Dedico esta história aos egocêntricos que não conseguem enxergar o outro e usam a sua “juba” como armadura para não enxergar o seu mais profundo ser, preferindo se afogar na superficialidade a ter que mergulhar em si mesmo.
Jujuba era um
leão que tinha muito orgulho de sua juba. Farta e comprida, chamava atenção de
toda bicharada da floresta, além de impor certo respeito. No fundo, Jujuba até achava
que o respeito que conquistou se devia a sua linda e poderosa juba. Assim,
cuidava da mesma como se fosse o seu bem mais precioso. Lavava com os melhores
shampoos feitos de ervas raras da floresta, alisava e desembaraçava
cuidadosamente com escova feita de pele de porco espinho para que nenhum fio
pudesse se arrebentar ou ficar quebradiço, cacheava as pontas com rolos
confeccionados com chifres de cervos, hidratava-os com óleos extraídos das
amendoeiras mais antigas da região e fazia reflexos banhando-os com raios
solares no início da manhã.
Muitos
invejavam a juba de Jujuba e a maior aspiração da bicharada era poder
conquistar uma juba que lhes garantisse poder. Alguns passavam uma vida inteira
pelejando com suas jubas esfarrapadas, outros nem sequer pensavam na
possibilidade de ter uma juba um dia e se lamentavam :
¾Ah, se eu pudesse ter uma juba assim!
Seria admirado e respeitado por todos.
O que Jujuba
mais gostava era ficar horas se admirando nas águas do lago de águas mais cristalinas
da selva e se algum cisco caía sobre as águas do mesmo marejando-as, o
leãozinho vaidoso ficava profundamente irritado. O macaco Sopé, que vivia feliz
se divertindo e pulando de galho em galho sem nunca se preocupar com juba
alguma, ficava surpreso com a obsessão que Jujuba sentia pelas águas do lago.
Não se aguentando de curiosidade perguntou:
¾Por que você olha tanto para as águas
deste lago? Perdeu alguma coisa aí?
¾ Perder? E por acaso eu sou de perder
alguma coisa na vida? Perder é coisa de bicho fracassado. Toda vez que eu olho
para estas águas eu encontro uma coisa linda e especial.
¾ Eu também posso ver esta coisa linda
que você vê aí? Perguntou Sopé.
¾ Com certeza! Venha até aqui, fique do
meu lado e observe atentamente.
O macaco
desceu da árvore, dirigiu-se para as margens do lago e fitou as águas do mesmo
procurando esta coisa maravilhosa que o leão dissera existir ali.
¾ Que graça você nisto? Perguntou o
macaco com sarcasmo.
¾ Como é que você pode dizer uma coisa
desta? Respeito é bom, eu gosto e exijo. Berrou o leão exalando cólera. Nunca
ninguém havia desprezado a sua imagem e, de repente, aquele macaco tolo ousava
desconsiderar a sua beleza.
¾Não entendi sua irritação... Não sei por
que estes fachos de folhas, sementes e frutos sepultados no fundo exigem tanto
o seu respeito e o de todos nós. Eu, particularmente, as prefiro no pé.
O leão ficou
mais surpreso ainda com a observação de Sopé. Como ele pudera enxergar folhas
ao invés de sua nítida e linda imagem? Acionando as suas garras com clara
intenção de ferir o macaco, urrou com braveza:
¾Some daqui, seu idiota! Você além de
cego é burro. Não consegue captar e admirar as coisas belas da vida.
Sopé,
querendo se defender, deu um pulo no primeiro galho de árvore à sua frente e
sumiu para dentro da selva, sabia que apesar de não possuir a força do leão,
foi agraciado com muita agilidade e esperteza pela vida. Naquele exato momento,
o seu instinto de sobrevivência lhe alertou deixando uma mensagem muito
importante:
¾Fuja, pois Jujuba tem fome de admiração
e você acabou de negar este alimento a ele.
O leão, por
outro lado, ficou ali, sentado á beira do lago urrando de raiva:
¾Será que ele realmente é um idiota ou
será que ele quis bancar o indiferente comigo? Se tem uma coisa que eu não suporto
é a indiferença de alguém. Com certeza, ele morre de inveja de mim por não ter
sido contemplado com a minha beleza e força. Fica querendo me desqualificar
para se sentir mais importante do que eu.
Repentinamente,
foi interrompido por uma hiena invejosa que passava por ali.
¾O que aconteceu, Jujuba? Você me parece
tão irritado... Será que posso te ajudar. Você sabe o quanto gosto de você e o
quanto lhe admiro. Não gosto de te ver chateado.
¾Sopé, aquele idiota, quis bancar o
indiferente comigo. Você acredita que ele não conseguiu enxergar a minha imagem
nestas águas? Eu fico pensando como alguém pode ser tão cego assim. Será que
você também teria esta dificuldade ou imbecilidade? Perguntou, Jujuba, com ar
de censura e ameaça.
¾Absolutamente! Daqui mesmo eu já estou
vendo a sua juba reluzindo como um sol no fundo deste lago. Completou a Hiena,
enxergando apenas os fósseis de árvores, mas com claras intenções de agradar o
amigo e ganhar a sua admiração. Sabia que o maior trunfo que possuía com o
amigo vaidoso era: “Contrariar, jamais!”.
Jujuba
sentiu-se irradiante com as observações da amiga. Para ele, aquela era, de
fato, uma pessoa de visão. Querendo receber mais elogios, cedeu também à mesma
doses significativas de admiração. Sabia que a melhor maneira de colher elogios
era acariciar o ego do outro.
¾Você é uma pessoa de visão! Tem gente
que não enxerga um palmo adiante do seu nariz. Acho que aquele macaco só
enxerga bananas.
¾Não sei como você, uma pessoa tão
inteligente e brilhante, pôde ser atingido pelas idiotices de Sopé que vive
alienado. Como é que você poderia imaginar que ele teria capacidade de enxergar
aquilo que é realmente significativo na vida ?
Uma crítica
recheada de elogios jamais feria o ego de Jujuba, pelo contrário, era um incentivo
para se gabar ainda mais:
¾Eu sou muito ingênuo e humilde. Acredito
na capacidade e nas boas intenções de todo mundo. Preciso aprender a colocar
mais maldade nas coisas para não ser
alvo de tanta inveja. O papo está bom, mas preciso ir. Tenho um encontro
muito especial hoje com uma leoa gatíssima.
¾Você vai se encontrar com Formosa?
Perguntou a hiena.
¾Que Formosa, que nada! Esta leoa já é
carta fora do baralho. Tem tanta gata linda por aí; eu não costumo ficar
perdendo meu tempo apenas com uma. Quem pode se gabar tem que aproveitar! Quem
se ama tem que exigir produtos de boa qualidade. Porcaria, nem pensar!
¾Você não é bobo, nada! Boa sorte! Quem
dera se eu tivesse o prestígio que você tem. Não precisaria ficar me
satisfazendo com as mocorongas que aparecem nas paradas.
¾Leoa feia é que nem leão para mim. Só
mostro as garras. Completou Jujuba com sarcasmo se despedindo do amigo.
O tempo
passou como passa para todos. Novos leões nasceram, cresceram e foram dominando
a selva. Muitas coisas mudaram, no entanto, Jujuba não foi, ao longo de sua
vida, preparado para mudanças. Estava acostumado com a visão estática de si
mesmo. As mudanças acarretam perdas, coisa que nunca soubera lidar. Seu espaço
foi ficando, com o passar dos anos, cada vez mais reduzido roubando-lhe o
prestígio de outrora. Como num passe de mágica, sua visão foi ficando confusa.
Quando se olhava no lago ainda podia ver aquele leão vigoroso de sempre, no
entanto, quando se via nos olhos dos outros, via um leão feio, fraco e velho.
Parecia que o mundo passou a ser reinado por infinitos Sopés e as hienas
extintas do planeta. Sentia-se só e um grande fracassado, apesar de negar estes
sentimentos para si mesmo. Quando alguém passava cumprimentando-o e perguntando
como estava, respondia:
¾Maravilhoso, como sempre!
Sua Juba
perdeu o viço de antes. Poucos fios quebradiços e sem luz restavam no alto de
sua cabeça. Era como se um rei tivesse perdido a sua coroa e a sua majestade.
Os bichos mais velhos, que o conhecia desde a mocidade, comentavam,
discretamente, entre si:
¾A juba de Jujuba já não é mais a mesma!
A criançada,
por outro lado, com um jeito imaturo e perverso, zombava com versos
cantarolados:
¾Jujuba não tem Juba
Cadê a juba de Jujuba
Juba, juba, juba
Fula, fula é esta juba
É terrível
quando vemos no olhar do outro aquilo que nos falta ou nos limita; pior ainda é
escutar sentenças de desrespeito e reprovação. Viver assim foi deixando Jujuba
muito ferido. Para não entrar em contato com aquilo que não dava conta de
encarar, assumir e enfrentar foi, aos poucos, se afastando de todos os bichos
da floresta. O leão solitário não havia formado família. Para se ter uma
família de verdade é fundamental que qualquer ser seja capaz de enxergar algo
mais que si mesmo. Jujuba não foi capaz disto. Passou uma vida inteira sem
aprender e sem se esforçar neste sentido. Além de perder a beleza e a força,
perdeu também a coragem, a alegria e a satisfação de viver. Tomado por uma
grande depressão, entrou para dentro de uma grande caverna escura. Tomado por
esta escuridão, foi um dia despertado por uma coruja que morava, também, dentro
desta caverna.
¾Sou a guardiã deste mundo que você se
encontra agora. Quer que eu lhe traga a morte de presente?
¾Morte? Urrou sem força e tomado de medo.
¾Sim – completou a coruja. Você está mais
morto do que nunca. Talvez a morte lhe traga mais vida e mais luz. Mas, antes,
você precisa conquistar uma coisa muito importante, caso contrário, vai vagar
para sempre no reino das trevas.
¾Eu já conquistei muitas coisas nesta
vida. Não creio que precise conquistar mais nada. Prosseguiu o leão apegado ao
orgulho que sempre lhe venceu.
¾Mesmo no fundo do poço, você não perde a
majestade – Ironizou a coruja sem a mínima intenção de consola-lo – Você tem
certeza que não deseja conquistar mais nada? Eu posso providenciar, neste
minuto, o seu passe para o outro lado. Só que você não vai gostar, nem um
pouco, do que vai encontrar lá.
Jujuba
percebeu que era melhor ceder à humildade que sempre rejeitou. Não tinha mais
nada a perder. Mesmo que negasse, sabia que havia perdido tudo. A única coisa
que lhe restava eram alguns tímidos lampejos de vida.
¾Tudo bem! O que é que eu tenho que
conquistar?
¾Agora sim! Estou gostando de ver...
¾Epa! Não começa... Não estou aqui para
ser humilhado. Urrou o leão aproveitando-se das poucas centelhas de força que
ainda possuía.
¾Para quem acostumou a humilhar o outro é
esperado que veja humilhação em tudo. Desde quando estou lhe humilhando ao
dizer que estou gostando de ver algum lustro de humildade em você? Perguntou a
coruja desafiando-o.
Sem querer se
ater a uma questão tão delicada e incômoda, Jujuba perguntou já irritado:
¾Seja mais direta. Não gosto de rodeios.
O que é que eu tenho que conquistar?
¾Você precisa conquistar a consciência de
que foi um fracasso. Respondeu a coruja sem rodeios.
¾Quem é você para dizer que sou um
fracasso!
¾Sou a guardiã da morada obscura do seu
ser. Respondeu com firmeza.
Jujuba
percebeu que apesar de pequena e frágil, aquela coruja parecia ser uma
autoridade. Com toda majestade do passado ainda encrostada em sua alma, sentia
que não mandava nada ali. Na verdade,
não tinha outra saída a não ser se resignar.
¾Como pode dizer que fui um fracasso se
consegui conquistar a admiração de todos? Em toda a minha vida, me lembro
apenas de um macaco idiota que não conseguiu enxergar o meu brilho.
¾Talvez, ele tenha sido o único a
aproximar de você sem desejos de lhe paparicar. Apesar de você não saber, tem
bicho que não se liga em confeccionar imagem idealizada de si e dos outros. Vive a vida como ela é de fato.
¾Que vida é esta que você está falando?
Perguntou Jujuba.
¾Uma vida que não coube em você. O seu
orgulho, a sua vaidade, a sua prepotência eram as únicas coisas que lhe cabiam.
Admita que não viveu! Passou uma vida inteira babando em cima de uma imagem que
você idealizou para si mesmo. E, o pior é que exigia isto dos outros também.
¾Eu não exigi nada de ninguém!
A coruja deu
uma grande risada. Tomada pelo riso continuou:
¾Ai de quem não admirasse você!
Tornava-se, com certeza, vítima de sua ira. O máximo que conseguiu fazer para
dominar o seu orgulho e a sua raiva foi dar uma de coitadinho. O que não muda
muita coisa...
¾Você está muito enganada! Todo mundo me
amava. Tanto é que fariam de tudo para ser igual a mim.
¾Ser amado é bem diferente de ser
paparicado. O sabor da fruta do amor, você desconhece e agora é bem tarde para
prová-la.
¾Você quer dizer que eu não fui agraciado
pelo amor? Já que é assim, eu não tenho culpa de não ter provado esta fruta.
¾Espertinho! Você é fera nas
justificativas. Só que esta não cola não. O pomar de sua vida sempre esteve
repleto desta fruta. No entanto, você as deixou apodrecer no pé. Será que resta
alguma ainda?
Jujuba
limitou-se a ficar calado expressando uma profunda decepção para consigo mesmo.
Não havia desculpas que pudesse absolvê-lo. Sentiu ali, naquele momento, que a
sua consciência não aceitava mais ser ultrajada com as máscaras que usou a vida
inteira. Percebeu que lhe restava ainda algumas horas para aceitar aprender o
que sempre rejeitou. Humildemente, lamentou sua condição para a coruja.
¾Eu sempre pensei que me amasse
profundamente...
¾Você só amou a imagem que construiu.
Quando ela se ruiu, você começou a se destruir até chegar ao ponto em que se encontra
agora. Quem ama não se destrói.
¾Tenho que admitir que você tem razão.
Não adianta mais eu negar o que está óbvio. Você retirou as vendas que a
alienação e o meu egocentrismo colocaram sobre a minha alma. Será que disponho
de algum tempo a mais para viver, pelo menos, um minuto de amor?
¾Vou lhe dar vinte e quatro horas a mais
de vida para que você jamais se esqueça o quanto o dia é longo e quanto você o
desperdiçou. Aproveite, se for capaz!
Com muita
dificuldade, frágil e sem força, Jujuba levantou dirigindo-se para a porta da
caverna. Precisava, agora, apossar-se da maior valentia que sempre lhe faltou a
vida inteira: “Olhar profundo nos olhos da vida”. Assim que ultrapassou a porta
da caverna, uma luz lhe cegou os olhos lhe oferecendo uma outra visão. Já não
enxergava mais o Jujuba de antes, agora via as árvores, os animais, os rios,
lagos e um céu muito azul que lhe transmitia uma tranquilidade jamais
vivenciada. Respirava fundo e sentia o aroma da natureza penetrando e
purificando o seu ser mais íntimo. O vento que tocava o seu corpo,
massageava-o, carinhosamente, dissipando cada tensão que o seu orgulho
edificou. A terra que pisava lhe dava uma importante lição de acolhimento. Esta
terra recebia todos, indiscriminadamente, até mesmo ele que nunca percebera a
importância da mesma. A água que corria pelos rios fazia brotar, no fundo de
sua alma, um intenso desejo de renovação. Jogou-se dentro do mesmo e tudo
aquilo que não lhe cabia mais. Viu a correnteza levar toda vaidade e
prepotência que o desnutriu durante toda a sua vida. Já quase no final da
tarde, quando o sol repousou no horizonte, Jujuba parou, pela primeira vez,
para admirar este espetáculo que a natureza lhe ofereceu durante toda a vida
sem que percebesse. Emocionado com tamanha beleza, desceram de seus olhos
lágrimas abençoadas que limparam ainda mais a sua alma fazendo a faxina final
em cada cômodo de seu ser. Finalmente, seria agradável morar numa casa assim,
límpida, humilde e sem a antiga luxuosidade que lhe impedia ter liberdade de transitar
em si mesmo. Agora, mais parecido com o sol e aquecido pelos últimos raios do
mesmo, foi morrendo devagarinho, mas certo de que iria renascer no outro dia
com uma nova consciência.