O INCÊNDIO NA SAVANA

Dedico esta história à um grande marco na nossa História: momento COVID-19

 Dedico, sobretudo, à consciência de cada ser  que vive este momento 

      De repente o cenário mudou... A Savana com sua rica vegetação e biodiversidade se transformou, num passe de mágica, em um deserto cinzento. O fogo transmutou cores e formas. A cor da terra e do verde se transformou num cinza triste e as formas que não cremaram ao calor das chamas se deformaram. O papagaio cinzento, espécie já quase extinta antes do incêndio, mimetizando com a Savana agora cinza e portador de uma loquacidade invejável iniciou uma conversa que durou algumas horas:

 – Eu nunca poderia imaginar que um dia a Savana viria a ter a minha cor. Este mar de cinzas tão triste e desolador me faz desgostar de minha própria penugem. É cinza demais para o meu gosto! 

– Nem o céu escapou deste cinza... A gente olha para baixo, para frente, para trás, para o alto; tudo cinza! Que saudade de meus voos tranquilos naquele azul infinito. Até o céu mudou de cor. Acrescentou o falcão-peregrino sendo interrompido pela hiena.

 – Céu azul? O céu nunca foi azul! E este cinza sempre foi a cor de tudo por aqui. Parem de pregar o que nunca existiu! Vocês ficam aí perdendo tempo com lamentações quando deveriam fazer alguma coisa que preste. Vão caçar cambadas de vagabundos! Finalizou a hiena dando a sua tão conhecida e irônica risadinha.

 – Você está querendo nos enlouquecer! Desde quando nunca existiu céu azul? Ele pode até se tornar cinza nos dias de chuva, avermelhado no por do sol e negro durante a noite... A coloração do céu é um fenômeno físico, minha cara! Quem tem visão jamais irá se esquecer que a natureza daqui tinha todas as cores. Embora você faça questão de afirmar as suas mais loucas teorias, a natureza aqui jamais foi cinza como agora. Aliás, quem conhece o seu histórico e as suas condutas, sabe muito bem que você é uma das grandes responsáveis por grande parte desta destruição. Censurou o leão.

 – Eu? De onde você tirou isso? Que calúnia! Em primeiro lugar não há destruição alguma. Em segundo lugar, eu tenho mais o que fazer do que ficar ouvindo estas teorias conspiratórias que vocês criaram para destruir a minha reputação e a de quem deseja colocar ordem na Savana. Somente nós, hienas, somos capazes de fazer isso. Somos aqui na Savana o que restou de pureza, compromisso  e dignidade.

– Se fossem realmente, a teriam protegido! Quando surgiram os primeiros rumores sobre o incêndio que poderia destruir o nosso habitat, vocês negaram e sonegaram esta informação. Confundiram todos os animais que poderiam ter oferecido valiosas colaborações para apagar o fogo, afirmando que tudo não passava de rumores mentirosos e conspirações de inimigos que queriam reinar na Savana. Naquele momento o fogo poderia ter sido controlado. Mas, você alastrou suas mentiras mais que o próprio fogo que se aproveitando disso acabou reinando. Retrucou o leão.

 – Você deve estar morrendo de inveja do fogo, pois sempre quis ser o Rei do pedaço. Nós, hienas, temos tanto poder quanto você, embora não aceite a nossa supremacia! Escarniou a hiena dando uma estridente risada.

     A hiena foi interrompida por um rugido violento do leão convidando-a para uma luta. A vaidade daquele felino era grande demais para suportar as provocações da hiena.

       O elefante querendo evitar conflitos desnecessários, ansioso por restaurar a ordem, trombeteou ainda mais forte:

 – Vamos parar com estas provocações! Elas não nos levarão a lugar algum. Precisamos nos unir para combater a miséria que sobrou disso tudo. Enquanto havia incêndio a combater eu trabalhei duro. Retirava incansavelmente água do grande lago para apagar as chamas de fogo ainda baixas e passíveis de serem controladas na ocasião. Fazia a minha parte e implorava aos outros animais que fizessem também a parte deles. Se o acero tivesse sido feito, o incêndio não teria se alastrado. E havia muitos animais que tinham habilidade e força suficiente para acerar o solo. Se ao invés de dizer que nada estava acontecendo, ou que o incêndio era pequeno demais para nos preocuparmos com ele; se tivéssemos divulgado os riscos de uma chama que pode crescer e se alastrar, não estaríamos colhendo as cinzas de nossa ignorância, prepotência e comodismo.           
      A hiena e o leão se calaram frente a intervenção do elefante. Foi aí que um pequeno pássaro da savana se sentiu à vontade para falar e endossar as sábias palavras do mesmo: 

_ Eu também tentei fazer a minha parte, mas ao invés de ser apoiado fui ridicularizado. Enquanto eu carregava gotas de água em meu bico ou tentava desesperadamente acerar o solo com o mesmo, os grandes animais portadores de força para fazer com eficiência o que eu humildemente tentava fazer sozinho riam de minha iniciativa zombando – Você acha mesmo que tem o poder de apagar este fogo? Se manque e volte para o ninho de onde nunca deveria ter saído! Você não dá conta nem de voar direito, imagine apagar este incêndio... Todo fogo que vem, uma hora vai embora! _ Tomado pela minha impotência e fragilidade, procurei acolhimento na árvore mais próxima do lago onde vocês, amigos elefantes, espargiam água umedecendo-a e tentando protege-la das chamas. Foi abraçado pelos galhos dela que me salvei. Tenho uma grande dívida agora. À vocês devo a minha vida e toda a minha gratidão.

         O pequeno pássaro foi interrompido pela árvore que lhe serviu de abrigo: 

_Ninguém deve ninguém! Precisamos compreender melhor a nossa interdependência. Ninguém é melhor do que ninguém aqui. E agora, mais do que nunca, precisamos construir esta certeza. Chega de sacrificarmos os mais frágeis com a errônea ideia de que eles não são importantes e necessários. Estou muito abalada com tudo isso. Me salvei, mas vivo o luto de minhas irmãs que se tornaram lenha. Já não somos tantas na Savana e agora restam poucas de nós por aqui. Este ditado de que o fogo vem e vai, me assusta muito mais do que me tranquiliza. O fogo veio e foi … Veio inicialmente numa pequena região da Savana e foi... Foi, na verdade, se alastrando por toda extensão dela. Agora ele foi embora, mas para onde? Para outras regiões como as florestas? O fogo veio e foi embora, mas olhem ao redor e vejam o que ele nos deixou! 

       A Hiena com suas ideias obcecadas não conseguia compreender nada. Seu fanatismo conspiratório só fazia gestar dentro de si ideias conspiratórias. Quando conseguia um mínimo de discernimento para desapegar de sua cegueira e enxergar o cenário destruído à sua volta, o máximo que conseguia era alimentar a sua doentia obsessão dirigindo sempre um olhar acusatório para os leões: 

– Pode até ter tido um "incendiozinho" aqui e acolá, mas eu não cansarei de avisar. Tem alguém colocando fogo para tentar reinar aqui nesta terra. Mas, esta terra já tem dono! Enquanto houver ameaça de fogo eu vou gritar! Vamos combater quem está nos ameaçando! Deus vai render os culpados e enviar a salvação.

 – Quem está atiçando fogo é você, sua hiena maldita! Urrou o leão perdendo mais uma vez a paciência por compreender muito bem as insinuações da hiena. Antes que ele pudesse avançar sobre a mesma, foi detido com o relinchado estridente da Zebra:

– Calma! Pior do que o fogo é atiçar a discórdia e o ódio! Precisamos ter sabedoria para saber combater qualquer inimigo. Não adianta procura-lo cegamente ou tentar combate-lo se a gente não destrói primeiro a sua arma. Se a gente não tem a força e as armas que ele tem, perderemos todas as batalhas. Foi procurando supostos inimigos ou inimigos imaginários que negamos a existência daquilo que estava bem ali diante de nossos olhos : o Fogo! A negação atraiu o nosso azar. Depois daquele inferno todo, tivemos sorte da chuva cair repentinamente em abundância. Se não fosse por ela, não estaríamos conversando aqui agora.

        A raposa, amiga interesseira da hiena e profundamente influenciada pela mesma, abriu a sua boca para dar suporte às suposições de sua mestra:

 – Sorte que nada! Foi milagre mesmo!Estou contigo e não abro, amiga hiena! Como podemos ver, na hora certa Deus nos mandou a benção da chuva para destruir a arma de nosso inimigo. O Fogo foi apagado por Deus! Basta confiarmos em Deus e tudo dá certo. Precisamos voltar à nossa vida normal e esquecermos de vez tudo isso. Sejamos positivos! Se a realidade incomoda, é só criar uma outra. Se tivermos que lembrar um dia disso tudo, que seja como um foguinho que veio e se foi! 

          Neste momento,  um velho Chimpanzé que em silencio ouvia atentamente toda a conversa, colocou suas mãos sobre o peito, na altura do coração, e olhando para o infinito entoou uma linda oração:

_ Ao Espírito Divino presente em tudo que existe e se conecta

 Ao Espírito Divino presente no sol, na água, no ar e na terra que nos alimenta 

Ao Espírito Divino presente em cada ser que se foi em consequência do fogo que devastou a nossa terra

 Ao Espírito Divino presente em todo ser que sobreviveu a tudo isso

 Perdoe a maldade e insanidade de quem usa o seu nome para justificar as nossas catástrofes e mazelas

 Perdoe a cegueira e ignorância de quem não consegue enxergar a verdadeira causa de nossas catástrofes e mazelas

 Perdoe quem cria catástrofes e mazelas por intermédio de seus próprios interesses escusos e alegam ser a intervenção divina a causa de tudo

 Perdoe o egoísmo de quem não arreda o pé de seu território cômodo e protegido para combater as nossas catástrofes e mazelas   
Perdoe quem opta pelo esquecimento e rejeita aprender o que precisa ser aprendido com nossas catástrofes e mazelas

 Perdoe quem se acha mais digno de viver e sobreviver frente as nossas catástrofes e mazelas

 Perdoe quem não consegue identificar o que é de fato uma catástrofe e o que é crime travestido de catástrofe

 Perdoe quem não consegue agir na hora certa para evitar que um problema sério se torne uma catástrofe

 Perdoe quem não consegue perceber a sua presença em tudo que nos rodeia e em nós mesmos te colocando tão distante e inacessível  

Perdoe quem te coloca tão distante para tentar roubar o seu poder aqui agora 

Perdoe quem não percebe que ages através de nós mesmos, pois é presença em cada um de nós

 Perdoe quem não utiliza os instrumentos que nos oferta para resolver o que pode ser resolvido e combater o que pode ser combatido 

Perdoe quem espera de vos o que cabe a cada um de nós fazer                 
     Finalizada a sua oração, todos disseram: Amém! Mas o Amém ressoou dali para frente conforme a consciência de cada um.  Depois daquele dia a vida continuou... Difícil, mas continuou... Cada entidade viva seguiu o seu trajeto. Alguns mudaram e outros continuaram os mesmos. As hienas e seus adeptos seguidores continuaram procurando os conspiradores da Savana e os leões continuaram se defendendo de suas injúrias e medindo força com elas.

        E, como a Savana reagiu e vai continuar reagindo depois disto tudo? O que se sabe é que a saúde da Savana não dependerá das orações ou das palavras bonitas que cada ser entoar, mas da ação de cada um. A física determina que cada ação terá sempre uma reação igual e no sentido oposto. Se esta lei física estiver correta , a reação da Savana não estará, portanto, nas mãos de Deus , mas sim na ação divina ou diabólica de cada um de nós. Extrapolando a física e entrando no terreno da espiritualidade colheremos o que foi semeado.