todo.

─E, não sou eu que irei criar corrente onde não tem. Nesse meu mundo sem corrente, o gostoso é se entregar e relaxar nos braços da mãe água. Por isso, estou sempre de cara boa.

─Agora eu entendo... Lutar para chegar a lugar nenhum só faria os peixinhos daí agitar a mãe água. O máximo que conseguiriam seria este tal estresse que você falou.

─É isto aí! Lembre-se de uma coisa muito importante. O melhor lugar é aqui e agora.

Repentinamente, a conversa acabou e eu me vi aqui confusa sem entender como pude presenciar este bate papo tão proveitoso. Fazendo um grande mergulho nas profundezas de meu ser, descobri o aquário e o mar dentro de mim. Por alguns minutos fiquei a pensar qual deles eu habito, mas descobri que eles é que habitam a minha alma. Por outro lado, descobri também que eles não poderiam estar vazios, assim, observando um pouco mais, pude encontrar neles, imersos, o meu dia a dia.



segunda-feira, 22 de julho de 2013

O SONHO DA SEMENTINHA

Dedico esta história à todos aqueles que se posicionam com otimismo, determinação e confiança, mesmo quando as circunstâncias se tornam difíceis e, até mesmo, insuportáveis


O Sonho da Sementinha


         Lá estava ela, dentro de um túnel escuro, sem saber ao certo quem era. Carregava consigo o dom de ser uma flor, mas não conseguia se afirmar como tal. Contida em um sonho que jamais se desabrochava pôs-se a chorar sendo repreendida por dona minhoca que passando por ali a censurou com aspereza:
— Que coisa incômoda é esta a tirar a tranqüilidade do nosso lar?
                                     A doce e suposta flor querendo se desculpar e desabafar sua dor sussurrou baixinho no ouvido de dona minhoca:
— Desculpe-me, eu não queria tirar-lhe o sossego. Sou apenas uma linda flor que se sente acuada e presa.
             Dona minhoca deu uma estridente gargalhada e pontuou com ironia:
— Vê se te enxerga! Será que além de incômoda és cega também? Você não passa de uma coisa qualquer. Flores não vivem aqui, vivem em jardins. Você não tem a forma, o aroma e a beleza de uma flor.
              A sementinha indignada com a descortesia da minhoca perguntou:
— Como posso me enxergar neste mundo tão escuro e apertado? Não há espelhos por aqui.
— Eu posso ser o seu espelho, basta que você acredite naquilo que eu lhe disser. Neste mundo tão escuro é difícil a gente se perceber. Precisamos do outro para nos dizer quem somos.
— Mas, você me disse que sou uma coisa qualquer e eu não me sinto assim. Sei que sou uma flor ou carrego no mínimo o dom de sê-la.
— Se você quer acreditar na sua fantasia vai acabar maluca um dia. Repreendeu a minhoca abanando a cabeça em sinal de reprovação saindo logo em seguida sem dar muita atenção àquela coisinha que se julgava uma flor.
                 A sementinha confusa permaneceu ali, quietinha, se questionando:
— Será que sou maluca? Será que não é flor o que vejo e sinto dentro de mim?
                 Perdida em seus pensamentos foi desperta por uma formiga que começou a tocá-la de uma forma diferente. Sem saber das intenções da mesma, protestou em voz alta:
— Hei, o que você está fazendo comigo? Para onde está me levando? Largue-me! A formiga incomodada com tal protesto ordenou com firmeza e sem educação:
— Cale a boca! De hoje em diante você será o meu alimento. Espero que preste pelo menos para isto.
— Mas eu não sou alimento de ninguém. Eu sou uma flor! Solte-me, por favor!
                 A formiga não deu a mínima e continuou sua caminhada carregando-a nas costas. Apertada e presa como sempre, só que desta vez sob as garras da formiga, foi tomada de um medo intenso fechando os olhos, tentando negar esta nova condição de aprisionamento que a formiga lhe impusera. E assim foi levada durante muito tempo a algum lugar que nem mesmo sabia onde. Repentinamente, sem saber como, sentiu um certo alívio. Resolveu abrir os olhos e se deparou com uma grande surpresa. Um mundo inédito e luminoso se descortinou à sua frente. Mesmo querendo manter seus olhos abertos, a claridade lhe incomodava e involuntariamente os fechavam. Numa tentativa de se adaptar à nova situação, vivendo o incômodo e o fascínio em concomitância, perguntou, ansiosamente, à formiga:
— Que lugar é este?
                Sem querer perder seu tempo com explicações, a formiga continuou a sua caminhada sem dar nenhuma resposta à sementinha. No entanto, foi vencida pela insistência daquela florzinha contida numa semente que lhe perguntava repetidamente:
— Por favor, me diga que lugar é este?
— Você precisa me deixar trabalhar sossegada! Repreendeu a formiga.
— E você precisa me responder que lugar é este! Insistiu a sementinha.
— Isto é um jardim deserto e abandonado. Respondeu, finalmente, a formiga impacientemente.
— Talvez aqui seja o meu lugar. Sou uma flor e preciso de um jardim. Pode me deixar aqui, por favor?
— Você quer ficar num lugar que nem mesmo existe? Ironizou a formiga.
— Como assim? Como pode existir um lugar que não existe? Se ele está aqui é porque existe. Ponderou a sementinha.
— Jardim deserto e abandonado é simplesmente um lugar que não existe para ninguém. Completou a formiga.
               Neste momento, a sementinha foi tomada de grande angústia. Aquelas palavras tocaram no seu mais íntimo ser. Identificou-se com aquele jardim, pois era também uma flor que não existia para ninguém. Precisava tanto de um jardim e ele estava ali, deserto. Talvez aquele jardim também precisasse de uma flor para viver o seu mais nobre sonho, e ela, florzinha ainda contida, estava bem ali, assim como ele, abandonada e deserta. Era necessário que um começasse a existir para o outro fazendo desabrochar o sonho contido. Desesperada suplicou à formiga:
— Me deixe aqui para que eu possa me exercer neste jardim!
               A formiga não dava a mínima e continuava seu trabalho de carregar o seu precioso alimento. Este era um dos trabalhos mais importantes na comunidade das formigas. Quanto mais a sementinha se debatia em súplicas, mas apertada ia ficando nas garras daquela formiga ensurdecida para suas lamentações. Repleta de inquietação começou a repetir incessantemente a mesma frase numa tentativa de vencer a formiga pelo cansaço:
— Você nunca pára para me ouvir. Para que tanta pressa?
               Vencida pela insistência, a formiga respondeu irritada:
— Como você é chata! Não vê que não posso parar. A minha vida é trabalhar e nada mais. Não tenho tempo para bate papos.
— Poxa, viver só de trabalho deve ser muito ruim. Eu sonho com uma vida melhor que não se limite apenas a uma coisa só.
— Pois saiba que o meu trabalho é a minha vida e é ele que transformará você no meu alimento. Sendo assim, você não terá tempo para viver os seus sonhos. Se aquiete e não perca tempo com eles.
— Sonhar não é perda de tempo. Sonhar é o tempo e o espaço que abriga uma vida ainda melhor. Ressaltou a sementinha com sabedoria.
               A formiga foi ficando curiosa com aquele jeito esquisito da semente  de pensar sobre a vida. Sem perceber, foi estendendo o assunto numa tentativa de desvendar a curiosidade acerca de um mundo totalmente desconhecido vivenciado por outro ser.
— Só o trabalho tem o poder de melhorar a nossa vida. Afirmou a formiga.
— Mas, sem o sonho o trabalho perde o sentido. O trabalho existe para ajudar a realizar os nossos sonhos. Completou a sementinha.
— Nunca sonhei. Não tenho tempo para isto. O meu lema é: “Trabalhar para sobreviver!”.
— Acho que somos muito diferentes. Enquanto você pensa em sobreviver, eu penso em viver plenamente.
— O que é viver plenamente? Perguntou a formiga cheia de curiosidade.
                Aproveitando a curiosidade da formiga e querendo tirar proveito da situação, a sementinha falou com sabedoria:
— Eu não posso dizer-lhe o que vem a ser viver plenamente. Eu posso apenas mostrar-lhe. Para isto você terá que me largar neste jardim que você julga não existir para que o sonho de ser uma flor possa, finalmente, desabrochar inaugurando uma vida plena.
                A formiga querendo se manter no controle e poder expressou, finalmente, o seu autoritarismo:
— Você depende de mim! Se eu leva-la, mato uma flor e um sonho.
— E eu não poderei matar a sua curiosidade. Você passaria o resto da sua vida pensando no que vem a ser uma vida plena. Instigou a sementinha.
— Ah! Eu pensando? Nunca me imaginei assim. Não tenho tempo para pensar. Como já lhe disse, a minha vida é só trabalhar. Daqui a pouco nem me lembro mais que você existe.
— Mas, isto é muito sério! O trabalho roubou suas lembranças? Perguntou a sementinha.
— Para que servem as lembranças?
— Para viver o prazer de recordar um sonho que pôde ser vivido. Assim, aumentamos a nossa fé passando a acreditar ainda mais na possibilidade de viver todos os sonhos que carregamos dentro do nosso ser.
— Pois eu não carrego sonho algum, carrego apenas você nas minhas garras. Vamos parar com esta conversa, pois você está ficando pesada e eu cada vez mais cansada.
— Se você soubesse sonhar se cansaria menos e se cansando menos tudo ao seu redor ficaria mais leve. Falou com ternura a sementinha acuada numa tentativa de estimular na formiga outra forma de ser.
— Como é que o sonho pode descansar alguém?
— Na verdade, não somos apenas nós que carregamos um sonho, o sonho também nos carrega. No colo do sonho a gente relaxa e acredita que tudo vai dar certo. Acreditando que tudo vai dar certo, a gente se sente mais segura e forte. Munida de força, tudo fica leve, fácil de levar.
              Sentindo inveja da sabedoria da flor, a formiga tentou desmanchar toda a esperança que brilhava em seu semblante dizendo:
— Eu não deixarei você viver o seu sonho e acabarei de uma vez com esta filosofia barata.
— Eu acredito que posso ser uma flor. A sua amargura jamais apagará a minha esperança. O meu sonho vai arrancar-me de suas garras e carregar-me em seu colo acolhedor.
— Você é muito ingênua. Como isto poderia acontecer? Você está bem presa ao meu desejo  e decidi não libertar você. Falou com escárnio a formiga autoritária.
— Não sei ainda como poderei me libertar de sua prepotência e autoritarismo, pois existem infinitas formas. Sei apenas que será escolhida aquela que melhor se adequar ao meu desenvolvimento.
              O cansaço foi tomando conta da formiga. Exausta tentou impor limites àquele diálogo que parecia fragiliza-la:
— Cale a boca agora mesmo! Cada vez que você intensifica seus sonhos, você fica mais pesada. Tenho muito que caminhar e está ficando cada vez mais difícil carrega-la.
— Eu não vou me calar e você não irá conseguir me carregar, pois meus sonhos são leves para mim, no entanto, pesados demais para quem não consegue construir os seus.
— O meu trabalho é a minha única construção. Falou a formiga com moralismo.
— O trabalho dignifica o ser, mas, cuidado com ele, pois além de libertar tem também o poder de aprisionar e matar.
— Pare com esta sua tagarelice! Você já está me matando de cansaço com este seu discurso tolo.
— Não sou eu que estou lhe matando de cansaço, mas esta sua forma mecânica de trabalhar. Por que você não pára e descansa um pouco?
               Neste instante, a formiga olhou para o céu e percebeu que algumas nuvens negras anunciavam o presságio de uma tempestade. Tentou apressar ainda mais o passo e foi novamente interrompida pela sementinha:
— Você não vai agüentar. Relaxe!
— Não posso perder tempo. Tenho muito que fazer.
— Você não estará perdendo tempo, pelo contrário, estará ganhando tempo de relaxamento e descanso. Relaxar é um trabalho de renovação.
— Este tipo de trabalho não me interessa. Desprezou a formiga, os conselhos da flor.
               Imersa em sua teimosia e rigidez, a formiga continuou caminhando e apressando cada vez mais o seu passo. À medida que andava foi, gradativamente, se tornando impossível carregar uma semente que parecia inicialmente tão leve. Sem entender o que estava acontecendo, repentinamente foi obrigada a parar, pois o seu corpo foi perdendo os movimentos e mal podia respirar. Desabou-se sobre o chão, mas continuou apegada à semente mantendo-a agarrada às suas garras.
— Você não irá me vencer! Eu não te solto por nada neste mundo. Mesmo que eu morra, continuará atrelada a mim. Finalizou a formiga irrompendo-se num sono profundo semelhante à morte.
        Vencida pelo sono, sem a consciência de estar viva ou morta, a formiga sonhou pela primeira vez. Sonhou com a chuva caindo e penetrando pelos poros de uma terra seca e sedenta de água. Viu o sorriso da terra em cada gole de água que a chuva fartamente lhe oferecia matando a sua sede e deixando-a macia e fofinha. Fertilizada pela umidade, viu aquela terra abraçando cada semente presente em seu seio. Assistiu a maravilhosa transformação das sementes. Presenciou o nascimento de um belo jardim. Emocionou-se pela primeira vez! Nunca vira espetáculo mais belo e emocionante. Conquistou a benção de enxergar e sentir plenamente. No entanto, o júbilo da transformação só não acontecia para uma semente presa nas garras de um ser horrível que inerte a sufocava em suas garras. Aquele ser transformou o seu sonho num pesadelo. Queria liquidá-lo, mas não sabia como. Incomodada, não se satisfazia em ser apenas uma espectadora de seu sonho, precisava entrar dentro dele e salvar a semente. Mas não tinha como entrar no sonho. Naquele momento fora lhe concedido apenas o direito de assisti-lo. Sem poder viver ativamente aquele sonho, sentiu-se impotente e tristonha. Impotente para agir, identificou-se com a semente aprisionada. Identificando-se foi desenvolvendo uma empatia muito grande dentro de si.
        De repente surgiu uma esperança.  Viu uma formiga trafegando cabisbaixa pelo cenário onírico carregando algo com um apego desenfreado. Pensou que talvez ela pudesse salvar aquela semente. Tentou influencia-la de todas as formas, mas ela parecia não ter ouvidos e nem mesmo olhos, pois não percebia nada ao seu redor estando totalmente presa em si mesma. Teve raiva e pena dela, mas nada podia fazer. Podia apenas assistir a tragédia da mesma por não perceber as coisas belas. A impotência fazia um desejo ardente de mudança ir crescendo dentro de si. Foi então que começou a perceber que o seu desejo semeava a semente de um sonho. Passou assim a ter muitos sonhos. Viveu por um bom tempo o prazer de sonhar, precisava agora acordar para realizar tudo que havia construído em sonho. Quem haveria de acordá-la?
         Acordou. Acordou como todos nós acordamos depois de uma noite bem dormida.  Acordou relaxada e descansada. Sem saber quanto tempo dormira, foi despertada por uma voz suave que lhe ordenou com doçura:
— Levante, acho que já dormiu o suficiente.
— Quem é você? Perguntou a formiga.
— Eu sou a transformação de um sonho. Respondeu uma bela flor que acolhia a formiga sobre suas pétalas protegendo-a.
— Você quer me dizer com isto que és uma realidade?
— Isto mesmo, sou a flor que realizou o sonho de uma sementinha.
— Você é uma bela flor! Afirmou a formiga admirando-a.
— Fico feliz de vê-la conseguindo me enxergar assim.
— Mas, por que? Perguntou a formiga confusa.
— Por causa de uma longa história. Respondeu a flor olhando no fundo dos olhos da formiga.
— Que história?
— Você quer mesmo saber?
— Se você quiser me contar...
— É uma longa história. Você teria tempo para ouvi-la? Perguntou a flor querendo checar a disponibilidade da formiga.
— Não sei como, mas aprendi de alguma forma que o tempo é a gente que faz. Sendo assim, agora sou toda ouvidos.
              A bela flor deu um sorriso exalando um perfume relaxante e tranquilizador. Com muita ternura contou para a formiga uma história mais ou menos assim:
— Era uma vez uma sementinha que pensava ser uma formiga maldosa. Com medo de desabrochar, ela não se permitia sonhar, pois sabia que os sonhos fazem desabrochar o nosso mais íntimo ser. Para se proteger dos sonhos criou uma armadura que a deixava dura muito dura, difícil de rachar. O sentimento mais forte que carregava dentro de si era a inveja, pois o que mais temia era assistir a realização dos sonhos de qualquer ser que encontrasse em seu caminho. Sendo assim, tentava destruir todas as sementes que carregavam um sonho aprisionando-as em suas garras. Fazia disto o seu trabalho e alimentava-se da tristeza do outro. Não percebia que quanto mais se alimentava de tristezas, mais triste e amarga ficava. Um dia, entretanto, encontrou e tentou aprisionar uma semente que acreditava ser uma flor. Ela acreditava tanto, que ninguém conseguia abalar a sua fé. Ao contrário da formiga maldosa, ela se alimentava apenas de esperança, otimismo e amor. Sabia que nenhuma garra malvada seria capaz de carregar por muito tempo estes sentimentos. E foi o que aconteceu. A formiga sucumbiu-se. No entanto, mesmo vencida não largava a semente. Quando tudo parecia estar perdido, a benção divina caiu sobre a semente boa e sobre a semente má em forma de chuva. A água abençoada limpou os maus e fertilizou os bons sentimentos. À medida que este milagre acontecia, as garras da semente que se julgava uma formiga má foram relaxando e um lindo broto nasceu da boa semente que nunca duvidou ser uma flor. Este broto foi crescendo lentamente e se transformando numa linda flor que alimentava com seu néctar e ninava todos os dias uma sementinha que em forma de formiga precisava sonhar um sonho bom e, finalmente, acordar do pesadelo de não conseguir sonhar ser ela mesma.



                                                                                 

                                                          



sexta-feira, 19 de julho de 2013

JUCA E JOCA

Dedico esta história aos oprimidos e opressores


Juca e Joca


Juca era um gato mimado e dono do pedaço. Ditava as regras até para os seus donos; imagine para os ratos que moravam por ali. Joca, um rato frustrado, vivia reclamando dos desmandos de Juca, nutrindo-se de muito ódio pelo mesmo. Revirando os porões da antiga casa onde residia, encontrou uma lâmpada empoeirada e misteriosa. Inicialmente, fitou-a fixamente sem entender do que se tratava. A poeira e os efeitos do tempo cobriam todo o objeto deixando-o irreconhecível. Numa tentativa de explora-lo, esfregou seu rabo sobre a lâmpada com o intuito de retirar a poeira que pairava sobre a mesma. Repentinamente, um gênio bem diferente de todos que sua imaginação possuía apareceu à sua frente. Era meio rato e meio gato.
−Às suas ordens, amo! Exclamou o gênio
Assustado, Joca saiu em disparada e se escondeu debaixo de alguns caixotes empilhados no centro do porão.
−O que fazes aí, meu amo? Estou aqui para atender seus pedidos. – falou o gênio girando em torno dos caixotes numa tentativa de encontrar um ângulo onde pudesse ver Joca.
−Você quer me devorar, seu gato com cara de rato. Se pensas que vou lhe dar este gostinho, está muito enganado.
−Eu não sou gato, sou um gênio! Estou aqui para realizar três pedidos. Se você não deseja nada,  retornarei para dentro de minha morada; aquela lâmpada mágica que você esfregou.
−Não era minha intenção tira-lo de lá. Só estava tentando tirar a densa poeira que a cobria. Justificou Joca tremendo de medo.
−Você está com medo de mim? O que lhe fiz para ter este medo todo? Saia daí, vamos conversar. Eu não tenho intenção de fazer mal algum para você. Se eu pareço com algum gato que teme, posso mudar a minha aparência. Basta você desejar isto. Posso me transformar em tudo que desejar.
−Como assim?
−Como lhe disse, sou um gênio e estou aqui para satisfazer três desejos. O seu primeiro pedido pode ser, por exemplo, mudar a minha aparência. Posso ficar com a aparência que você desejar.
−E, se eu sair daqui debaixo e você me devorar? Perguntou com a astúcia de um rato experiente – Já caí nesta armadilha! Juca, o gato malvado desta casa, já me fez a mesma proposta que você está me fazendo agora.
−Faça o seu pedido daí mesmo e verá que não estou mentindo. Sugeriu o gênio.
−Se é assim... Deixe-me ver... Já sei! Quero que fique com a minha cara. Exatamente como sou.
−Assim seja!
 Através de uma grande explosão de energia, o gênio se transformou num rato idêntico a Joca. O rato, perplexo, ficou ainda mais assustado. Mal podia acreditar naquilo que estava presenciando. Certificou-se que o gênio falara a verdade. Não ficou muito satisfeito com a sua imagem refletida. Achou-se minúsculo e fraco. Teve vergonha e ao mesmo tempo raiva de si mesmo. Não queria ser assim. Queria ser forte e poderoso. Sem temer a sua imagem saiu debaixo dos caixotes. Sem suportar olhar para si mesmo tratou de fazer o seu segundo pedido rapidamente.
−Já sei o que desejo pedir agora. Sempre tive ódio de Juca. Aquele gato ingrato vai se ver comigo! Quero me transformar num gato igual a ele. – dando várias risadas, continuou. – Ele não vai acreditar! Quero só ver a cara dele quando se deparar comigo. Acho que vai ter um infarto. Mas...
−O que houve amo? Por que me olhas deste jeito? Perguntou o gênio confuso sem entender a expressão de desprezo que Joca, repentinamente, passou a denotar por ele.
−Com este corpo, você  terá o poder de realizar mais alguma coisa?
−O nosso poder não vem do nosso corpo, mas, de nossa alma. Tenho seu corpo, mas continuo com a alma de um gênio.
−Então vamos lá! Transforme-me já em Juca. Ordenou com um ar de autoritarismo que surpreendeu o próprio gênio.
−Tens certeza, amo?
−Você não está aqui para perguntar nada. Apenas pra executar minhas ordens. Rápido!
−Éhh... Tens razão. Assim seja!
 Numa outra grande explosão de luzes faiscantes e coloridas, Joca se transformou em Juca como num passe de mágica. De posse do corpo que sempre temeu, porém agora, exalando destemor e arrogância, olhou para o gênio com os olhos fervilhados de ódio. Mostrando seus dentes caninos bem afiados, rosnou zangado:
−Agora você me paga! Dando um salto sobre o gênio, devorou-o de uma só vez. −Ratos inúteis! Berrou com escárnio.
Numa questão de minutos, tudo mudou! Joca parecera esquecer completamente de quem ele era. Ou será o contrário? Passados alguns minutos, sentiu um leve mal estar, lamentando-se:
−Que carne indigesta! Estes ratos não servem para nada mesmo.
Massageando sua pança foi surpreendido por Juca que passava por ali distraído cantarolando. Deu um salto sobre o mesmo, bloqueando o caminho e ameaçou:
−E aí, ta com medo?
−Medo de que? Adoro espelho! Gabou-se todo olhando para Joca como se estivesse olhando para si mesmo.
−Eu não sou você! Eu sou eu. Berrou sem paciência.
−Com certeza! Eu sou eu. Aliás, eu sempre fui mais eu.
−Não! Você não está entendendo nada. Eu sou o Joca. Afirmou constrangido. Tentando se justificar, continuou.− Na verdade,  eu sou o Joca que se transformou em você.
Juca assustou-se e batendo no próprio rosto várias vezes inquiriu o Joca como se estivesse falando consigo mesmo diante de um espelho:
−Ei! Você está ficando maluco! Alguma crise de consciência? Está se sentindo culpado por desejar devorar aquele inútil?
Foi interrompido por Joca que pronunciou-se cheio de orgulho:
−Enquanto você deseja devora-lo, eu já o devorei a muito tempo. Aliás, carne de péssima qualidade.
Juca deu mais uns tapas em seu rosto e continuou:
−Você está ficando maluco mesmo... Agora pensa que é o tal!  Por mais que eu deseja,  jamais devoraria aquele inútil...Inúti? Na verdade, nem tanto... Ele é até simpático. Chego a sentir falta dele quando some por uns tempos. Ele me distrai bem. É bem esperto. Quisera eu ter a esperteza daquele rato.
−Joca ficou branco, tomado por uma perplexidade aguda perguntou gaguejando:
−Jura? Você tem certeza do que está falando?
−Desde quando não tenho certezas nesta vida. Esta certeza dolorosa,  só admito para você, ou seja, para eu mesmo.
Mas, eu não sou você. Eu sou ele! Gritou Joca, apavorado.
Não precisa querer se transformar agora num rato só porque você o admira. Depois, este segredo é apenas nosso. Nunca ninguém ficará sabendo que você acha a vida dele mais interessante do que a sua.
−Mas, porque a vida dele é mais interessante?
−Mais adrenalina. Mais emoção! Não agüento mais este tédio. Durmo e como o dia todo. Nem fome eu tenho. Como por comer, durmo por dormir... Não há nada o que fazer. Joca, por outro lado, tem objetivos. Foge de mim, sente a adrenalina no sangue. Tem que caçar seu alimento, fugir dos perigos, enfim, tem o que fazer o dia inteiro.
−Eu não posso acreditar no que estou ouvindo! Choramingou.
−Por que não? Se eu tivesse a oportunidade de fazer um pedido... Daqueles que só um gênio pode atender. Eu pediria uma vida desta para mim.
−Oh, não! Não pode ser! Como eu não pude enxergar isto antes?
−Vivemos num mundo de ilusões. Passei a vida inteira iludido. Iludi a muitos também. Fiz com que eles acreditassem no meu poder para que pudessem duvidar do poder deles. Joca foi um de minhas vítimas. Pelo menos, nesse ponto sempre fui mais esperto.
−Seu canalha! Berrou Joca.
−Não precisa ser tão duro assim comigo mesmo. Eu juro que aquele rato vai morrer achando que eu sou mais poderoso e feliz do que ele. Nem que seja na ilusão, serei superior. Pronunciou-se olhando no fundo dos olhos dele.
−Não!  Não vai não. Eu vou agora mesmo contar tudo para ele.
−Você? Dando uma risada bem escandalosa, continuou. Jamais serei traído por ti! Você me odeia e me ama ao mesmo tempo. Sei que não serei traído por ti. Por mim, precisamente...
Joca saiu correndo em disparada, gritando:
−Eu tenho direito a mais um pedido. Gênio!
Juca, confuso, olhou-se e ao mesmo tempo em volta de si mesmo. Deu vários giros em torno do local onde Joca se posicionara, exclamando indignado:
−Oh, o espelho sumiu!
Saiu cantarolando a mesma cantiga e se sentindo mais em paz consigo mesmo. Aquele desabafo lhe fizera muito bem. Joca, por outro lado,  procurou o gênio por muitos anos a fio. Já velho e sem esperanças, olhando-se refletido num espelho empoeirado num dos cantos do porão, admitiu para si mesmo:
−Maldita hora que você quis se vingar daquele gato!
O espelho refletindo continuou:
−Ou de si mesmo?
−É nisto que dá odiar a quem a ilusão nos faz pensar ser melhor do que a gente mesmo.
O espelho refletindo pautou:
−Ou deixar de amar a si mesmo...
−Admito que me faltou amor. Concordou Joca com uma expressão desolada e cansada.
−Sem amor, faltou-lhe a capacidade de enxergar a beleza em si mesmo. Esclareceu o espelho.
−Só depois que a gente se perde em coisas que nada tem haver com aquilo que a nossa alma anseia, é que o nosso verdadeiro valor aparece.
−Ou fica mais claro – Conjecturou o espelho.
−Que saudade de mim! Como fui tolo! Desabafou-se Joca com os olhos lacrimejando exalando arrependimento.
−Mataste a sua genialidade, mas pode ressuscitá-la. Sugeriu o espelho acendendo uma centelha de esperança em Joca.
−Como? Perguntou Joca,  cheio de curiosidade.
−Desapegando-se daquilo que não lhe pertence.
−Deste corpo? Perguntou vacilante.
−Certamente! Respondeu o espelho com convicção e firmeza.
−Como posso me livrar deste corpo? Quando matei o gênio, matei a possibilidade de realizar o meu terceiro pedido.
−Qual seria o seu terceiro pedido? Perguntou o espelho.
−Livrar-me deste corpo, é claro!
−Será? Será que matar o gênio não foi uma forma de livrar-se para sempre do rato que você era e nunca valorizou? Questionou o espelho a pseudo justificativa que Joca possuía para manter-se naquele corpo.
−Você está enganado! Não curto nem um pouco esta condição de gato. Preferiria, mil vezes, voltar a ser um rato.
−Foi necessário se tornar um gato para tomar consciência que sê-lo não é também garantia de felicidade e poder. Com esta experiência, você pôde conhecer um lado dentro de si que você negava, mas desejava; seu lado gato. Agora, pode resgatar o lado que seu gato interno sempre rejeitou. O Joca ainda vive dentro de você! Advertiu o espelho.
−Mas, para isto eu preciso do gênio. Justificou mais uma vez.
−Engano seu! Você precisa apenas se desfazer deste presente que o gênio lhe deu. Não somos obrigados a aceitar ou manter conosco um presente que nos incomoda. O gênio apenas lhe presenteou com um desejo que você possuía dentro de ti. Você pode se desfazer deste presente no momento que desejar.
Joca se surpreendeu com as palavras do espelho. Consternado, ressaltou assustado:
−Como é que pude não me dar conta disto?
−Será que ainda teme a sua condição de rato? Se temer, ainda fugirás muito de si mesmo. Indagou, finalmente, o espelho.
Joca passou o resto de seus dias refletindo sobre esta questão sem, no entanto, se desfazer do presente que o gênio lhe dera. Quando indagado sobre esta situação, dizia:
−Estou pensando no assunto!
Pensar, infinitamente, no mesmo assunto foi a melhor maneira encontrada para não ter que agir, pois de oprimido a opressor se passa, facilmente, num passe de mágica; no entanto, de opressor a oprimido, só num passe de muita consciência e coragem para lutar e transcender-se.