domingo, 15 de fevereiro de 2015

A FRUTA DO PRAZER


     Era uma vez uma árvore carregadinha de cajus deliciosos e hospedeira de um lindo pássaro vermelho, porém, guloso, que jamais se contentava com um caju só, queria todos eles. Pulava de galho em galho bicando um por um sem, no entanto, sentir o verdadeiro sabor de cada um deles. Questionado pelo amigo Curió acerca deste comportamento estranho, respondeu:
−São todos iguais e estão aqui para me satisfazer.  
−Mas, então não seria melhor comer um só? Você estragaria menos os lindos cajus deste pé e permitiria que este alimento fosse compartilhado com outros pássaros que estão também à procura de alimento.
−Quem chega primeiro leva o melhor. Se não são bons caçadores como eu, nada posso fazer. Zombou o Pássaro Vermelho se enchendo de pomba e estufando seu peito.
−Desde quando saber caçar pressupõe acabar com tudo que se vê pela frente? O verdadeiro caçador escolhe a presa certa, aquela que vai decerto sacia-lo. Argumentou o Curió.  
−Pois eu me sacio com todas. Contraverteu o Pássaro Vermelho com ironia.
−Não parece! Questionou o Curió, balançando serenamente a cabecinha de um lado para o outro.
−Por que? Perguntou confuso o Pássaro Vermelho.
−Porque a sua fome parece não ter fim. Você parece, na verdade, um insaciável. Esclareceu o Curió com a firmeza de quem percebe claramente as coisas.
−Acho que você morre de inveja do meu poder. Zombou o Pássaro Vermelho.
−Poder? Como assim? Perguntou, confuso, o Curió sem conseguir compreende-lo.
−O poder que tenho de caçar os cajus que você não dá conta. Olhe bem para você. Ha quanto tempo está comendo este único caju. Eu já biquei dezenas deles, além das dezenas de goiabas, laranjas, pêssegos e abates que papei só neste dia. Escarneceu o Pássaro Vermelho.
−Qual deles é mais gostoso? Desafiou o amigo Curió com a intenção de conscientiza-lo.
−Como já te disse, é tudo a mesma coisa. Pintou no pedaço, ta no papo! Zombou mais um vez o Pássaro Vermelho fazendo transparecer um certo sentimento de vingança. Parecia querer agredir o mundo com esta postura usurpadora.
−Cuidado para não comer uma fruta estragada. Aliás, é só isto que você sabe fazer com cada uma delas – estraga-las. Coitadas... Se elas, pelo menos, pudessem se defender de você... Vejo que você não possui nenhuma responsabilidade ecológica. Criticou o Curió.
−Responsabilidade ecológica... Que papo mais antigo! O bom mesmo é aproveitar a vida. Completou o Pássaro Vermelho rejeitando claramente as críticas do Curió.
−E desde quando quem tem responsabilidade não aproveita a vida? Parece que seus conceitos estão meio confusos, não acha? Interpelou o Curió.
−Esse papo ta careta demais! Tô fora do pedaço! O Pássaro Vermelho foi saindo, mas antes que levantasse voo o Curió lhe alertou:.
−Dizem que tem um bicho chamado homem que está se comportando assim como você. Dizem, inclusive, que antes dele se tornar a vítima fatal do próprio comportamento inconsequente, nós seremos as primeiras vítimas.
−Então é melhor aproveitar mais ainda a vida. Finalizou com ironia o Pássaro Vermelho.
     O tempo passou e chegou um inverno diferente de todos os invernos anteriores. A escassez era grande e já não havia mais alimento para todos. Milhares de animais morriam, dia após dia, e o desespero tomava conta de todos. A fartura só existia na lembrança, principalmente, daqueles que esbanjaram sem aprender a economizar e valorizar o alimento. Debaixo de uma árvore seca, fincada sobre um solo árido e quebradiço, estava o Pássaro Vermelho, moribundo e irreconhecível, pedindo a todos pássaros que passavam uma migalha de alimento. Passando por ali, o Curió  reconheceu o amigo, mas depois de checar, minuciosamente, se era ele mesmo, se deu conta de que deveria estar enganado. Olhou para suas penas que já não eram as mesmas e para o seu olhar ofuscado, pensando:
−Não!.. Este não pode ser o pássaro vermelho... Este olhar triste e frágil não tem nada haver com aquele olhar arrogante.
Antes que partisse, ouviu uma voz trêmula e abafada suplicando:
−Não conhece mais os amigos? Por favor, me dê um minuto de atenção.
−Amigos? Eu não te conheço. Justificou o Curió.
−Será que fiquei tão irreconhecível assim? Sou o Pássaro Vermelho.
−O que aconteceu com você? Perguntou assustado o Curió.
−Tudo aquilo que você previu um dia e eu não acreditei. Estou morrendo e não consigo caçar uma única fruta para matar a minha fome. Respondeu pesarosamente e com uma verdadeira expressão de arrependimento.
−Mas, você se dizia um excelente caçador. O que fez com que você perdesse a sua habilidade para caçar as dezenas de frutas que caçava anteriormente num único dia? Indagou o Curió.  
−Descobri, tardiamente, que nunca fui um caçador. Não aprendi a procurar meu verdadeiro alimento e valoriza-lo como deveria. Fui, na verdade, um esbanjador daquilo que a natureza me doava com fartura. Será que você poderia me doar, agora, um pequeno pedaço desta fruta preciosa que você carrega consigo. Perguntou – Hoje, ela vale tanto quanto uma mina de ouro – Lamentou o Pássaro Vermelho, expressando mais do que desejo, uma nítida necessidade de se alimentar para matar a fome que poderia matar o seu corpo.
−Esta fruta vale mais que uma mina de ouro. Vale a minha vida e pode valer a sua, caso eu faça por você aquilo que faltou você fazer por todas as frutas que desperdiçava. Corrigiu o Curió.
−Acho que desperdicei também a minha vida deixando apodrecer dentro de mim o que eu possuía de mais valioso. Emendou o Pássaro Vermelho.
−O que você possuía de mais valioso? Perguntou curioso o sábio Curió.
−A minha capacidade de relacionar com respeito com o outro e comigo mesmo. Respondeu o Pássaro Vermelho denotando profundo discernimento.
−Parece que você aprendeu muita coisa importante... Conjecturou o Curió.
−Espero que não seja tarde demais! Lastimou-se o Pássaro Vermelho.
−Nunca é tarde quando temos coragem de abrir mão de nossa vaidade e usar a nossa humildade como veículo para nos conduzir rumo ao  novo caminho que nos aguarda. Não vou lhe dar um pedaço de minha fruta, mas vou lhe dar algo mais precioso. Vou lhe ensinar a encontrar a fruta preciosa que matará a sua fome trazendo a sua vida de volta. Proferiu o Curió com sabedoria querendo oferecer o máximo de sua generosidade.  
−Eu lhe agradeço, mas estou muito fraco, não consigo mais voar. Justificou o Pássaro Vermelho com pesar.
−Nem sempre a melhor fruta está no topo da árvore. Algumas estão no chão; são arrancadas pelo vento para que possam nutrir aqueles que não podem voar alto. No topo das árvores existem também frutas podres. Você sabe bem disto! Esclareceu o Curió.
−Você tem razão! Eu já ajudei a estragar muitas delas. Admitiu o Pássaro Vermelho com ar de arrependimento.
−Você já se arrependeu e isto já basta! Alimentar a culpa só vai ajudar a estragar  ainda mais o resto de vida que você possui. Vá, levante-se. Viva! Vá à busca de sua fruta. Tenho que ir, pois tenho uma linda família para alimentar. Incentivou o Curió.
−Família? Deve ser bom ter uma família. Refletiu o Pássaro Vermelho demonstrando total falta de conhecimento acerca desta realidade que lhe faltava.  
−Você pode ter uma também. Vá à luta e lembre-se. “A família é como uma fruta. Só será saudável se a semente escolhida for sadia, e por último, se tivermos com ela uma relação saudável. Família é uma só, não dá para ficar descartando como se fosse um lixo. É necessário recicla-la a cada dia com bons exemplos e sentimentos saudáveis”. Alertou o Curió.
−Vá! Não se atrase por minha causa. Obrigado pelo alimento que me deste hoje. Esta conversa me nutriu com o desejo de seguir em frente. O velho Pássaro Vermelho precisava mesmo morrer. Agora poderei renascer e sentir, finalmente, o sabor de cada fruta que eu encontrar em meu caminho. Eu nunca soube distinguir o sabor de uma fruta. Maçãs, laranjas, cajus, ameixas, enfim, todas elas possuíam para mim o mesmo sabor. Perdido no desejo de nada perder, eu perdi a capacidade de apurar meu paladar e sentir o verdadeiro sabor da vida e da fruta do prazer. Mas, não se preocupe, eu aceito o desafio de encontrar o que jamais valorizei no passado. Vou usar, sabiamente, o restinho de energia que me resta para realizar esta nova conquista. Não desperdiçarei este valioso restinho de energia.  Ainda me resta uma esperança. Só tenho a agradecer! Obrigado por tudo! Agradeceu o Pássaro Vermelho se sentindo mais forte para seguir em frente sem carregar em sua nova bagagem as véstias de vítima ou vilão. Com uma bagagem mais leve, conseguiu abrir suas asas e tocar carinhosamente nas asas do amigo lhe dando um afetuoso abraço.
−Boa sorte! Finalizou o Curió denotando uma grande alegria frente as mudanças do Pássaro Vermelho.
     Os dois se despediram e seguiram em frente; cada qual com  a sua missão e certos de que a sorte alcança quem a busca.

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