domingo, 15 de fevereiro de 2015

HISTÓRIA DA SEMANA

O CAMINHO

Dizem que Deus traça um caminho para cada criatura viva neste universo.  Sabe-se lá porque ele faz isto; talvez seja uma das suas brincadeiras favoritas. Faz parte do jogo divino torcer para que cada criatura siga o caminho designado para a sua alma.  Dizem que no final do jogo há sempre uma boa recompensa para quem consegue  percorrer o caminho seguindo corretamente o traçado divino.  Tem uma história que ilustra bem tudo isto. Pois bem, vou conta-la para vocês.
            Dizem que Deus fez as tartarugas bem lentas para que elas pudessem apreciar bem cada centímetro do caminho que ele designou para elas. Ao criar as tartarugas, Deus gostou tanto delas, que resolveu além da lentidão dar muitos anos de vida a elas também. Andando devagar e por muitos anos, elas teriam, sem dúvida, muita coisa boa para ver, apreciar e sentir.
Leca e Zuca eram duas tartaruguinhas criadas por Deus  à sua  imagem e semelhança. Epa! Deve ter um equívoco aí, pois não foi o homem a criatura criada à imagem e semelhança do mesmo? Também. Para entender, basta tomar consciência de que ninguém cria nada que não seja uma expressão de si mesmo.  Assim, cada criatura neste universo infinito é uma expressão de Deus; a sua constante onipresença  registrando uma imagem que apesar de una se multiplica. É mais ao menos parecido com a visão que tenho de mim. Quando me olho no espelho, não vejo uma cara só. Quantas vezes fico surpresa com as caras que vejo; todas elas tão diferentes e minhas. Muitas caras e ao mesmo tempo uma só.  Com Deus também não é diferente. Ele registra suas caras em tudo que cria; por isso, tudo é  imagem e semelhança dele, inclusive as tartaruguinhas desta história.
Deus é tempo, é espaço, enfim, Deus é tudo. Ele experimenta a vida através dos seres que cria e cada ser experimenta a vida através dele.  E nesta troca recíproca, a vida se expressa.  Foi assim que a vida de Leca e Zuca se expressou. O jogo divino deu às duas um trajeto muito importante a percorrer ao longo da vida. Teriam que chegar ao cume da montanha mais alta dos arredores de sua terra natal.  Ao chegar ao cume da montanha, receberiam a sua recompensa.
Dada a partida, cada uma iniciou seu trajeto com seu estilo próprio.  Todas as duas com o mesmo projeto de vida traçado por Deus, mas com perfis muito diferentes. Dizem que um mesmo caminho pode se tornar muito diferente frente à percepção de seres com visões díspares .
Zuca era uma tartaruga ansiosa e ambiciosa; queria chegar rápido ao seu destino final. Não suportava a sua natureza lenta e tratava de criar estratégias para acelerar seus passos.  Chegando primeiro ao cume da montanha, seria a primeira a receber a recompensa tão desejada. Para ela, os primeiros são sempre os vencedores no jogo da vida criado pela sua mente ansiosa. Leca, por outro lado, adorava ser uma tartaruga; apreciava bem a sua natureza e se respeitava muito principalmente por ser dotada de grande amor por si mesma. Dizem que quando a gente se ama de verdade, a gente se respeita muito também;  não fazemos nada que prejudique o nosso corpo e a nossa alma.  Pois bem; as duas partiram, cada qual a seu jeito, com as habilidades e recursos próprios. Com a inteligência artesã que tinha, Zuca preparou quatro rodinhas com algumas pedras roladas que garimpou ao longo caminho. Pegou uma tala de madeira e fixou as rodinhas sobre as mesmas formando  um belo skate que lhe daria mais velocidade para  correr pelos caminhos da vida e chegar mais rápido  ao seu trajeto final.  Leca, ao contrário de Zuca, andava com seus próprios pés e passos de tartaruga. Sem pressa alguma, apreciava cada paisagem que se descortinava a  ao longo de seu percurso. Parecia não estar nem um pouco preocupada em chegar à frente de ninguém. Para Leca, chegar à reta final não era o mais importante, pois se sentia chegando a todo momento a algum lugar. Assim, cada lugar novo era uma chegada carregada de novidades a serem vividas e saboreadas.  Além de apreciar, experimenta cada contexto, cada paisagem. Dizem que todo contexto tem um sabor diferente. Deus fez tudo com um sabor inédito.  Dizem que a culinária divina é isto; os sabores que Deus coloca em cada experiência de vida. Leca adorava cada sabor e alguns eram tão agradáveis que ela relutava seguir; ficava mais tempo ali, se empanturrando daquela experiência. Sabia, entretanto, que não dá para parar por definitivo em  lugar algum, por mais agradável que seja a experiência vivenciada ali. As paradas são necessárias, porém transitórias; é preciso seguir em frente. Quem fica definitivamente, fica esquecido de tudo que pode vir a ser. Dizem que a gente não se esquece apenas daquilo que a gente fez ou foi um dia; dizem que é possível se esquecer também daquilo que a gente faz,  é ou pode vir a fazer e ser um dia; e este esquecimento é muito perigoso. O esquecimento habita todos os tempos.  Há coisas que valem à pena serem esquecidas; coisas que não acrescentam; que só nos consomem; que consomem, sobretudo, a nossa energia para seguir em frente.
Zuca, não tinha tempo para refletir sobre estas filosofias de Leca. Filosofia é coisa de gente que tem tempo para pensar; Zuca não tinha. Zuca só tinha tempo para agir. Agia sem pensar, pois tinha que chegar. Dizem que estas ações são também muito perigosas. Dizem, inclusive, que só se deve agir sem pensar quando a gente já sabe. A sabedoria não precisa de muito pensamento, precisa só de alma. Zuca prendeu a alma dela na masmorra de sua mente; uma mente que mentia o tempo todo para ela. Mas, dizem que tem gente que gosta das mentiras que a mente cria por não suportar a verdade de ser ela mesma. E, como já mencionei antes, Zuca não gostava muito de ser uma tartaruga; preferia ter nascido um falcão – o animal mais rápido do mundo. As paisagens passavam por ela rapidamente. Engolia as experiências sem sentir o sabor delas, assim como a gente faz quando come apresado só para encher a barriga; só porque precisa comer para se manter vivo. Zuca procurava,  sobretudo, procurar o caminho mais curto. Criava estratégias mirabolantes para cortar caminhos, principalmente aqueles que pareciam mais difíceis de trilhar, trechos mais íngremes, tortuosos ou repletos de pedregulhos. Leca, ao contrário,  aceitava cada desafio. Se sentia cansada frente os trechos mais difíceis de serem trilhados, mas não desistia de seu caminho, queria percorre-lo integralmente.  Aprendeu com isto, que só se conhece bem o sabor do prazer quem teve a coragem e a resiliência suficiente para provar o sabor das dificuldades também.  Conhecia a lei da interdependência; a direita só existe em relação à esquerda,  o alto em relação ao baixo e por aí vai.  Assim,  sabia que o prazer só existe em relação ao desprazer e se disponibilizou a  conhecer bem o sabor dos dois. Zuca, por outro lado,  engolia sem sentir o sabor de nada. Precisava, apenas, manter a barriga cheia para ter energia para chegar ao final da trajetória. E, foi nesta correria que Zuca chegou anos à frente de Leca no alto da montanha. Inicialmente, sentiu-se vitoriosa. No momento de receber o troféu pela sua conquista, deparou-se com um silêncio atormentador e não com os aplausos que esperava. Cadê o público? Ficou ao longo do caminho. Na reta final só tinha lugar para ela. E, o pior é que  não tinha mais para onde ir – fim de linha.  Não tinha também como voltar. Quando se chega na reta final, não nos é mais dado a oportunidade de voltar. Podemos fazer como Leca -  ficar um tempo maior numa certa experiência de vida - mas nunca podemos voltar atrás. Só nos é permitido seguir em frente. E agora, para onde Zuca iria?  Precisava ficar  e ainda tinha muitos e muitos anos de vida pela frente. Não tinha lembranças para passar o tempo. Tempo era o que não lhe faltava agora. Como relembrar das coisas boas se não teve ao longo do caminho tempo para construir lembranças? Dizem que Deus nos deu a lembrança de presente como única alternativa para voltarmos naquilo que foi bom. Mas, como Zuca engolia as experiências sem sentir o sabor, acabou corrompendo o seu paladar. As lembranças só são fixadas na nossa mente se o sabor delas tiver sido marcante e significativo. Para quem perdeu o paladar, não há sabor significativo. E agora, o que fazer com esta falta de lembrança?  A falta de lembrança causa uma doença que nos protege da dor de não poder ser mais. Zuca se transformou numa tartaruga caduca.

Leca, continuou caminhando, caminhando e experimentando profundamente o sabor de cada experiência, apurando seu paladar até  chegar finalmente  no alto da montanha. Lá do alto pôde avistar todo o trajeto percorrido e muitas lembranças boas vieram acalentar a sua alma  antes que pudesse partir para uma outra experiência nova. Leca se transformou, ao longo destes anos todos,  numa tartaruga muito sábia. Dizem que a sabedoria é o nosso troféu e ela só pode ser conquistada quando a gente se prontifica não só a conhecer, mas também a degustar  o sabor de cada experiência vivida.  A palavra sabedoria vem de saber ou de sabor? Vem do latim Sapere – saber , sentir o gosto de...  Só sabe quem saboreia. Leca compreendeu que a maior conquista não está no final da caminhada , mas ao longo de todo o percurso da vida. Tomada por esta compreensão, pode finalmente, juntamente com Zuca caduca partir para um outro jogo divino que ninguém sabe bem as regras, mas que todo mundo tenta inventar. Eu diria que elas foram viver aquilo que não viveram ainda. Para Leca, um novo lugar; para Zuca o mesmo  novamente. Que possa ser não só novamente, mas com uma nova mente. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário