domingo, 15 de fevereiro de 2015

A DOENÇA DA ROSA


Dizem que, num lindo jardim sempre habitado pela harmonia, a rosa adoeceu repentinamente. Nenhuma flor entendia o jeito novo e estranho da mesma. Sempre viçosa, aberta e vibrante passou a ficar,  dia a dia, cada vez mais murcha, fechada e sem vida. “Que doença era aquela que acometera a rosa repentinamente”? Até então, nenhuma flor jamais ouvira falar de uma doença tão grave. Como curar a rosa se ninguém entendia o motivo de sua doença? Preocupados, resolveram marcar uma consulta com o Dr Sol, o iluminado curador de todas as flores. Ele possuía uma sabedoria infinita capaz de curar todos os males. Tocando, graciosamente, a rosa com seus raios luminosos, o sol perguntou:
—O que aconteceu, linda rosa?
—Nada não!.. – respondeu, rispidamente, a rosa.
O sol achou muito esquisito aquele jeito novo da rosa. A sua doçura foi transformada, sem motivo aparente, em uma rispidez acentuada. Tentando envolve-la carinhosamente, questionou a sua indelicada resposta.
—Se não tens nada, porque estás tão brava?
—Eu tenho o meus motivos...
—Que tal  falarmos deles? Talvez, eu possa ajuda-la.
—Tudo bem! Respondeu grosseiramente. O meu problema são as Margaridas.
—Engraçado, nunca nenhuma flor aqui representou um problema para a outra. Vocês sempre viveram tão felizes.
Antes que o sol pudesse continuar foi interrompido ironicamente pela rosa.
—Disse bem! Vi-ve-ram. Mas, não vivemos mais.
—Não é bem assim. Todos continuam vivendo bem, só você não consegue mais viver feliz. Se mudar este sentimento ruim dentro de você, com certeza recuperará a sua felicidade.
—Só se as Margaridas morressem, eu conseguiria me sentir bem.
Apesar de estarrecido, o Sol entendeu rapidamente o sentimento da Rosa, mas decerto, ela não compreendia o que estava se passando consigo mesma. O grande astro sabia que tinha um grande trabalho pela frente. Só à partir do momento que a Rosa se tornasse capaz de compreender o real motivo deste ódio que a dominava, seria capaz de se salvar e se curar definitivamente. Sem censurá-la continuou indagando-a:
—Por que motivo as Margaridas deveriam morrer?
—Porque elas atrapalham a minha vida. Respondeu exalando egocentrismo, a Rosa.
—Engraçado, nunca reparei o quanto as Margaridas atrapalham a sua vida. Sempre as vejo no canto delas, juntas, felizes da vida, sem se preocuparem com nada.
—Você é quem pensa! Elas andam bem preocupadas em seduzir o meu amor. Outro dia o peguei irradiante, admirando-as.
—Que mal existe em admirar e ser admirado? Você sempre foi tão admirada e nunca se ressentiu disto.
—Uma coisa é ser admirada, outra coisa é ser menos amada por seu amor por ele ter descoberto outra flor mais bela.
—Ele te disse que passou a te amar menos por ter descoberto a beleza das Margaridas?
—Não, mas é um risco. Você não acha?
—Você deixaria de amá-lo caso passasse a admirar as Margaridas?
—Eu, admirar Margaridas? Era só o que faltava! Muitas flores podem até achá-las bonitinhas, mas aquelas pétalas finas... Que mal gosto! Fique sabendo que eu jamais vou admirar as Margaridas.
—Isso é muito sério. Disse o Sol com firmeza. Isso pode ser o seu fim. Continuou, olhando no fundo dos olhos da Rosa.
—O meu fim? Como assim ? Perguntou a Rosa preocupada.
—Se você não conseguir admirar as Margaridas, passará a se sentir cada vez mais feia e sem vida.
—Se o remédio é admiração, admirar a mim mesma não basta? Saiba que me acho muito mais linda. Minhas pétalas são mais largas, minha haste mais firme. Não tem comparação!
—Comparação. Preste bem atenção nesta palavra. A sua doença se chama com-pa-ra-ção. Você está doente de comparação.
—Eu, doente? Eu estou muito bem.
—Mas você acabou, agora pouco, de falar que só ficaria bem se as Margaridas morressem?
—Decerto, seria menos um peso para mim. Admitiu a Rosa.
—Atente-se ao que vou lhe falar. A noite está chegando e eu tenho que repousar. O Horizonte me espera, não dá para ficar mais tempo com você, embora eu saiba que você precisará de algum tempo para digerir e vivenciar tudo que irei lhe explicar. Qualquer dúvida, peça ajuda para a lua, hoje ela estará linda. Aliás, poderei usá-la como exemplo para que você compreenda melhor esta importante lição de vida.

—Que lição? Perguntou a Rosa mesclando dúvida com ansiedade.
—Eu ilumino o dia e a lua ilumina a noite. Temos o nosso valor e a nossa beleza. Temos o nosso lugar e a importância certa mediante o lugar que ocupamos. Sei que todas as flores deste jardim admiram as noites de luar.
—São lindas mesmo!
—Nem por isso eu desejo que a lua morra para que eu me sinta melhor do que sou. Tenho a minha própria importância. Sei o quanto sou importante para cada um de vocês.
Indispensável, eu diria.
—E daí? Ironizou a Rosa.— O que tudo isto tem haver com a minha doença?
—Ter certeza da nossa importância e valorizar a importância de todos que nos cercam é o passo mais importante na conquista da nossa felicidade e na eliminação do ciúme e da inveja que nascem assim que começamos a gestar as desagradáveis comparações dentro da gente.
—Ciúme, inveja... Que sentimentos são estes? Nunca ouvi falar deles.
—Mas está começando a sentir. Ciúme é esta necessidade maluca de ser o centro das atenções na vida do outro, querendo assim que este só tenha olhos para você. Se não tivéssemos que admirar a beleza do mundo e dos outros, nasceríamos cegos. Alguns até fingem não enxergar para não despertar este sentimento naqueles que se sentem inferiores, evitando assim, desagradáveis conflitos. Os que possuem visão e não enxergam são os piores cegos.
—Você quer dizer com isso que o meu amor é um ser agraciado por Deus com a dádiva de enxergar a beleza do mundo e não alguém que está traindo o amor que sinto por ele?
—Isto mesmo, Rosa! A nossa felicidade sempre dependerá do nosso ponto de vista. Procure enxergar as coisas do jeito que elas são de fato, e não da forma como a sua parte doente gostaria que fosse.
—E como a parte doente que está em mim gostaria que as coisas fossem? Perguntou, humildemente, a Rosa mudando sua feição frente à abertura aos novos aprendizados.
—A parte que adoeceu em você está exalando ciúme e inveja. Esta parte gostaria que o mundo girasse em torno de você e que, dentre todas as rosas e flores do mundo, você fosse a mais bela e a única a ser apreciada por todos.

A Rosa foi ficando mais vermelha do que era, exalando muita vergonha. Aquele sentimento novo que tomou conta de seu ser, sem que se apercebesse, era um sentimento ruim; gostaria de se livrar dele rapidamente. Mas de posse dele, parecia estar aprisionada e sem saída para o mundo encantado que vivia antes. Impotente, começou a chorar.

—Me diga, por favor! O que devo fazer para livrar-me desta doença?

—Admitir que é vítima dela já é o primeiro passo. No entanto, não poderá continuar como vítima. Deverá se responsabilizar por sua vida sabendo que possui dentro de si todos os recursos para se livrar dela. Basta usa-los. Lembre-se que você era uma rosa saudável e procure seguir o seu próprio exemplo de vida anterior, livre de comparações e deste sentimento de menos valia que se apoderou de você.

—Sinto vergonha de ter invejado as Margaridas e, com isto, desejado tanto mal a elas. Lamentou a Rosa.

—Quem inveja jamais deseja o bem para o ser invejado, pois deseja para si os atributos daquele ser que não possui. É como se o ser invejoso quisesse reter em si mesmo toda a beleza e todo o poder do mundo. Ilusoriamente, desejam ser um Deus.
A Rosa abaixou o olhar reprovando-se internamente. Queria se esconder de tanta vergonha, mas na impossibilidade de esconder de si mesma e de todos, limitou-se a ficar com seu olhar cabisbaixo por um longo tempo. Quando levantou seu olhar, o sol já não estava lá, a noite a envolvia com uma linda lua cheia a brilhar iluminando todo o jardim. Olhava para todas as flores e percebia a felicidade em cada uma delas. Sentia-se mal com a felicidade delas e agora, não só as Margaridas, mas todas as flores a incomodavam. Entretanto, o novo incômodo era diferente; já não desejava mal a elas, mas não conseguia ainda admirar aquela beleza que reinava no jardim que fazia parte. Sentia que nenhuma flor dali se importava com ela, estavam todas felizes e ela ali, triste e doente. Desanimada, pensou alto olhando para a lua que iluminava tudo e a todos:
—Agora, não tenho nem mesmo a companhia do sol...
—Mas tem a minha companhia. Interviu a lua irradiante.— A minha companhia não serve?  
—Serviria, mas você desconhece o meu problema e não tem como me ajudar.
—Mas posso conhecê-lo se você permitir. Estou disponível a ajudá-la, caso queira, é claro. Disponibilizou-se a Lua.
—Até quero, mas me dá uma preguiça ter que falar tudo de novo.
—Você não precisa falar tudo, comece por onde você terminou.
—E você entenderia se eu começasse do final?
—Que bom! Se você já está no final é porque seu problema já está resolvido.
—Quem me dera! Apenas entendi o que sinto, mas não consegui ainda mudar o sentimento dentro de mim. É como se eu tivesse mudado na cabeça e não o tivesse ainda arrancado do coração.
—Talvez seja o contrário. Certamente, você já o tirou do coração, mas  mantêm o problema vivo na sua mente.
—Sei lá, só sei que o sentimento de ciúme e inveja ainda estão dentro de mim.
—Quer dizer que você sente ciúme e inveja?
—Acho que não sinto mais nada. Olho para tudo e para todos e não vejo mais a beleza; sinto apenas um incômodo, que nem sei bem como explicar.
—Este incômodo é certamente o vazio que tomou conta de você.
—Acho que é isto mesmo! Me sinto vazia. Como você pôde descobrir se nem conhece todo meu problema?
—Os sentimentos são governados por algumas leis. O ciumento e o invejoso está sempre vazio e deseja, inicialmente, preencher este vazio com aquilo que o outro tem. Sentem muita raiva enquanto lutam para tomar do outro o que não lhes pertence e o que jamais conseguirão roubar. Quando se dão conta da impotência para mudar o que não pode ser mudado, são acometidos por uma grande tristeza e desânimo. Tomados pela depressão, se afundam, dia após dia, cada vez mais,  neste vazio sem fundo.
—Preciso de ajuda! Você tem como me tirar deste buraco fundo que caí? Suplicou a rosa desesperada e com muito medo de permanecer, infinitamente, neste inferno que a aprisionava.
—Infelizmente não posso fazer por você o que só você pode fazer por si mesma. Comece por olhar para si. Admire-se! Veja primeiro quanta beleza existe dentro de você para que depois possa, finalmente, admirar a beleza que existe no outro. No entanto, muito cuidado! Admire-se sem comparações.
Lembrando-se das últimas palavras do Sol a Rosa confabulou:
—O Sol me disse que talvez eu quisesse ser um Deus, habitar apenas em mim toda a beleza do mundo. Acho que ele tem razão. A minha própria beleza tem que me satisfazer. Estou sendo insaciável.
—Decerto! Nem Deus quis a beleza do mundo só para ele. Por isso se dividiu em todos os seres do mundo e deu para cada um deles parte de sua beleza. E há quem queira ser mais que Deus, ao invés de ser Uno; ser individualista e garantir a beleza só para si.
—Acho que o que sinto é coisa do diabo! Inferiu a Rosa com seus miolos já quentes de tanto pensar numa saída para seus problemas.
—A escolha é sua. Se desejar ser mais divina, deverá descobrir a divindade dentro de si mesma. Feita esta descoberta, você exalará o sentimento divino de querer também se dividir, se multiplicar. Estará aberta a dar e receber, pois verá riqueza em tudo que lhe rodeia.
—Temo não ter muito tempo para isto mais. Depois desta conversa, já consigo sentir a mudança operando dentro de mim, só não sei se terei tempo para vivenciá-la.
—O tempo é muito relativo. Não poderei viver mais esta noite, mas por certo, muitas outras virão. Talvez eu não possa mais encontrar com você tal qual se encontra hoje, pois o mundo gira, minha cara. Mas, encontrarei uma outra flor; diferente, mas com a tua alma.

A Rosa entendeu o recado da lua deixando duas gotas de orvalho caíram de suas pétalas. A lua me contou que nunca mais encontrou aquela Rosa invejosa e cimenta naquela roseira, mas a encontrou linda, feliz e viçosa em vários pontos daquele mesmo jardim e em centenas de outros. Fiquei, por algum tempo, sem entender como ela pôde se dividir e multiplicar ao mesmo tempo, mas, outro dia, lembrando-me de uma frase divina que diz mais ou menos assim – “Sede fecundos, multiplicai-vos” – deduzi, finalmente, o final desta história. Espero que você seja capaz de deduzir também.

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