domingo, 26 de agosto de 2012

A JUBA DE JUJUBA


Dedico esta história aos egocêntricos que não conseguem enxergar o outro e usam a sua “juba”  como armadura para não enxergar o seu mais profundo ser, preferindo se afogar na superficialidade a ter que mergulhar em si mesmo.
 
Jujuba era um leão que tinha muito orgulho de sua juba. Farta e comprida, chamava atenção de toda bicharada da floresta, além de impor certo respeito. No fundo, Jujuba até achava que o respeito que conquistou se devia a sua linda e poderosa juba. Assim, cuidava da mesma como se fosse o seu bem mais precioso. Lavava com os melhores shampoos feitos de ervas raras da floresta, alisava e desembaraçava cuidadosamente com escova feita de pele de porco espinho para que nenhum fio pudesse se arrebentar ou ficar quebradiço, cacheava as pontas com rolos confeccionados com chifres de cervos, hidratava-os com óleos extraídos das amendoeiras mais antigas da região e fazia reflexos banhando-os com raios solares no início da manhã.
Muitos invejavam a juba de Jujuba e a maior aspiração da bicharada era poder conquistar uma juba que lhes garantisse poder. Alguns passavam uma vida inteira pelejando com suas jubas esfarrapadas, outros nem sequer pensavam na possibilidade de ter uma juba um dia e se lamentavam :
¾Ah, se eu pudesse ter uma juba assim! Seria admirado e respeitado por todos.
O que Jujuba mais gostava era ficar horas se admirando nas águas do lago de águas mais cristalinas da selva e se algum cisco caía sobre as águas do mesmo marejando-as, o leãozinho vaidoso ficava profundamente irritado. O macaco Sopé, que vivia feliz se divertindo e pulando de galho em galho sem nunca se preocupar com juba alguma, ficava surpreso com a obsessão que Jujuba sentia pelas águas do lago. Não se aguentando de curiosidade perguntou:
¾Por que você olha tanto para as águas deste lago? Perdeu alguma coisa aí?
¾ Perder? E por acaso eu sou de perder alguma coisa na vida? Perder é coisa de bicho fracassado. Toda vez que eu olho para estas águas eu encontro uma coisa linda e especial.
¾ Eu também posso ver esta coisa linda que você vê aí? Perguntou Sopé.
¾ Com certeza! Venha até aqui, fique do meu lado e observe atentamente.
O macaco desceu da árvore, dirigiu-se para as margens do lago e fitou as águas do mesmo procurando esta coisa maravilhosa que o leão dissera existir ali.
¾ Que graça você nisto? Perguntou o macaco com sarcasmo.
¾ Como é que você pode dizer uma coisa desta? Respeito é bom, eu gosto e exijo. Berrou o leão exalando cólera. Nunca ninguém havia desprezado a sua imagem e, de repente, aquele macaco tolo ousava desconsiderar a sua beleza.
¾Não entendi sua irritação... Não sei por que estes fachos de folhas, sementes e frutos sepultados no fundo exigem tanto o seu respeito e o de todos nós. Eu, particularmente, as prefiro no pé.
O leão ficou mais surpreso ainda com a observação de Sopé. Como ele pudera enxergar folhas ao invés de sua nítida e linda imagem? Acionando as suas garras com clara intenção de ferir o macaco, urrou com braveza:
¾Some daqui, seu idiota! Você além de cego é burro. Não consegue captar e admirar as coisas belas da vida.
Sopé, querendo se defender, deu um pulo no primeiro galho de árvore à sua frente e sumiu para dentro da selva, sabia que apesar de não possuir a força do leão, foi agraciado com muita agilidade e esperteza pela vida. Naquele exato momento, o seu instinto de sobrevivência lhe alertou deixando uma mensagem muito importante:
¾Fuja, pois Jujuba tem fome de admiração e você acabou de negar este alimento a ele.
O leão, por outro lado, ficou ali, sentado á beira do lago urrando de raiva:
¾Será que ele realmente é um idiota ou será que ele quis bancar o indiferente comigo? Se tem uma coisa que eu não suporto é a indiferença de alguém. Com certeza, ele morre de inveja de mim por não ter sido contemplado com a minha beleza e força. Fica querendo me desqualificar para se sentir mais importante do que eu.
Repentinamente, foi interrompido por uma hiena invejosa que passava por ali.
¾O que aconteceu, Jujuba? Você me parece tão irritado... Será que posso te ajudar. Você sabe o quanto gosto de você e o quanto lhe admiro. Não gosto de te ver chateado.
¾Sopé, aquele idiota, quis bancar o indiferente comigo. Você acredita que ele não conseguiu enxergar a minha imagem nestas águas? Eu fico pensando como alguém pode ser tão cego assim. Será que você também teria esta dificuldade ou imbecilidade? Perguntou, Jujuba, com ar de censura e ameaça.
¾Absolutamente! Daqui mesmo eu já estou vendo a sua juba reluzindo como um sol no fundo deste lago. Completou a Hiena, enxergando apenas os fósseis de árvores, mas com claras intenções de agradar o amigo e ganhar a sua admiração. Sabia que o maior trunfo que possuía com o amigo vaidoso era: “Contrariar, jamais!”.
Jujuba sentiu-se irradiante com as observações da amiga. Para ele, aquela era, de fato, uma pessoa de visão. Querendo receber mais elogios, cedeu também à mesma doses significativas de admiração. Sabia que a melhor maneira de colher elogios era acariciar o ego do outro.
¾Você é uma pessoa de visão! Tem gente que não enxerga um palmo adiante do seu nariz. Acho que aquele macaco só enxerga bananas.
¾Não sei como você, uma pessoa tão inteligente e brilhante, pôde ser atingido pelas idiotices de Sopé que vive alienado. Como é que você poderia imaginar que ele teria capacidade de enxergar aquilo que é realmente significativo na vida ?
Uma crítica recheada de elogios jamais feria o ego de Jujuba, pelo contrário, era um incentivo para se gabar ainda mais:
¾Eu sou muito ingênuo e humilde. Acredito na capacidade e nas boas intenções de todo mundo. Preciso aprender a colocar mais maldade nas coisas para não ser  alvo de tanta inveja. O papo está bom, mas preciso ir. Tenho um encontro muito especial hoje com uma leoa gatíssima.
¾Você vai se encontrar com Formosa? Perguntou a hiena.
¾Que Formosa, que nada! Esta leoa já é carta fora do baralho. Tem tanta gata linda por aí; eu não costumo ficar perdendo meu tempo apenas com uma. Quem pode se gabar tem que aproveitar! Quem se ama tem que exigir produtos de boa qualidade. Porcaria, nem pensar!
¾Você não é bobo, nada! Boa sorte! Quem dera se eu tivesse o prestígio que você tem. Não precisaria ficar me satisfazendo com as mocorongas que aparecem nas paradas.
¾Leoa feia é que nem leão para mim. Só mostro as garras. Completou Jujuba com sarcasmo se despedindo do amigo.
O tempo passou como passa para todos. Novos leões nasceram, cresceram e foram dominando a selva. Muitas coisas mudaram, no entanto, Jujuba não foi, ao longo de sua vida, preparado para mudanças. Estava acostumado com a visão estática de si mesmo. As mudanças acarretam perdas, coisa que nunca soubera lidar. Seu espaço foi ficando, com o passar dos anos, cada vez mais reduzido roubando-lhe o prestígio de outrora. Como num passe de mágica, sua visão foi ficando confusa. Quando se olhava no lago ainda podia ver aquele leão vigoroso de sempre, no entanto, quando se via nos olhos dos outros, via um leão feio, fraco e velho. Parecia que o mundo passou a ser reinado por infinitos Sopés e as hienas extintas do planeta. Sentia-se só e um grande fracassado, apesar de negar estes sentimentos para si mesmo. Quando alguém passava cumprimentando-o e perguntando como estava, respondia:
¾Maravilhoso, como sempre!
Sua Juba perdeu o viço de antes. Poucos fios quebradiços e sem luz restavam no alto de sua cabeça. Era como se um rei tivesse perdido a sua coroa e a sua majestade. Os bichos mais velhos, que o conhecia desde a mocidade, comentavam, discretamente,  entre si:
¾A juba de Jujuba já não é mais a mesma!
A criançada, por outro lado, com um jeito imaturo e perverso, zombava com versos cantarolados:
¾Jujuba não tem Juba
    Cadê a juba de Jujuba
     Juba, juba, juba
     Fula, fula é esta juba
É terrível quando vemos no olhar do outro aquilo que nos falta ou nos limita; pior ainda é escutar sentenças de desrespeito e reprovação. Viver assim foi deixando Jujuba muito ferido. Para não entrar em contato com aquilo que não dava conta de encarar, assumir e enfrentar foi, aos poucos, se afastando de todos os bichos da floresta. O leão solitário não havia formado família. Para se ter uma família de verdade é fundamental que qualquer ser seja capaz de enxergar algo mais que si mesmo. Jujuba não foi capaz disto. Passou uma vida inteira sem aprender e sem se esforçar neste sentido. Além de perder a beleza e a força, perdeu também a coragem, a alegria e a satisfação de viver. Tomado por uma grande depressão, entrou para dentro de uma grande caverna escura. Tomado por esta escuridão, foi um dia despertado por uma coruja que morava, também, dentro desta caverna.
¾Sou a guardiã deste mundo que você se encontra agora. Quer que eu lhe traga a morte de presente?
¾Morte? Urrou sem força e tomado de medo.
¾Sim – completou a coruja. Você está mais morto do que nunca. Talvez a morte lhe traga mais vida e mais luz. Mas, antes, você precisa conquistar uma coisa muito importante, caso contrário, vai vagar para sempre no reino das trevas.
¾Eu já conquistei muitas coisas nesta vida. Não creio que precise conquistar mais nada. Prosseguiu o leão apegado ao orgulho que sempre lhe venceu.
¾Mesmo no fundo do poço, você não perde a majestade – Ironizou a coruja sem a mínima intenção de consola-lo – Você tem certeza que não deseja conquistar mais nada? Eu posso providenciar, neste minuto, o seu passe para o outro lado. Só que você não vai gostar, nem um pouco, do que vai encontrar lá.
Jujuba percebeu que era melhor ceder à humildade que sempre rejeitou. Não tinha mais nada a perder. Mesmo que negasse, sabia que havia perdido tudo. A única coisa que lhe restava eram alguns tímidos lampejos de vida.
¾Tudo bem! O que é que eu tenho que conquistar?
¾Agora sim! Estou gostando de ver...
¾Epa! Não começa... Não estou aqui para ser humilhado. Urrou o leão aproveitando-se das poucas centelhas de força que ainda possuía.
¾Para quem acostumou a humilhar o outro é esperado que veja humilhação em tudo. Desde quando estou lhe humilhando ao dizer que estou gostando de ver algum lustro de humildade em você? Perguntou a coruja desafiando-o.
Sem querer se ater a uma questão tão delicada e incômoda, Jujuba perguntou já irritado:
¾Seja mais direta. Não gosto de rodeios. O que é que eu tenho que conquistar?
¾Você precisa conquistar a consciência de que foi um fracasso. Respondeu a coruja sem rodeios.
¾Quem é você para dizer que sou um fracasso!
¾Sou a guardiã da morada obscura do seu ser. Respondeu com firmeza.
Jujuba percebeu que apesar de pequena e frágil, aquela coruja parecia ser uma autoridade. Com toda majestade do passado ainda encrostada em sua alma, sentia que não mandava nada ali. Na verdade,  não tinha outra saída a não ser se resignar.
¾Como pode dizer que fui um fracasso se consegui conquistar a admiração de todos? Em toda a minha vida, me lembro apenas de um macaco idiota que não conseguiu enxergar o meu brilho.
¾Talvez, ele tenha sido o único a aproximar de você sem desejos de lhe paparicar. Apesar de você não saber, tem bicho que não se liga em confeccionar imagem idealizada de si e  dos outros. Vive a vida como ela é de fato.
¾Que vida é esta que você está falando? Perguntou Jujuba.
¾Uma vida que não coube em você. O seu orgulho, a sua vaidade, a sua prepotência eram as únicas coisas que lhe cabiam. Admita que não viveu! Passou uma vida inteira babando em cima de uma imagem que você idealizou para si mesmo. E, o pior é que exigia isto dos outros também.
¾Eu não exigi nada de ninguém!
A coruja deu uma grande risada. Tomada pelo riso continuou:
¾Ai de quem não admirasse você! Tornava-se, com certeza, vítima de sua ira. O máximo que conseguiu fazer para dominar o seu orgulho e a sua raiva foi dar uma de coitadinho. O que não muda muita coisa...
¾Você está muito enganada! Todo mundo me amava. Tanto é que fariam de tudo para ser igual a mim.
¾Ser amado é bem diferente de ser paparicado. O sabor da fruta do amor, você desconhece e agora é bem tarde para prová-la.
¾Você quer dizer que eu não fui agraciado pelo amor? Já que é assim, eu não tenho culpa de não ter provado esta fruta.
¾Espertinho! Você é fera nas justificativas. Só que esta não cola não. O pomar de sua vida sempre esteve repleto desta fruta. No entanto, você as deixou apodrecer no pé. Será que resta alguma ainda?
Jujuba limitou-se a ficar calado expressando uma profunda decepção para consigo mesmo. Não havia desculpas que pudesse absolvê-lo. Sentiu ali, naquele momento, que a sua consciência não aceitava mais ser ultrajada com as máscaras que usou a vida inteira. Percebeu que lhe restava ainda algumas horas para aceitar aprender o que sempre rejeitou. Humildemente, lamentou sua condição para a coruja.
¾Eu sempre pensei que me amasse profundamente...
¾Você só amou a imagem que construiu. Quando ela se ruiu, você começou a se destruir até chegar ao ponto em que se encontra agora. Quem ama não se destrói.
¾Tenho que admitir que você tem razão. Não adianta mais eu negar o que está óbvio. Você retirou as vendas que a alienação e o meu egocentrismo colocaram sobre a minha alma. Será que disponho de algum tempo a mais para viver, pelo menos, um minuto de amor?
¾Vou lhe dar vinte e quatro horas a mais de vida para que você jamais se esqueça o quanto o dia é longo e quanto você o desperdiçou. Aproveite, se for capaz!
Com muita dificuldade, frágil e sem força, Jujuba levantou dirigindo-se para a porta da caverna. Precisava, agora, apossar-se da maior valentia que sempre lhe faltou a vida inteira: “Olhar profundo nos olhos da vida”. Assim que ultrapassou a porta da caverna, uma luz lhe cegou os olhos lhe oferecendo uma outra visão. Já não enxergava mais o Jujuba de antes, agora via as árvores, os animais, os rios, lagos e um céu muito azul que lhe transmitia uma tranquilidade jamais vivenciada. Respirava fundo e sentia o aroma da natureza penetrando e purificando o seu ser mais íntimo. O vento que tocava o seu corpo, massageava-o, carinhosamente, dissipando cada tensão que o seu orgulho edificou. A terra que pisava lhe dava uma importante lição de acolhimento. Esta terra recebia todos, indiscriminadamente, até mesmo ele que nunca percebera a importância da mesma. A água que corria pelos rios fazia brotar, no fundo de sua alma, um intenso desejo de renovação. Jogou-se dentro do mesmo e tudo aquilo que não lhe cabia mais. Viu a correnteza levar toda vaidade e prepotência que o desnutriu durante toda a sua vida. Já quase no final da tarde, quando o sol repousou no horizonte, Jujuba parou, pela primeira vez, para admirar este espetáculo que a natureza lhe ofereceu durante toda a vida sem que percebesse. Emocionado com tamanha beleza, desceram de seus olhos lágrimas abençoadas que limparam ainda mais a sua alma fazendo a faxina final em cada cômodo de seu ser. Finalmente, seria agradável morar numa casa assim, límpida, humilde e sem a antiga luxuosidade que lhe impedia ter liberdade de transitar em si mesmo. Agora, mais parecido com o sol e aquecido pelos últimos raios do mesmo, foi morrendo devagarinho, mas certo de que iria renascer no outro dia com uma nova consciência.




segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O ENDEREÇO DA RIQUEZA

Dedico esta história às pessoas de grande coração 


O ENDEREÇO DA RIQUEZA


         Ávido por conhecer o mundo, um homem tudo largou e partiu sem destino a qualquer lugar que pudesse ensina-lo algo. Cruzando montanhas e vales, atormentado pela sede e pela fome, bateu à porta de um suntuoso castelo solicitando um copo d’água e um prato de comida.
— Aqui nada temos para oferecê-lo. Disse com arrogância uma luxuosa mulher rejeitando, claramente, a aparência simples daquele homem.
         O homem partiu carregando consigo o peso de um corpo sedento. Logo adiante, num humilde casebre, uma moça maltrapilha estendia algumas roupas íntimas no varal à frente da casa. Assustou-se com o pobre homem que, repentinamente, apareceu à sua frente olhando-a cabisbaixo. Desalentado e frágil não ousou pedir nada, mas, uma voz suave ressoou como uma melodia em seus ouvidos:
— Você me parece tão abatido! Venha, lhe darei comida e água.
         Depois de muito comer e beber, satisfeito e revigorado, perguntou à humilde moça:
— Onde mora a riqueza?
— Por que queres saber? Perguntou a moça delicadamente.
— Por estar demasiadamente confuso. Encontrei a miséria num suntuoso castelo e a abundância num humilde casebre.
— A riqueza não habita os grandes castelos. A riqueza habita os grandes corações. Não há lugar para a miséria nas pessoas de grande coração. Finalizou a moça demonstrando possuir também, sabedoria em abundância.
O homem sorriu e partiu satisfeito, certo de ter feito uma grande descoberta. A moça com toda sua humilde riqueza alimentou não só o seu corpo, mas, sobretudo, a sua alma.