quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

JUJU

Dedico esta história a todas as maritacas e,  especialmente, a uma que amei profundamente - Juju


Era uma vez uma maritaca chamada Joana. Joana nunca foi nome de bicho, mas quando se tenta transformar bicho em gente, tudo é possível. Antes de se tornar Joana, a maritaca desta história vivia feliz em seu ninho sendo carinhosamente alimentada por sua mãe que, dedicada a alimentá-la e protegê-la, esperava ansiosamente que suas penugens se transformassem em penas para lançá-la em seu primeiro vôo pela imensidão azul do céu. Aquele filhote, sem nome e sem identidade, esperava também o momento certo para receber as suas primeiras lições de vôo livre. Mostrando o vôo e a algazarra de inúmeras maritacas que voavam alegremente, a mãe lhe dizia:
— Em breve, poderás também experimentar o seu verdadeiro potencial.
—O que é potencial? Perguntou o filho, curiosamente.
—Potencial é o seu verdadeiro poder de ser.
—Ser o quê?
—Ser você mesmo.
—O que sou? Perguntou o filhote confuso.
—És uma ave livre e feliz. Veja como nossas companheiras voam alegremente pelo céu. Estamos sempre em festa, pois festejamos a cada dia a nossa existência. Existimos, e isto nos basta.
O filhote de maritaca aguardava tranqüilamente o seu momento até que sua tranqüilidade foi, inesperadamente, roubada por um bicho perigoso chamado homem. Furtado de sua vida junto à natureza, foi jogado dentro de uma caixa escura, bem diferente do confortável ninho em que se encontrava. Sua mãe tentando protegê-lo, gritava desesperadamente e atacava com seu bico e unhas afiadas aquelas mãos enormes que seguravam agressivamente seu filhote ainda frágil. Como na lei da selva sempre vence o mais forte, o bicho homem conseguiu vencer a mãe e apropriar-se de seu filho. Aquela ave livre se transformou repentinamente em mercadoria. Dentro da caixa ouvia atentamente um barulho e um cheiro estranho jamais sentido. Vez ou outra, aquelas mãos grosseiras retiram o frágil filhote de dentro da caixa exibindo-o diante de uma natureza árida e de animais estranhos que passavam velozmente rosnando e empoeirando tudo ao redor. Subitamente, um destes animais parou e dentro dele saiu outros bichos iguais aqueles que haviam lhe separado da mãe. No entanto, um deles tinha um piado mais suave. Sem entender a linguagem deles, mas observando tudo ao redor, percebeu que algumas folhas, nem tanto parecidas com as folhas da árvore que lhe abrigava, foram trocadas entre aqueles bichos estranhos servindo de ponte para que ele pudesse agora mudar de dono. Eis a conversa do bicho homem que não foi compreendida pelo filhote de maritaca:
—O que é isso, moço?
—É maritaca, dona. Quer levar uma?
—Coitadinha. É tão pequena! Você não tem pena, não?
—Pena? Isso é igual praga por aqui. Se a gente não pega, outro acaba pegando.
—Devia ser proibido tirá-la do ninho nesta idade. Ela pode morrer.
—Proibido é, mas a gente tira assim mesmo. Se você levar tenho certeza de que ela sobrevive.
—E se eu não levá-la?
—Ela morre e a gente pega outra.
—Você tem coragem de deixá-la morrer?
—E precisa de coragem pra isso, dona?
Aquela dona, abismada com a frieza daquele ser que de humano nada tinha, olhou no fundo dos olhos daquela maritaca e apaixonou-se com a inocência que brilhava em seus olhinhos. Não teve coragem de abandoná-la e propôs um acordo àquele insensível mercador de aves:
—Se eu comprá-la você me prometeria colocá-la novamente no ninho ao qual você a retirou?
—Tem jeito não, dona.
—Por que? Eu te pago para que ela volte à natureza.
—Eu poderia até usar de sua boa vontade, mas não vou fazer isso não. Infelizmente, ta tudo destruído. Se voltar com ela pro mato, ela morre.
—A fiscalização não costuma passar por aqui?
—Até que passa de vez em quando, mas a gente sempre fica sabendo antes.
A conversa foi interrompida por uma criança que implorando à mãe conseguiu convencê-la:
—Por favor, mamãe! Leva ela. Eu não quero que ela morra.
—Mas, minha filha, ela pode morrer com a gente.
—Se cuidar direito, ela não morre não, dona – interferiu o mercador de aves.
—Como se cuida deste bichinho? Perguntou a mãe, temerosa de não dar conta de uma tarefa, à primeira vista, imprópria aos seres humanos.
—É só dar angu na boca. Respondeu, prontamente, o mercador,
—Mas, angu é coisa que maritaca nunca comeu, moço! Angu é comida de gente.
—Com o tempo ela aprende a comer e a viver como gente, dona.
Sem opção, a dona de bom coração resolveu levar a maritaca. Colocou-a dentro de seu automóvel até então percebido pelo filhote como um grande bicho que rosnava e voava velozmente por uma trilha chamada rodovia. Apesar de assustado, aqueles novos bichos pareciam mais mansos. Acariciavam a sua cabeça de uma maneira não tão delicada como a sua saudosa mãe fazia, mas pareciam não representar uma ameaça à sua vida.
O tempo dentro daquele bicho estranho que rosnava parecia não terminar nunca. Será que viveria ali pelo resto de sua vida? Foi ficando com fome e com sede. Quando é que aquele bicho homem se portaria como a sua mãe adivinhando o momento certo de alimentar-lhe?
—Mamãe, será que ela está com fome? Perguntou a filha adivinhando as necessidades do bebê maritaca.
—Acredito que sim, filha. Mas, o que vamos dar a ela agora? Não temos aqui comida de maritaca e nem como preparar um angu bem gostoso para ela.
—Talvez ela goste de biscoito de chocolate. Se ela se parecer comigo, vai devorar este pacote inteiro.
—Biscoito é comida de gente. Pode ser que ela não goste. Advertiu a mãe.
—Angu também é comida de gente e ela come. Vamos tentar? Melhor do que deixar ela morrer de fome. Sugeriu a criança.
—Esfarele um pouquinho em sua mão e coloque dentro do bico dela. Vamos ver se ela aceita. Recomendou a mãe, um pouco receosa.
A criança esfarelou um pouquinho de biscoito recheado de chocolate em sua mão e um tanto sem jeito, com o carro fazendo curvas e caindo de minuto em minuto nos buracos da pista da rodovia mal conservada, foi colocando os farelos no bico da maritaca. Quase que os dedinhos finos daquela criança desciam também goela abaixo junto com os farelos de biscoito. Segurando-o pelo pescoço, ou melhor, enforcando-o com as melhores intenções que uma criança pode ter por um animal desconhecido, a menina se exaltava toda vez que conseguia fazer uma massa de biscoito esfarelado descer pela goela do bichinho.. Parecia um jogo, onde o alvo era o estômago daquela maritaca.
—Olhe, mamãe, ela está adorando!
—Não posso olhar. Tenho que manter a minha atenção na estrada.
Com seu jeitinho infantil, a doce e bem intencionada menina cuidava de uma maritaca indefesa que engolia e se entalava sem nada poder dizer. Sem entender a linguagem daquele bicho que dela cuidava, a maritaca começou a berrar pedindo socorro. A menina, prosseguiu:
—Olhe como ela está feliz, mamãe! Ela já está até cantando. Pode dar o pacote todo?
Por sorte da maritaca, a mãe interveio com precaução:
—Melhor não dar mais nada, pois ela pode não se sentir muito bem depois. Dê água, pois ela deve estar com sede.
—A água acabou, mamãe. Só resta uma caixinha de suco de goiaba. Pode dar o suco para ela?
—Será que maritaca gosta suco?
—Ela deve gostar de fruta, principalmente de goiaba que tem tanta semente. Todo passarinho gosta de semente. Acho que vai adorar, mamãe!
—Então, experimente! Veja se ela aceita.
Querendo alimentar, carinhosamente, o seu mais novo bichinho de estimação, a menina prosseguiu com suas idéias eminentemente infantis:
—Vou cuidar dela como cuido da minha boneca papinha.
Como se fosse o bico de uma mamadeira de boneca, a menina enfiou o canudo presente na caixinha do suco pela goela abaixo do bebê maritaca. Vendo que não saía nada e percebendo a aflição da ave que agora já nem berrava mais, a garota mudou sua estratégia. Abriu um buraco bem grande na caixa e derramou o suco no bico da ave. A maritaca se afogou no suco de goiaba e seu corpo ainda em penugens foi sendo banhado por aquele viscoso líquido vermelho. Terminado o tratamento, perfeito para a criança e traumático para a maritaca, a criança deu-se por satisfeita:
—Ela está toda melada, mas relaxou e dormiu, mamãe. Será que ela vai gostar de mim?
—Com certeza, filhinha. Você cuidou tão bem dela que ela vai querer que você seja a sua mãezinha.
A viagem chegou ao fim e com ela quase chegou ao fim a vida daquela maritaca. No entanto, aquele bichinho conseguiu sobreviver. Cuidados especiais passaram a ser dedicados ao mesmo por aquela família que o adotou como se fosse uma filha. Após a viagem, orientada por uma veterinária que ajudou a salvar a vida do bicho, a família tentou adaptar a sua alimentação e cuidados especiais às suas reais necessidades. A maritaca foi condenada a sobreviver, pois a vida plena já não lhe era possível viver, já que esta lhe fora negada no dia em que lhe privaram do contato com a natureza.
A sua nova família lhe dedicava atenção, carinho e amor. Tratavam-na como um ser humano. Vangloriavam-se por tratar tão bem uma simples ave. Nunca pensaram que nenhum bicho, em sua essência, gostaria de ser tratado como gente. Até nome de gente deram ao mesmo.
—Precisamos de dar um nome a esta maritaca, mamãe.
—É verdade, minha filha. Todos nós temos um nome. Que nome daremos a ela? Se eu tivesse uma outra filha, lhe daria o nome de Joana. Acho lindo este nome.
—Ótimo, mamãe! Podemos apelidá-la de Juju.
Sem se preocuparem com o sexo da maritaca, batizaram-na de Joana. Este nome satisfazia o desejo daquela mãe bem intencionada. De boas intenções o mundo está cheio!.. No entanto, nem sempre o bem intencionado pára para pensar na intenção do próximo. Juju, por exemplo, foi vítima das boas intenções daquela família. Quando chegaram a saber que Juju era macho, já era tarde demais. A ave já estava quase aprendendo a pronunciar o seu próprio nome e se reconhecia como tal.
—Olhe como Juju consegue voar alto! Exclamou exultante a doce criança da casa depois de alguns meses de cuidados intensivos e maternais para com a ave.
—Precisamos tratar, urgentemente, de cortar as asas dela. Proferiu a mãe checando as asas da ave que iniciava, alegremente, suas primeiras tentativas de vôo.
—Ela me parece tão feliz! Não acho justo tirar esta felicidade dela. Questionou a filha.
—É preferível negar a ela o direito de voar do que de viver. Ponderou a mãe supondo, naquele momento, ser a dona da razão.
Sem entender as ponderações racionais da mãe a criança perguntou, confusa:
—Todo pássaro voa. Por que o vôo de Juju a mataria?
—O seu vôo lhe traria a liberdade. De posse dela, Juju nos deixaria e partiria para o mundo onde seria rapidamente devorada por outros animais mais fortes do que ela. Ela vive no mundo dos homens. É totalmente protegida por nós. No reino animal não saberia lutar pela sua sobrevivência, pois não aprendeu a se defender e nem mesmo a buscar o seu próprio alimento.
A idéia de perder o seu bichinho de estimação calou qualquer questionamento que aquela criança pudesse fazer. Era ainda muito imatura para aceitar a perda ou lidar com o trágico e misterioso tema da morte. As asas da maritaca foram cortadas. Seguindo o critério das boas intenções, lhe foi permitido gozar nos finais de semana o prazer de pular, galho em galho, numa pequena árvore presente no jardim do sítio da família.
—E, se a gente deixasse ela ficar, hoje, nesta frondosa amendoeira? Perguntou a filha, numa outra ocasião, querendo ampliar o espaço para a ave que parecia se sentir tão acuada.
—Ela subiria alto demais e não teríamos como pegá-la de volta. Advertiu a mãe com cautela.
Diante de tantos cuidados e precauções, Joana desistiu, finalmente, de ser uma ave. Vivia como gente e aprendeu a viver como gente que desaprende a ser livre. Teve sua liberdade conquistada no limitado espaço do apartamento onde vivia. Assim, ao contrário de muitas maritacas e papagaios, suas frágeis perninhas jamais foram amarradas no poleiro do aparador onde passava a maior parte de seu tempo. Pela manhã, ao acordar parecia contente. Dava seus gritos acordando toda família. Descia do poleiro, andava pelo corredor da casa, entrava em cada quarto dirigindo-se para as cobertas que esparramadas pelo chão serviam de plataforma para alcançar o alto da cama onde carinhosamente bicava o rosto de cada membro daquela família que acordava feliz por ter uma maritaca tão amistosa. Todos que conheciam Juju diziam satisfeitos: “Esta maritaca parece gente”! No entanto, nunca ninguém questionava: “Será que esta maritaca que parece gente, deseja mesmo esta vida de gente?”.
Apesar da aparente felicidade, Juju não viveu muito tempo. Em um dia comum, diante de um procedimento também comum da doméstica que trabalhava para aquela família, Juju foi degolada na porta da cozinha. Muito assustada e temendo a reação da família, a empregada se justificou:
—Juro que não vi. Este poleiro não poderia ter ficado sobre esta porta. Juju fez um malabarismo com seu corpo projetando-o para baixo, esticando seu pescoço justamente no momento em que fechei a porta.
—Nós que sempre tomamos o cuidado de protegê-la da panela de feijão, de um pisão descuidado, ou de sua perigosa liberdade junto a outros pássaros que poderiam matá-la... Como é que nunca pensamos nesta possibilidade? Esta porta maldita! Juju nunca fez isto?
Ninguém se perdoou e jamais entendeu como Juju pôde ter agido de uma forma jamais prevista por aquela família. Eles não sabiam ainda, que chegada a hora de nos libertar fazemos coisas que jamais ousamos fazer antes. Todos se julgaram responsáveis pelo acidente de Juju. Ela não morreu fulminantemente. Penou com o pescoço quebrado por algumas horas.Todos penaram com ela. Durante a madrugada gritava de dor. Seus olhinhos imploravam aos donos a tão desejada liberdade que lhe fora roubada. Naquele momento de desespero, ninguém teve coragem de ofertá-la com as próprias mãos, mesmo sabendo que nada mais poderia ser feito. No entanto, o anjo das maritacas, com suas enormes asas, apareceu pela madrugada libertando Joana, Juju e aquela maritaca que parecia gente. Agora ela poderia ser finalmente um pássaro, nada mais do que isto.
Tentando elaborar a perda e entender o tão complexo conceito de morte, a filha implorou aos soluços:
—Você sempre protegeu e salvou a Juju de todos os bichos terríveis. Salva ela agora, mamãe!
Com lágrimas escorrendo pelos olhos e impotente para protegê-la e salvá-la de um simples procedimento doméstico, a mãe finalmente entendeu a mensagem que a vida lhe mandara, repassando-a a filha:
—Às vezes, nos achamos dona da razão e esquecemos que cada ser possui a sua própria razão de ser. A morte é inevitável a todos nós, a liberdade não. Negamos a liberdade a Juju, tentando, neste tempo todo, negar a morte a nós mesmos. Agora, a morte está aqui e nada podemos fazer. Em algum momento ela sempre virá, queiramos ou não, ela baterá sempre em nossa porta. Juju precisa morrer para esta vida pra poder conquistar a vida que a sua alma realmente almeja. Nós matamos a liberdade de Juju quando aceitamos trazê-la para o mundo dos homens. A porta apenas lhe trouxe a liberdade de volta.
Aquela maldita porta se fechou trazendo imensa tristeza e angústia para todos os membros daquela família que hoje luta pela preservação ecológica. Mas, se abriu definitivamente para aquela maritaca que pode finalmente voar alto e servir de exemplo para quem possui ainda a medíocre idéia de criar no poleiro o que anseia viver livre.
Hoje, na varanda do apartamento, a família que adotou Juju presencia alegremente a liberdade dos pássaros que visitam o aparador de Juju apenas para saborear alimentos que lá são colocados para satisfazer as necessidades do corpo. A lição saboreada por aquela família jamais foi esquecida: “As necessidades da alma devem ser única e exclusivamente uma escolha inerente e específica de cada ser

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